Dois tipos de mentalidade em confronto – ainda a propósito das touradas (Memória descritiva)

No Parlamento da Catalunha prossegue a discussão sobre a abolição das corridas de touros no território da comunidade catalã. Ontem as alegações e a intervenção de peritos nas diversas áreas envolvidas, foram quase todas no sentido da defesa da continuidade das touradas. Na sessão da manhã, depuseram, entre outros, Hervé Schiavetti, «maire» de Arles e presidente da União das Cidades Taurinas de França, e o filósofo Francis Wolff, professor da Sorbonne, e autor de uma “Filosofía de las corridas de toros”. Na sua intervenção, declarou que a corrida «já não é a festa nacional de Espanha, pois agora é património mundial».

De uma forma geral, as alegações basearam-se nas banalidades do costume, salientando-se no entanto, na intervenção de Schiavetti a chamada de atenção para a vertente económica do assunto: «Não se trata apenas de um elemento cultural, mas também de uma questão económica; hoje em dia criar touros e aquilo que a criação comporta, constitui um forma imprescindível da gestão do território». O que põe o dedo na ferida.

E lembrou que só em França a exploração que inclui a criação do touro, implica a manutenção de mais de 300 000 hectares de reservas húmidas. Um ganadeiro catalão voltou a chamar a atenção que se os deputados catalães aprovarem a lei, serão responsáveis pela extinção desta espécie animal. Vale tudo, não só os deslocados apelos aos princípios conservacionistas como até disparatadas comparações políticas, como a de um indivíduo de Tarragona, ligado ao negócio das touradas, que comparou a eventual abolição das touradas com a censura franquista.

De Madrid chegam também ajudas aos defensores das corridas. Ignacio González, vice-presidente da Comunidade de Madrid, anunciou ontem que o seu governo irá declarar as touradas um «bem de interesse cultural» integrando-as na Lei do Património Artístico. A presidente, por seu turno, justificou esta medida, invocando o interesse de grandes artistas pelo espectáculo taurino – Goya, Picasso, García Lorca, Hemingway e Orson Welles. Do porta-voz dos socialistas veio a declaração de que o debate não se está a travar na Comunidade madrilena e que, portanto, a proposta dos populares não faz sentido. Entretanto, a Madrid, juntam-se as vozes de outras comunidades de maioria PP – Valência e Múrcia, repudiam o movimento catalão para erradicar as corridas de touros. A estes, junta-se a voz do conselheiro de Governação da Junta da Andaluzia.

Voltando a Barcelona e à intervenção do tal filósofo que defende as touradas, Wolff considerou hipócrita a lei portuguesa que, não permite a morte na arena, o que não retira nada ao sofrimento o animal; sofrimento que Wolff, em todo o caso, desvalorizou. Nisto até lhe dou razão: a crueldade das touradas «à portuguesa» não é inferior á dos touros de morte – pelo que devem ser proibidas tão depressa quanto possível. O exemplo do município de Viana do Castelo deve ser seguido por todo o país.

Disse no texto anterior que sempre que se fala na tradição taurina em Portugal, é obrigatória a alusão ao conto de Rebelo da Silva «A Última Corrida de Touros em Salvaterra», o que demonstra a carência de referências. Em tempos pediram-me um parecer sobre uma edição de uma história das touradas em Portugal. Embora o tema me fosse desagradável, esforcei-me por encontrar material que pudesse justificar tal edição.

Resultado: fontes reduzidas, meia-dúzia de referências, sempre as mesmas, e a impossibilidade de manter um fio discursivo que ligasse as pinturas rupestres, representando bois, que os pró-taurinos insistem em reivindicar como primeiras representações da «sua» história, à actualidade. Encontram-se referências diversas e dispersas sobre as corridas de canas que se faziam no Terreiro do Paço, mas nada que permitisse alimentar uma obra de grande envergadura como a que se pretendia.

A informação volumosa (textos, pinturas, fotografias) começa no século XIX. Felizmente que o estudo de mercado encomendado a uma empresa da especialidade revelou a falta de interesse do público em geral pelo tema, indiciando um fracasso editorial. De notar que, em Espanha, onde o público potencial para uma edição deste tipo seria muito maior, também não se previu uma massa crítica suficiente para alimentar uma iniciativa editorial similar. A opinião dos meus colegas catalães, foi também negativa, dada, mesmo ali, a ausência de um caudal iconográfico que permitisse ilustrar um mínimo de oito volumes com 300 páginas cada.

No que se refere às fontes, são escassas e inconclusivas. Quem quer provar a ancestralidade da tourada vai buscá-la às referidas pinturas rupestres, a pré-históricos sacrifícios cerimoniais ou ao circo romano. Há quem defenda que os romanos colheram a arte de lidar touros na Península Ibérica. Há quem diga exactamente o contrário, que foram eles que a trouxeram. Há relatos medievais de festas com touros. No que se refere a Portugal, em “Ensinança de Bem Cavalgar toda a Sela, D..Duarte refere-se, entre outras, à arte tourear a cavalo. E há mais uma ou outra referência, uma lide de D, Sebastião nas vésperas de partir para Alcácer Quibir e alusões dispersas e inconsistentes.

Segundo parece no Século XVIII as corridas de touros eram um divertimento muito popular. O conto de Luís Augusto Rebelo da Silva (1822-1871), não sendo literariamente a melhor obra deste autor do Romantismo, ganhou fama pelo seu teor dramático – o velho conde de Marialva, cujo filho, o conde dos Arcos, é morto por um touro, para o vingar o velho desce à arena e mata o touro. Passa-se durante o reinado de D. José I, governo do marquês de Pombal. e este pede ao rei que proíba as touradas. Diz Rebelo da Silva: “Sebastião José de Carvalho voltava de propósito as costas à praça, falando com o monarca. Punia assim a barbaridade do circo. — Temos guerra com a Espanha, Senhor. É inevitável. Vossa Majestade não pode consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassalos! Se continuássemos neste caminho… cedo iria Portugal à vela. — Foi a última corrida, marquês. A morte do conde dos Arcos acabou com os touros reais, enquanto eu reinar.”

Parece existir nisto alguma base histórica, mas o escritor ficcionou os factos que nem sequer se passaram em Salvaterra nem no reinado de D. José que nunca proibiu as touradas. Isso aconteceu no reinado de D. Maria II e em todo o território nacional, aconteceu em 1836, doze anos antes de Rebelo da Silva publicar o seu conto, o ministro do Reino Passos Manuel promulgou um decreto proibindo as touradas, como referi no texto de ontem. O estranho é que esta ficção se transformou num recorrente argumento dos que defendem as corridas de touros. Um fado relata a história criada pelo escritor romântico como se de um facto histórico se tratasse.

Um outro homem da família morreu em Tânger, e aqui não há ficção. Conta-se que durante a tomada da praça, em 1464, cego de fúria, D. João Coutinho, o velho marquês de Marialva, entrou sozinho a cavalo dentro do templo (onde se haviam refugiado os não-combatentes) e, com a sua espada, matou muitas dezenas daquelas gentes indefesas, até que, já sem forças, encharcado em sangue dos pés à cabeça, foi, pelas mulheres, velhos e crianças, puxado de cima da montada e literalmente despedaçado.

No Século XIX, o rei D. Miguel era também conhecido pela sua fina arte do toureio, sendo, durante o seu reinado, inaugurado o Campo de Santana em Lisboa e o decreto de Passos Manuel reflecte a sua posição de homem moderno, liberal, face ao obscurantismo conservador dos miguelistas. Dois tipos de mentalidade. Porém, nove meses depois as Cortes Gerais revogaram o decreto de Passos Manuel.

Voltemos então à discussão que se trava no Parlamento da Catalunha – ele põe frente a frente dois tipos de mentalidade. E não estou a falar em catalães frios metódicos, nos álacres castelhanos ou nos frívolos andaluzes. Não se trata desses chavões, nem precisamos de sair de Portugal ou mesmo da cidade em que vivemos para encontrar esses dois tipos de enfrentar a realidade.

Os que condenam a barbárie e os que a defendem (mesmo que invocando os valores supremos da cultura, da tradição, da identidade nacional e até, para meu espanto, da conservação das espécies. A caça é outra «tradição» defendida, tal como as touradas, por pessoas aparentemente civilizadas e com argumentos, apesar de tudo um pouco menos vulneráveis. Havemos de um dia discutir a caça. Hoje estamos a falar das touradas. Invocar o instinto ancestral da espécie é dar razão a quem condena. O homem é um animal que tenta dominar a sua condição animal. É a esse esforço de superação que, vulgarmente, se chama civilização.

Oxalá a Catalunha consiga erradicar este espectáculo, de beleza ímpar para uns e para outros uma manifestação do que de mais obscuro existe na mente humana. São lapidares as palavras de uma crónica sobre este tema do Prof. Carlos Fiolhais publicada no Público em 5 de Dezembro de 2008:

«Aos defensores dos espectáculos tauromáquicos têm-se oposto os defensores dos direitos dos animais. Se os primeiros dizem que “se há alguém que cuida e que ama os touros são os próprios toureiros”, os segundos ripostam que isso “é o mesmo que dizer que os pedófilos são os melhores amigos das crianças”»

Acabemos com uma nota de humor.

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