A Brasileira do Chiado

Os cafés de Lisboa foram espaços do património e da história da cidade, coabitados por muitas gerações de intelectuais, personalidades de todas as artes, políticos e de outra gente que, apesar de anónima, desfrutava do prazer de convívios e conversas; convívios e conversas que preenchiam um extenso arco temático.

Os modernos estigmas de civilização e de modos de vida ditaram, entretanto, transformações profundas. Dos hábitos coloquiais, vividos à volta da mesa do café, acabámos por chegar aos dias de patéticas práticas de vida individualista e solitária. Uma tristeza. Nos balcões dos cafés, e não nas mesas, vejo mulheres e homens que mordem, a todo o vapor, tostas mistas, sandes de ovo com alface, ou não sei o que mais, servindo-se de uma bebida que corre, garganta abaixo, à velocidade das águas das ribeiras carregadas de chuva diluviana. Mal falam. As poucas palavras são para a empregada ou o empregado. Fazem o pedido e, no fim, perguntam: “quanto devo?” – A seguir partem, pensando e falando apenas de si para si.

Sem capacidade de resistir a esta desumana forma de vida, grande parte dos cafés de Lisboa, mesmo dos mais históricos, encerraram as portas e deixaram de sorrir para a cidade e suas gentes. Converteram-se em dependências bancárias ou em lojas de comércio abstruso, típicas do consumismo em voga.

Nos antigos espaços do convívio e da cultura, passámos, pois, a ter o gerente bancário Sousa a tentar vender o crédito para uma viagem à República Dominicana ao casal de namorados; ou a menina Vanessa a aconselhar a outra jovem um conjunto de mini – saia prateada e da blusa preta com a inscrição ‘Look at me, Love!”. O estrondoso sucesso é garantido, logo à noite, na festa da espuma – afiança a Vanessa. De facto, coisas destas fazem parte da espuma dos nossos dias.

Mas como de hecatombes e tempestades há sempre alguém que se salve, remanesce um número residual de cafés lisboetas que ainda conservam traços da história da cidade. Acima de todos, coloco ‘A Brasileira do Chiado’ inaugurada em 1905. Nas tardes das minhas deambulações pela zona, entro na ‘Brasileira’ com espírito idêntico aos devotos que acedem à Igreja de S. Roque que lhe está próxima. Olho para a sala, e em muda prece, oro em honra desse espaço e pela sua existência perene. Hoje, senti vontade de sonorizar esta oração, e desejar com muita fé que não venha de lá um Mc Donald´s igual ao que já nos levou a ‘Colombo’ e o ‘Café Roma’, entre outros.

Comments

  1. Carlos Loures says:

    O Café Chiado (onde hoje está uma companhia de seguros), era outro local de reunião uma tertúlia onde pontificava Gualdino Gomes. Não o cheguei a conhecer, mas vi muitas vezes Aquilino Ribeiro que parava pela Bertrand e ali aparecia com frequência. Antes fora o «Marrare do Polimento», inaugurado em 1 de Janeiro de 1820.
    Há um livro de Marina Tavares Dias, «Os Cafés de Lisboa», muito bom, mas que não esgota o assunto. O seu texto é muito interessante e a mim que, na segunda metade dos anos 50 até ao princípio dos 60, vivia pelos cafés, diz-me muito. Um texto de serviço público, diria o Luís Moreira.

  2. Carlos Fonseca says:

    Obrigado, Carlos Loures. Conversei em cafés, estudei em cafés, conspirei em cafés, joguei bilhar e xadrez em cafés. O meu café era o Império, mas conhecia todos os outros. Devo muito à chamada ‘cultura de café’.

  3. Luis Moreira says:

    Passei uma parte importante da minha juventude a estudar em cafés. No Palladium, mais exactamente, mas sempre que podia não deixava arrefecer um cafezinho neste cafés de culto, ver de perto as figuras e os figurões, e as mulheres que os acompanhavam, coisa que eu nunca percebi bem, eram giras e os gajos uns canastrões.

  4. ricardo says:

    Caro Carlos Fonseca
    A meio da leitura senti um aperto no coração, daqueles maus, ocorreu-me que a Brazileira ia fechar!…
    Fiz agora rápidamente as contas e já passei, no minimo, 6000 fins de tarde na Brazileira, não contando com as bicas rápidas, durante a manhã e depois do jantar.
    Foi na Brazileira que conheci muitos dos meus amigos. Foi na Brazileira que começaram e acabaram muitas das minhas paixões. É o primeiro lugar onde vou quando chego a Lisboa.
    Por favor, se algum dia souber que a Brazileira vai fechar, avise-me. Mas avise-me com calma!…

  5. Carlos Fonseca says:

    Caro Ricardo, julgo que fechar a Brasileira seria um grave ofensa a Lisboa. Mas vou por-me em campo…

  6. ricardo says:

    Claro que ninguém vai fechar a Brazileira. Mas, neste País, vejo tanta coisa que julgava impossível, que apanhei um susto.
    Abraço

  7. Carlos Loures says:

    O «Império», no edifício do cinema, estava também nas minhas rotas, embora parasse mais num café mais pequeno – a Maria Monteiro é cliente – o «Pão de Açúcar». Mas o «Império» (hoje ocupado, salvo erro, pela nefanda Igreja Maná, era espectacular. Um conto que em tempos escrevi, começa lá. Lembro-me do grande friso escultórico do piso inferior. Uma maravilha. Quanto à Brasileira, já está muito modificada, mas ao menos que a deixem continuar a existir.

  8. Carlos Fonseca says:

    Também frequentei o Pão de Açucar; aí, aos sábados de tarde, juntava-se a minha tertúlia da bola.
    Quanto ao Cinema Império e o Estúdio foram salas onde vi filmes que perdurarão sempre na minha memória – “Servidão Humana” foi um deles. Mas no Cinema Império também assisti ao 1.º Festival de Teatro da Casa da Imprensa, ganho por uma companhia andaluza com ‘Casa de Bernarda Alba’ de Llorca. A irmã do poeta recebeu o prémio sob uma intensa e emocionante ovação. Outros tempos…

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