O que hoje é pedofilia ainda ontem era arte

Ganimedes, príncipe troiano, era uma bela criança por quem Zeus se apaixonou. Incendiado de paixão pelo rapazito loiro, Zeus  (que era, no que respeita aos prazeres sensuais, um omnívoro) transformou-se em águia e, descendo dos céus sobre o indefeso Ganimedes, raptou-o e levou-o para o Olimpo, onde consumou a relação que,  aos olhos de hoje, não escaparia a ser classificada como pedófila.

Na Praça da República, no Porto, exactamente em frente ao varonil quartel militar, garante do comportamento ordeiro, há uma bela estátua do escultor Fernandes Sá que representa o rapto de Ganimedes. Se o leitor fizer a experiência de se colocar de frente para a estátua, verá como ela lhe surge emoldurada pelo edifício do quartel, quase se diria protegida sob a alçada militar.

O pobre Ganimedes lá está, de pirilau à mostra, sentado no dorso da águia lasciva, a caminho do Olimpo. Os transeuntes passam sem ver, e talvez haja algum que pretenda decifrar na figura uma alusão à juventude benfiquista. A quem ocorreria que se pudesse colocar uma celebração da pedofilia numa praça onde as famílias trazem as criancinhas a correr pelo jardim, e ainda mais em frente a um quartel?

(Wikimedia Commons)

A estátua é de 1910, e o mundo, já se sabe, mudou muito desde então. Por essa época, Thomas Mann publicava “Morte em Veneza”, que daria origem, mais de meio século depois, ao famoso filme de Visconti. Filmada com a sumptuosidade habitual do cineasta italiano, a história de Gustav von Aschenbach desenrolava-se numa sucessão de planos de grande beleza plástica, ao som do melancólico adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler.

Dirk Bogarde, um dos grandes do cinema europeu, deslumbrava com a sua interpretação assente num equilíbrio dificílimo entre a contenção e a paixão avassaladora que tomara a sua personagem. Silvana Mangano era a escultural mãe do efebo, bela como uma deusa no Olimpo, etérea, inatingível. E depois havia o jovem Tadzio, esse autêntico Ganimedes, representado por Björn Andrésen, um dos mais belos rostos que o cinema nos ofereceu.

Bjorn Andresen em "Morte em Veneza"

É certo que nada acontece entre Aschenbach e o adolescente Tadzio, a não ser uma subtil perseguição e uma longa troca de olhares. Não há contacto físico, nem sequer um aperto de mão. Mas a perturbação está lá, assim como estão a busca, o fascínio, o desejo. Filmados com bom gosto, com extrema cautela, com delicadeza, sem dúvida. Mas, ainda assim, o que vemos é um cinquentão, atormentado pela ideia de que a vida se esvai a cada instante, perseguindo um rapazito de treze anos pelas ruas tortuosas de uma cidade tomada por uma epidemia de cólera.

E tal como Mann o escreveu, e tal como Visconti o filmou, não o recriminamos, não nos horrorizamos com este sentimento, não maldizemos o homem capaz de tão ignóbil paixão. Antes o seguimos pelo Lido, acompanhamo-lo nos meditativos passeios de gôndola, e não sabemos se chorar-lhe a morte patética, se respirar de alívio.

Se muitas vezes a arte vai na dianteira, outras tantas demora o seu tempo a acompanhar as mudanças de costumes. Poder-se-ia hoje filmar a história de “Morte em Veneza” sem enfrentar uma recriminação mais ou menos generalizada?

De resto, já na sua época o filme esteve quase a ser morto à nascença. Conta Dirk Bogarde num dos volumes da sua autobiografia, “An orderly man”, que os produtores americanos não acharam nenhuma graça à história e terão sugeridos muitos cortes e, talvez, um final feliz.  Ao que Visconti terá respondido, ainda segundo Bogarde: “Como posso eu dar a Thomas Mann um final feliz? Trata-se do que ele escreveu, da sua concepção, da sua história, é sacrossanto!”.

A situação acabou por resolver-se de forma improvável. O filme foi exibido perante a rainha Isabel II numa noite de caridade a favor do recém-criado fundo “Veneza em Perigo”, que se propunha amealhar recursos para a salvação de Veneza, já então prestes a afundar-se. A rainha fez-se acompanhar dos seus filhos, ainda crianças, e tudo correu pelo melhor.

O filme foi finalmente deixado seguir o seu rumo nas salas de cinema de todo o mundo, e Björn Andrésen, o jovem Tadzio, haveria de ser perseguido toda a vida pelas dúvidas alheias quanto à sua sexualidade, e haveria de queixar-se de ter sido levado por Visconti a bares gay, por forma a preparar a sua personagem, onde homens feitos olhavam com luxúria o rapazito que o cineasta considerava o mais bonito do mundo, e a quem, para não estilhaçar o fascínio, não deixou abrir a boca durante todo o filme.

Mas, como sabemos, Veneza não se afundou e Björn sobreviveu.

Tal como Ganimedes, que passaria a eternidade a servir ambrosia, o manjar dos deuses, no Olimpo.

Björn Andrésen actualmente

Comments

  1. maria monteiro says:

    a pedofilia continua a ser arte… cada vez mais se descobrem obras mas os autores são sempre “desconhecidos” … até parece que são protegidos por alguma invisibilidade divina

  2. Excelente post. Disse aquilo que muitos não vêem, outros se recusam ver e outros calam.

  3. Carlos Loures says:

    Os conceitos, os comportamentos, são próprios de cada época. O actual conceito de pedofilia era inexistente. Reis de idade adulta casavam com garotas impúberes, as violações não eram assim tão mal vistas como agora… etc. Belo post, Carla – tenho de arranjar outra maneira de dizer isto, mas hoje ainda vai assim.

  4. Luis Moreira says:

    Belo poste Carla. Lembro-me muito bem deste filme e da perturbação que me causou à época. Vi-o no extinto Monumental à Praça do Saldanha!

  5. ricardo says:

    Gostei muito do post. Já tinha visto a estátua de Fernandes Sá e já tinha perguntado a mim próprio…porquê?! mas… fiquei-me por aí…
    Gosto do Aventar porque é um sitio onde se lêem textos bonitos e onde se aprendem coisas interessantes.

  6. Carla Romualdo says:

    Pois é, apesar das tristes notícias que fazem manchetes de jornais, temos avançado bastante na tomada de consciência da necessidade de protecção à infância.
    Agradeço a todos e aproveito para fazer uma ressalva que só por lapso meu não consta no post. Foi através do Prof. Mário Cláudio que tomei conhecimento da estátua de Fernandes Sá e do mito de Ganimedes e desse esclarecimento nasceu este post. Por isso estou-lhe grata.

  7. XicoAmora says:

    Não li o livro de Mann, mas vi o filme. Tenho dúvidas que se trate de um desejo pedófilo tout court. Pareceu-me mais um amor pela juventude perdida, por um tempo perdido, pela beleza própria de se ser jovem. Nunca me pareceu haver pulsão sexual no sentido físico. Contudo, deveria ler o original para verificar.
    Todos os velhos amam e gostam de admirar os jovens. Por essas razões. Como se projectassem no futuro através deles.
    Quanto ao resto…abstenho-me de comentar.
    Mas não deixa de ser uma maldade porem em confronto as duas fotos de Bjorn.

  8. Carla Romualdo says:

    Não é uma maldade, XicoAmora, apenas dá razão à sua leitura da obra

  9. carlos ruão says:

    uau…
    … até ia dizer alguma coisa (longa, como sempre) mas proibo-me para não replicar passados e desentendidos recentes 🙂
    … a pretexto de ganimedes … falar do mann/visconti é sempre… não há adjectivo à altura.
    … tens bom gosto, rapariga !

    ps: procura o esboço que o Miguel Ângelo debuxou para o mesmo tema mas nunca pintado…

    ps2: o platonismo onírico do aristocrata luchino, embora aparentemente antagónico aos desejos luxuriantes de zeus, não deixa de ser um exercício conseguido, pela capacidade deste último em evitar a inseminação directa, optando antes por artifícios da fauna e flora para procriar, numa manifesta impossibilidade biológica.

  10. Carla Romualdo says:

    Caro Carlos Ruão, agradeço o comentário e as sugestões. Vou procurar o esboço de que falas. Mas bem podias escrever um post sobre isso, não te parece? Seria um contributo valioso. Um abraço

  11. Um trabalho muito bonito e interessante, Carla. No entanto, penso que o título não corresponde à verdade. Eu penso um pouco como XicoAmora. Em “Morte em Veneza” não me parece que se trate, propriamente, de um desejo pedófilo, no conceito vil e repugnante, pelo menos para mim assim o é, deste nosso tempo. A hipotética homossexualidade, quer na obra de Thomas Mann quer no filme de Visconti, parece-me um fenómeno lateral, e, sobretudo, muito fora de qualquer contexto miserável e mixordeiro em que se insere o fenómeno da pedofilia, tal qual a conhecemos, nos dias de hoje. Achei o livro e o filme de uma beleza invulgar, e nunca me tocou qualquer ponta de rejeição, a mim, que abomino essa execrável cobardia dos pedófilos. Sempre me pareceu que a atracção de Gustav se centrou, de facto, na inesperada aparição e concretização da beleza e da perfeição, como reflexo da beleza intemporal e do sonho da beleza e perfeição que, no fundo, ele procurava e gostaria de ter e atingir, beleza e perfeição a que, no fundo, qualquer ser humano aspira, sobretudo aquele ser humano dotado de um profundo sentimento poético e da sensibilidade de um artista(Thomas Mann, Visconti) que tem a sorte de rondar as esferas da dimensão universal do ser humano.

  12. carla romualdo says:

    Adão, concordo com a tua leitura, e aprecio muito o livro e, caso raro, ainda mais o filme. Mas se a história permite essa leitura não linear, poética, quase metafísica do fascínio pelo adolescente, tampouco descarta a outra, presa de desejos menos elevados. E para muitos dos que viram o filme, acredito que tenha sido essa a interpretação que prevaleceu. Talvez hoje, numa altura em que somos bombardeados a toda a hora por histórias sórdidas, seja mais difícil olhar esta história como a bela metáfora que tu descreves.

  13. Mesmo hoje, apesar da onda de histórias sórdidas que enxameiam todos os quadrantes da nossa sociedade, muito especialmente a igreja católica, eu penso que a história terá de ser sempre olhada através daquela que dizes ser uma metáfora poética. A isso nos obriga a grande classe do escritor e do cineasta. Retirar completamente a sexualidade da cena seria muito difícil ou praticamente impossível. Daí, a meu ver, o grande mérito do filme. Exactamente aquilo que me parece ser a procura da eliminação possível da sexualidade em sentido biológico. Tavez por isso Visconti tenha preferido um adolescente a uma adolescente. De outra forma, ainda que bem feito, o filme acabaria por ser mais um filme. E ele perdurou na memória de todos como poucos. Acredito que muita gente veja o filme distante dessa forma poética e quase metafísica, mas…não seria de esperar que assim não fosse. Este é o meu modo de ver, não quer dizer que as coisas sejam como me perecem a mim.

  14. carla romualdo says:

    Olha, Adão, importa pouco quem é que tem razão (se é que se pode pôr a coisa nestes termos), os teus comentários enriquecem, e muito, o meu post, por isso só tenho que agradecer-te

  15. Pamylla says:

    Gostei bastante do post. Sou acadêmica de Direito e minha monografia será sobre pedofilia e agressão sexual contra crianças. A pedofilia na literatura e nas artes em geral me chama muito atenção, pois reforça a ideia que defendo de que nem todo pedófilo é um agressor sexual. É claro que em muitas obras que tenho lido para um capítulo dedicado exclusivamente à pedofilia e agressão nas artes, muitos pedófilos tem sim realções sexuais com suas amadas crianças. Mas o que leva a gostar desse assunto é que pode-se chegar ao sentimento do pedófilo, se ele se angustia ou não com o instinto sexual que tem.

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