O fim de tudo

Às vezes (raras vezes!) fala-se de livros, o que é muito bom. E foi exactamente esse o ponto de partida para este texto. Um amigo, tendo lido o livro A Estrada (de Cormac McCarthy), comentou que lhe tinha provocado uma perturbação insinuantíssima e que entendia que depois da sua leitura já não éramos os mesmos. Ooops! Aluna e professor acharam que queriam experimentar “o veneno” puseram-se a ler o objecto perturbador, cada um por si, com a sensibilidade e o background próprios. Daí sairia uma reflexão, talvez à flor da pele, que fosse um desafio para outros – alunos, professores e tutti quanti. É o que lerão seguidamente.

Desolação. Profunda desolação. Duas figuras pouco mais que miseráveis caminham, caminham sempre. Um adulto e uma criança – pai e filho. E uma estrada omnipresente. Uma fita de alcatrão que é a sua obsessão. Há que percorrê-la para chegarà costa, à praia, ao mar. No fim de contas: nowhere. Cobre a natureza que os envolve uma poalha de cinza. Tudo é baço e escuro, tudo está morto, calcinado, e só a chuva parece ainda cair com a vida de outrora. Os dias sucedem-se e pai e filho transportam o medo num carrinho de supermercado que empurram. Ver, encontrar, confrontar-se com gente é um pânico: o inverso da condição humana, a associalização da vida.
Assistimos a uma poderosa alegoria do fim dos tempos. O homem depois do homem, ou o que resta dele. Um planeta negro que agoniza num naufrágio onde só existem restos e sobras de uma rapina. Contra a devastação física e moral, restam um pai e um filho que conversam – frases curtas e subentendidos escondem uma ternura que  perdurará até ao fim, no dia da separação. O rapazinho pôr-se-á ao caminho mas o desconhecido é o seu lugar. O leitor força-se a abrir a janela de casa. As cores e a vida ainda estão lá…

No meio de um mundo apocalíptico o filho pergunta ao pai, logo no início: “se eu morresse o que é que tu fazias?” E o pai responde: “Se tu morresses eu queria morrer também. / Para ires ter comigo? / Sim para ir ter contigo”. Neste pequeno diálogo está resumido toda a essência do livro. “A estrada” não é uma história sobre o fim do mundo. Passa-se num fim de um mundo, que não sabemos como acontece, ou quando, ou porque razão, mas o que interessa não é isso. O que importa são aquelas duas personagens, um pai e um filho, ligados por algo que parece que acabou juntamente com o mundo que eles conheciam: amor. É isso que os faz andar, andar muito, é isso que os faz não desistir. O pai não desiste e não se torna um selvagem por amor ao filho. E o filho supera os medos pelo pai. A razão pela qual nenhum desiste é o outro. Diziam-me que é um livro que muda as pessoas. Num sentido sim, devido à reflexão que provoca. Porque a lição é simples. Há poucas coisas que importam, muito poucas. E as que realmente importam são aquelas que no fim de tudo nos fazem continuar a andar.


Este texto foi escrito em conjunto, ou seja, por mim e por um professor. Desta maneira, será assinado pelos dois:

Daniela Major

Rui Gonçalves

Comments

  1. maria monteiro says:

    Não li o livro mas fui ver o filme com o meu filho no dia em que ele fez 18anos.
    O mundo que acaba mas não se sabe como… afigura-se o fim da humanidade como nós a conhecemos, há um regresso ao canibalismo e por meio um pai e um filho caminham levando na bagagem o amor, a dignidade humana… contra todas as intempéries procuram vida para além do “fim do mundo”.
    Um ponto marcante no filme é o pai que, invadido pelo pânico, cansaço, medo… deixa muitas vezes de ouvir as suplicas do filho… no final vê-se que o rapaz tinha razão… havia mais sobreviventes com decência humana… pode haver o “fim do mundo” em alguma parte do planeta mas não o fim da humanidade

  2. maria monteiro says:

  3. maria monteiro says:

  4. Luis Moreira says:

    Daniela, um texto maravilha!

  5. Bonito texto Daniela. O Aventar precisa também de boa literatura.

  6. Carla Romualdo says:

    Muito bonito, Daniela, parabéns

  7. O texto está muito interessante e foca o essencial. Fui ver o filme e é um murro no estômago, o filme mais grandiosamente desolador que fui ver nos últimos tempos. E o pior é que até reconhecemos mesmo alguns traços da humanidade.

  8. Ricardo Santos Pinto says:

    “Se tu morresses eu queria morrer também.»
    É isso tudo. Lindo!

  9. Daniela Major says:

    Obrigada a todos, é preciso só não esquecer que o texto não é só meu. Aliás, a minha parte é em especial o terceiro paragráfo.

  10. Daniela Major says:

    O filme vi, mas garanto-lhe que não se compara ao livro. Recomendo sinceramente.

  11. Daniela Major says:

    Ricardo, de facto essa passagem marcou-me muito. Até porque lembrou-me uma conversa que tive há uns anos com o meu próprio pai, devia ter mais ou menos a idade do rapaz.

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