A «tradição» das touradas (Memória descritiva)

No 2º volume dos « Cadernos de Lanzarote», José Saramago reproduz um artigo que publicou na revista Cambio 16. Transcrevo dois trechos:

«O touro entra na praça. Entra sempre, creio. Este veio em alegre correria, como se, vendo aberta uma porta para a luz, para o sol, acreditasse que o devolviam à liberdade. Animal tonto, ingénuo, ignorante também, inocência irremediável, não sabe que não sairá vivo deste anel infernal que aplaudirá, gritará, assobiará durante duas horas, sem descanso. O touro atravessa a correr a praça, olha os “tendidos” sem perceber o que acontece ali, volta para trás, interroga os ares, enfim arranca na direcção de um vulto que lhe acena com um capote, em dois segundos acha-se do outro lado, era uma ilusão, julgava investir contra algo sólido que merecia a sua força, e não era mais do que uma nuvem. Em verdade, que mundo vê o touro?» (…)

«O touro vai morrer. Dele se espera que tenha força suficiente, brandura, suavidade, para merecer o título de nobre. Que invista com lealdade, que obedeça ao jogo do matador, que renuncie à brutalidade, que saia da vida tão puro como nela entrou, tão puro como viveu, casto de espírito como o está de corpo, pois virgem irá morrer. Terei medo pelo toureiro quando ele se expuser sem defesa diante das armas da besta. Só mais tarde perceberei que o touro, a partir de um certo momento, embora continue vivo, já não existe, entrou num sonho que é só seu, entre a vida e a morte».

Quando José Saramago leu o texto a sua mulher, Pilar, disse – «Não podes compreender…” Tinha razão» diz o escritor»Não compreendo, não posso». É sempre o que os defensores das touradas, quando vêem que os seus «argumentos» não são aceites, dizem. Quem acha que as touradas são um espectáculo degradante e advoga a sua proibição imediata «não compreende». Porque, dão a entender, para compreender uma coisa tão poética, tão tradicional, é preciso ter uma sensibilidade especial.

Pergunto – o que há para compreender? Um negócio onde se cruzam ganadeiros, apoderados, toureiros, empresários… pega num animal, confina-o num «anel infernal», e tortura-o até à morte. O que há para perceber neste fenómeno que nada tem a ver com património cultural, nem com tradição e muito menos com poesia – que tem a ver, sim, com os obscuros corredores da mente humana onde se oculta um atávico prazer em fazer sofrer outros seres como catarse para os sofrimentos pessoais.

Os aficionados desenvolvem uma teoria de contornos iniciáticos: quem não entende a magia da corrida não tem o direito de a criticar. Ou seja, para poder contestar as touradas é preciso gostar delas, estar por dentro do mistério da corrida, sentir a poesia de uma tarde de touros… Obscuras banalidades deste tipo, mas nem só um argumento sólido e aceitável.

Nos tempos de Roma usavam-se pessoas, embora já houvesse quem protestasse. O que responderiam os defensores do espectáculo – que era uma tradição e que os escravos nasceram para morrer. E haveria também apreciações sobre a beleza poética de ver animais selvagens e famintos despedaçar seres humanos, sobre a «nobreza» com que uns morriam sem se defender e a falta de aprumo com que outros tentavam vender cara a vida. Nem sei porque é que os defensores das touradas não incorporam o circo de Roma na sua tradição. A Antiguidade Clássica daria um toque de erudição à «Fiesta». Assim só têm o Hemingway para dourar o seu historial.

Falando da tradição taurina em Portugal, ela é tão forte e tão antiga que a própria tourada à portuguesa é acompanhada por pasodobles. Os aplausos do público exprimem-se em «olés» e a terminologia taurina é toda em castelhano. Tradição portuguesa? Sempre que se fala na história das touradas, lá vem o conto de Rebelo da Silva, «A última corrida de touros em Salvaterra». Só este conto é metade da tradição, a outra metade é espanholice pura.

Vem isto a propósito da discussão acesa que vai pelo Parlamento catalão sobre a proibição, ou não, das touradas na Catalunha. Perante a Comissão parlamentar do Meio Ambiente, 14 peritos em diversas áreas esgrimiram ontem argumentos a favor e contra a tauromaquia. Está em causa a anunciada proibição das corridas de touros na comunidade. Esta medida é apoiada por uma iniciativa legislativa popular que reuniu 180 mil assinaturas.

Os pro-taurinos defenderam a bravura do touro e a sua condição de animal nascido para morrer lutando, bem como a sua resistência ao sofrimento. Os anti-taurinos descreveram em pormenor o sofrimento do animal. Passando ao plano cultural, os defensores falaram nos valores da «fiesta», a emoção, a comunhão na praça, a catarse colectiva da multidão.

Os anti insistiram na crueldade da tortura e da morte do animal, da psicótica aberração de extrair prazer dessa barbaridade. Os pró lamentaram que os aficionados catalães tenham de viver na clandestinidade, embora afirmem que o público é apaixonado pelo espectáculo taurino e que são os políticos quem acirra o povo contra a tradição. Num terceiro plano, o da identidade, todos os deputados, da direita à esquerda, deixaram claro que a abolição da tauromaquia na Catalunha nada tem a ver com a identidade nacional.

Um toureiro e ganadeiro de Madrid, disse que, ao fim e ao cabo, o protagonista do debate é o touro. E com a autoridade de quem está por dentro, falou em nome dos interesses do animal: «É o animal mais formoso do mundo e o melhor tratado. Se fecharem as praças, extinguir-se-á». E depois, derivou para a poesia barata «É um espectáculo, um sentimento, a paixão da vida e da morte, do respeito e da entrega». No entanto, não respondeu às perguntas dos deputados, pois eram formuladas em catalão.

Os pró falaram de sofrimento, escudando-se na capacidade do touro para sofrer. A escritora Natalia Molero interveio, aludindo à «capacidade que o touro tem de libertar meta-endorfinas durante a lide para anestesiar a dor».

Os anti contra-atacaram com força. Desmontaram um a um os argumentos dos defensores. Jorge Wagensberg, um cientista, descreveu todo o arsenal utilizado para matar o touro, descreveu os instrumentos, da bandarilha ao estoque, tudo bem afiado e reluzente e disse. «Isto dói? Claro que dói!”. O etólogo Jordi Casamitjana, perito em sofrimento animal, utilizou elementos que permitem avaliar o sofrimento do touro, incluindo fotografias, e concluiu: «De um ponto de vista ecológico e zoológico, o touro de lide sofre individual e socialmente, física e psiquicamente».

O meu camarada de lides (editoriais), Jesús Mosterín, interveio, na qualidade de filósofo, com ironia cáustica: «Escandalizamo-nos porque em África se corta o clítoris às mulheres e noutros países causa escândalo que se continue fazendo um espectáculo público do sofrimento dos animais». E prosseguiu: «É verdade que as corridas de touros são tradicionais», concluindo sob os protestos dos deputados pro-taurinos: «Maltratar as mulheres também é uma tradição e, apesar disso, está a ser combatida».

Josep María Terricabras, outro filósofo, de forma mais suave, percorreu a lista de argumentos básicos dos defensores da «fiesta», para chegar a uma conclusão: «Aos partidários da fiesta falta um argumento ético fundamental. Fazer sofrer um animal por prazer é totalmente reprovável. Os touros são maltratados, como antes o foram as mulheres e os escravos». A sessão prosseguirá hoje com depoimentos de outros 13 peritos em diversas áreas.

Apenas quero levantar uma questão – quando é que em Portugal discutimos este assunto? A cobardia dos sucessivos governos tem permitido, mesmo no pós-25 de Abril, que vergonhas como as de Barrancos continuem. Invoca-se ali a tradição. Qual tradição? Um espectáculo que viola a lei e todas as regras da segurança, para já não falar nos princípios humanitários, iniciado em 1928 já é uma tradição? Mas mesmo que fosse. Como disse Mosterín, há tradições inaceitáveis e que têm sido combatidas com êxito. A prostituição, a pena de morte, a escravatura, duraram milénios. Não é motivo para que não tenham sido e continuem a ser combatidos.

Porém, quando vemos o Bloco de Esquerda, sempre tão preocupado com os problemas ecológicos e com os direitos dos animais, a aceitar uma trânsfuga do Partido Comunista numa autarquia ribatejana (Salvaterra de Magos, a do conto de Rebelo da Silva), defendendo a senhora abertamente os touros de morte, a esperança de que esta chaga cultural seja banida esmorece. A avidez pelos votos, submerge convicções e programas.

A tourada em Portugal está longe de ter as raízes que tem no estado vizinho, onde move interesses de grande monta. Quando é que em Portugal nos ocupamos da discussão a sério desta «tradição» tão nacional que até só se exprime em castelhano?

Em 1836, o ministro do Reino Passos Manuel promulgou um decreto proibindo as touradas (coisa que o marquês de Pombal já tinha feito no século anterior): “Considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de Nações civilizadas, bem assim que semelhantes espectáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade, e desejando eu remover todas as causas que possam impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa, hei por bem decretar que de hora em diante fiquem proibidas em todo o Reino as corridas de touros.” Porém as «razões» do costume prevaleceram e nove meses depois as corridas regressaram.

A maioria municipal socialista de Viana do Castelo, em 27 de Fevereiro de 2009, decidiu não permitir a realização de qualquer espectáculo tauromáquico no espaço público ou privado do município, sempre que ele dependa de qualquer autorização a conceder pela autarquia. Viana do Castelo (com maioria socialista) antecipou-se à Catalunha. Portugal, com um governo socialista, não deveria, pelo menos, encetar o debate sobre o tema? Quando é que se reconhecerá aquilo que há quase dois séculos já era óbvio para algumas pessoas – as touradas são um divertimento bárbaro e impróprio de nações civilizadas?

Comments

  1. julgo que as autorizações para espetáculos em recintos privados são da competência dos governos civis e não das câmaras (corrijam-me se estiver enganado).

    fora de assunto, benvindos de volta à rede!

  2. maria monteiro says:

    Já lá vão muitos anos quando, estando de férias em Espanha, pedi aos meus pais para irmos a uma tourada,.A muito custo lá os convenci e fomos…passado pouco tempo já não conseguia ver nada … o sofrimento do bicho, o barulho que emitia, o sangue … viemo-nos embora … entrar numa praça de touros só mesmo para outros espectáculos

  3. Carlos Loures says:

    Creio que tem razão, Dorean Paxorales, o que a maioria socialista na Câmara Municipal de Viana do Castelo decidiu foi «não permitir a realização de qualquer espectáculo tauromáquico no espaço público ou privado do município, sempre que ele dependa de qualquer autorização a conceder pela autarquia.» O que já não é pouco.

  4. Luis Moreira says:

    Repito.Nunca entrei numa praça de touros!

  5. Luis Moreira says:

    Mas que o animal pode extinguir-se nesta qualidade tambem é verdade!

  6. Carlos Loures says:

    Respondendo ainda a Dorean Paxorales que dá as boas-vindas aos «fora do assunto». Muito agradecido pela cortesia. Neste assunto quero mesmo estar de fora. O que não me impede de dar a minha opinião. Se só podem discutir o tema as pessoas que estão por dentro, claro que as conclusões serão sempre favoráveis à continuação da «fiesta». Como se para condenar o gangsterismo fosse necessário ser gangster…

  7. Carlos Loures says:

    E se for assim, Luís, se se extinguir? Se as lutas de cães acabarem, os pitbull talvez se extingam. E então? Em nome da conservação das espécies, continuamos com touradas e lutas de cães?

  8. Ricardo Santos Pinto says:

    Extinga-se à vontade. O touro bravo é apenas uma raça, uma invenção do homem. Não é por se extinguir o touro bravo que se extingue a espécie, da mesma forma que não se extingue a espécie dos gatos se o gato persa, essa inenarrável invenção do ser humano, se extinguir.

  9. Carlos Loures says:

    Nem mais, Ricardo. Não há como as touradas para trazer os «aficionados» à luta pela conservação das espécies.

  10. João Nunes says:

    Gostava de ver o tal Saramago a botar faladura sobre isto à porta da Praça de Touros de Madrid ou de Sevilha. Só o faz aqui, já que nem em casa da mulher que ele sustenta o pode fazer.
    Aqui, sim, pode falar do que quiser. Quem tem cu tem medo.
    E pior, só fala do que não sabe.

  11. maria monteiro says:

    Luís, nem para um comício?

  12. Belo texto, Carlos, mais uma vez. De tão evidente que é a maldade e a baixeza dos sentimentos humanos dentro das touradas, pura e simplesmente deveriam ser proibidas por qualquer governo decente. Ou mantê-las só em Barrancos, mas com um único expectador: Jorge Sampaio.

  13. Adão Cruz says:

    Adão Cruz :Belo texto, Carlos, mais uma vez. De tão evidente que é a maldade e a baixeza dos sentimentos humanos dentro das touradas, pura e simplesmente deveriam ser proibidas por qualquer governo decente. Ou mantê-las só em Barrancos, mas com um único espectador: Jorge Sampaio.

  14. Carlos Loures says:

    É verdade, Adão, o Jorge Sampaio, presidente da República, declarou ser adepto dos touros de morte. E o Manuel Alegre, putativo candidato ao cargo, gosta de caçar. Os animais (incluindo os humanos), estão entregues à bicharada.

    • Ricardo Santos Pinto says:

      E a maior ironia é que, depois de abandonar o cargo, veio criticar as touradas de morte, diznedo-se arrependido por ter aprovado essa lei. Querem maior hipocrisia do que essa?

  15. Marilaine Pontes says:

    Existe um problema equivente, e mais frequente que são os rodeios, eu não vejo se quer a possibilidade de um dia isso acabar no Brasil, ainda sob as cortinas da “tradiçao”.

    • Luís Moreira says:

      Marilaine, onde há homens e animais há violência. Chamem-lhe tradição…

    • Luís Moreira says:

      Marilaine, onde há homens e animais há violência. Chamem-lhe tradição…

  16. Joao says:

    Pois e.
    Meus caros, esta tudo bem quando se tem um caozinho, em casa, e se leva a passear com uma trela e se obriga a viver em casa, entre quatro paredes sem liberdade durante 12 ou mais anos.

    Mas esta mal quando um toiro vive em completa liberdade ate aos seis anos e depois sofre 20 minutos…para podermos depois comer uns bons bifes.
    Claro que tambem se comem bifes de animais que sao criados sem liberdade so para irem direitos para o matadouro…..Nao sofrem os tais 20 minutos…..

  17. Sal'Gadinho says:

    Carlos, texto 5* – já está nos “Meus Favoritos”.
    É concerteza um homem iluminado, tal como era Saramago – e é de pessoas assim que este mundo precisa, com “sensibilidade e bom-senso”, tal como o título da obra.
    Não deixe de lutar nunca; eu tambem não vou desistir enquanto não erradicarmos de Portugal esta barbárie e vergonha que são as touradas !
    Um grande abraço

    Um abraço apertado

  18. Miriam Braschi says:

    Qualquer comentário a favor das touradas, da caça à raposa, da caça esportiva,da rinha de galos, da rinha de cachorros, e sabe-se lá quantas outras variedades de tortura dos animais pelo ser dito humano, que a isto assiste com morboso prazer, so quer justificar o sadismo entrañado na alma das pessoas, que por meio destes espetáulos se dão a liberdade de cometer atos terríveis numa catarse maldita, que os faz gozar com o sufrimento destes animais, de modo a extravasar todo seu sadismo escondido num ambiente no qual eles se sentem seguros e impunes….e ainda justificam estos espetáculos como “herança cultural”…

  19. costa61 says:

    Passos Manuel Liceu onde criei uma forte raiz na adolescencia.desconhecia o decreto do Deputado com”D”grande que não baixou as calças ao que Ary dos Santos descreveu a festa com a canção do festival pré 25 de Abril.Pessoas que pela ganância ou simplesmente para aparecer com roupa e joias emprestadas nos ecrãs da televisão,esquecem-se que se banham no sangue do animal para ter os breves minutos de fama de que se alimentam.Foi pena em 73 quando entrei para o liceu Nacional de Passos Manuel por baixo do seu busto na escadaria principal não estivesse a vida escrita do deputado,Assim Eu,Jorge Sampaio,Antonio Costa,Miguel Portas,Manuel Monteiro,Ferro Rodrigues e a lista extensa de pessoas que não absorveram as ideologias do deputado.O sangue do touro ,dá votos,dá compadrios,palmadas nas costas e cunhas para os amigos.O sangue Vende é o que importa hoje em dia.Condenaram Otelo Saraiva de Carvavalho por Querer fuzilar Portugueses no Campo Pequeno,pois é chocante mas e se fosse tradição como Franco o fez na vizinha Espanha.Penso que a palavra trincheiras só existe em dois cenarios na guerra e nas touradas.Ambas signicam morte.

  20. Aplaudo toda a crónica sobre a tradição das touradas e acrescentaria apenas uma curta declaração da UNESCO a esse respeito:

    “A Tauromaquia é a terrível e venal arte de torturar e matar animais em público, segundo determinadas regras. Traumatiza as crianças e adultos sensíveis. A tourada agrava o estado dos neuróticos atraidos por estes espectáculos. Desnaturaliza a relação entre o homem e o animal, afronta a moral, a educação, a ciência e a cultura”…

    Subscrevo completamente essa Declaração de 1980 e também as palavras de alguém que dizia: “A corrida de touros é um jogo sujo onde o touro é o único animal honesto”…

    Termino citando um grande escritor e poeta francês, que dizia:

    “Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação à Natureza e aos animais” (Victor Hugo)

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