No fim da Guerra, um dia de sol


Quem se passeie pela net, decerto encontrará sites e foruns nos quais mutuamente se agridem nacionais dos mais diversos países. Se os ingleses “são por regra” bêbados, os holandeses são uns parolos de soca nos pés e chibata na mão, os alemães são todos militaristas, os franceses nunca tomam banho e os italianos pertencem todos – e mais alguns – à Mafia. Quanto a nós, portugueses, ficamos-nos pelos tipos com 1,45m de altura, bigode, boné de presilha e escarro nas paredes. A perfeita tradução para a banda desenhada, fê-la a dupla Goscinny-Uderzo num album do Asterix, talvez O Domínio dos Deuses, não tenho a certeza.

Tendo sido ontem o Dia Internacional da Mulher e vedada a entrada aos homens do Aventar, dediquei-me à visualização de videos e leitura de comentários no youtube. Lá estão todos os velhíssimos preconceitos acerca das mulheres portuguesas. Do Brasil à França, da Suécia à Grécia, a ideia que se difunde acerca delas, chega a ser concomitante com o mais alvar e consciente racismo. “Minúsculas, gordíssimas, de bigode, pelos nas pernas e nas axilas, seios a roçar o umbigo, meio carecas, desdentadas, sujas, sempre vestidas de bata e de chanca nos pés”, são alvo de todo o tipo de piadas indecentes. Querem eles lá saber da sua honestidade, espírito criativo, dedicação aos seus e inteligência?! Se por acaso são apresentados a um grande – e para eles embaraçoso – grupo de lusas beldades, surge invariavelmente um …“não podem ser portuguesas”…. Lembram-se das Doce, quando em 82 foram à Eurovisão? Os jornais estrangeiros atreviam-se a escrever preto no branco que “não parecem portuguesas”!
Todos nós conhecemos as anedotas sobre as femmes de ménage et concierges em França, padeiras e fritadeiras de pastéis de bacalhau no Brasil e lavadeiras de panelas na Suíça, como se tais funções profissionais fossem uma desonra ou “centenária pecha” a que para eternidade estarão condenadas. Eles não se coíbem em convidar-nos para jantar nas suas casas, passando metade do repasto numa lenga-lenga que conhecemos de cor e salteado. Riem-se até às lágrimas e habituados à nossa tradicional moderação e civilidade, dão rédea solta a uma parvoíce que afinal os rebaixa. Notoriamente dispostos a puxar os galões da cultura e civilização, comportam-se como vulgares labregos. Jamais leram relatos de viagens que outros europeus fizeram a Portugal e desconhecem as descrições acerca das portuguesas, o primeiro alvo da admirada atenção dos visitantes que visitaram durante séculos, este país que foi uma potência. Nunca ouviram falar de J.B.F. Carrère ou de W. Beckford, nomes tão ignotos como os de qualquer vilória da Patagónia. Bem podiam lê-los.

De minuto a minuto fazem-nos recordar as nossas avós, mães, irmãs, filhas, amigas e vizinhas e pensamos então na abissal falta de conhecimento que os estrangeiros têm acerca do nosso país. O pior de tudo é que essa responsabilidade pertence-nos em grande medida, porque temos sido incapazes de promover a nossa imagem no exterior, ficando-nos por um certo estilo que fez a sua época mas que está desajustado aos nossos dias. Quando da exposição da Europalia exibiu O Triunfo do Barroco, quem a visitou espantou-se pelas colecções portuguesas, como se fossem de outro mundo. Bastar-lhes-ia consultar um Atlas histórico, olhar para os mapas e concluir acerca de uma história rica, pluricontinental e aberta a tantas influências.

Há uns bons anos, uma muito conhecida senhora da sociedade, jantava à mesa com Chirac, então maire de Paris. No auto-considerado selecto grupo de convivas, houve uma gaulesa que mais afoita a gracinhas, questionou a nossa compatriota, procurando espicaçar conversa:

“A senhora já foi francesa, mas agora é portuguesa pelo casamento, não é? Sabia que em Paris todas as portuguesas são porteiras e criadas?

– “Madame, as portuguesas de Paris são deveras mulheres trabalhadoras, sérias e admiráveis e muito me orgulho de pertencer a essa nação. Já agora, saiba a senhora que as putas mais famosas de Lisboa, sempre foram… francesas!”

Assim e a seco, entre um gole de Moet et Chandon e um gracioso sorriso de desdém.

Sempre houve e haverá portuguesas, espanholas, francesas, dinamarquesas ou alemãs – entre todas as outras nacionalidades – que se vestem sem gosto, deixam o corpo facilmente estiolar-se na irreversível passagem dos anos, ou simplesmente nem sequer reparam em si mesmas. Não se interessam por modas ou passeatas e vivem recolhidas no seu trabalho no escritório, loja ou naquele outro, tão pesado e mais ingrato – porque gratuito e nada reconhecido – que exercem em casa. Outras há que miraculosamente tudo conseguem conciliar e surgem sempre bem dispostas e com aquele sempre bem-vindo orgulho em si próprias, capaz de contagiar amigas e mudar procedimentos e mentalidades.

Esta foto que aqui deixo, foi feita nos já longínquos anos quarenta, quando a II Guerra Mundial chegava ao fim. Retrata a minha já falecida tia Loti – a irmã da minha avó – sentada num banco da marginal da praia, em Lourenço Marques. Bem à moda no fato de banho do seu tempo e despreocupada de convenções que à beira-Índico não faziam qualquer sentido, sorvia um momento de prazer num dia ensolarado e de ócio. Um outro Portugal que também sempre existiu. Foi assim durante toda a vida. Alegre e contente com a sua sorte, fosse ela alternando os bons e os maus momentos. Muito despachada e com uma inesgotável energia, a tudo atendia. Foi a mais nova de quatro irmãs, todas lindas e senhoras de si e dos direitos de que jamais prescindiram.
A Loti queria era viver, tratar da sua vida e dos seus e arranjava ainda o tempo necessário para passear na rua e nos jardins, ver montras, fazer excursões e com os demais discutir política e costumes. Dizia o que bem lhe apetecia, num meio que era muito mais liberal que aquele em que a Metrópole se deixara abater. Costumava pronunciar a clássica frase feminina … “com pouco podemos fazer muito”, coisa enigmática de difícil compreensão e que servia antes de tudo, para incentivar quem dela se aproximasse.

Partiu deste mundo há uns cinco anos. Sentindo-se indisposta e com dificuldades respiratórias, chamou uma ambulância que a levou para o hospital. Quando ali chegou, implorou que não lhe colocassem tubos de ar, mas sim uma máscara de oxigénio. Apavorava-se com a perspectiva de sufocar e as tubagens sempre foram um motivo de medo. Não fizeram caso da demanda e pouco depois, aconteceu precisamente o que temera durante tantos anos. Eclipsou-se em segundos, perante um misto de espanto e indiferença de quem a rodeava.
Uma injustiça para esta portuguesa que sempre soube ser um exemplo de emancipação e decência, conceitos inseparáveis e convenientemente conotados com a mais restrita actualidade de cada época. Pois sempre houve quem assim tenha sido. A prova? Uma simples foto pin-up da tia Loti.

Na mesma época, a sempre sorridente Loti

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Belo texto e gente gira!

  2. Ora cá está um texto a sério sobre o dia da mulher!

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