Excelentíssimos professores doutores

Lembram-se de “Annie Hall”? Da cena da fila no cinema? Um tipo está a debitar uma série de opiniões despectivas sobre Fellini, Beckett, Marshall Mcluhan, etc, para grande desespero do Woody Allen, que se indigna com o que vai ouvindo.

Quando já não aguenta mais, Woody interpela-nos, a nós, espectadores, sobre o que fazer numa situação destas. O tipo ouve-o, vem pedir-lhe explicações, e acaba a gabar-se de leccionar a cadeira de “TV, Media e Cultura” na Universidade de Columbia para justificar as suas opiniões sobre McLuhan.

Perante isto, Woody vai buscar o próprio McLuhan, que, pasme-se, estava ali mesmo, para que ele diga, na cara do opinador, que ele não entendeu nada sobre o seu pensamento e que não percebe como é possível que tal pessoa possa leccionar essa matéria. Desabafa Woody para a câmara: “Se a vida real fosse assim…”. Vale a pena rever esse excerto, embora infelizmente sem legendagem em português:

Nem sempre estou de acordo com o Woddy Allen mas desta vez alinho com ele sem hesitações. Haverá gente mais irritante do que aquela que, a coberto de um inatacável mérito académico, impõe a sua interpretação sobre determinada corrente de pensamento, ou autor, ou obra artística, justificando o seu mérito pelos galões acumulados, e rejeita liminarmente qualquer opinião contrária não pelo seu demérito mas pela ausência do respectivo selo de respeitabilidade académica?

Não apeteceria sacar do autor em pessoa, escondido mesmo ali ao lado, para ouvi-lo dizer: “Vossa Excelência não entendeu nada da minha obra e do meu pensamento, não sei como poderá ter a seu cargo o ensino dessa matéria”?

Tenho um grande, enormíssimo respeito pela sabedoria. Ser sábia é, aliás, a minha maior ambição na vida. E considero que a sabedoria é indissociável do gosto da partilha. Parece-me que aquele que é sábio aspira a que essa sabedoria cresça à sua volta e frutifique, e, como tal, assumirá com gosto e alegria a missão de partilhar o que aprendeu, de alimentar o gosto pela aprendizagem naqueles a quem possa chegar, directamente ou indirectamente.

A figura do sábio, que, por vezes, até coincide com a do académico, corresponderá, quanto a mim, a alguém que não puxa de qualquer galão para vanglória pessoal, nem olha com desprezo os esforços daqueles que tentam, com  esforçado interesse, buscar o conhecimento, por tortuosa que possa parecer-lhes essa busca. Tampouco vê com desdém os colegas que, nessa intenção de partilha, decifrem a ininteligibilidade dos discursos cifrados para especialistas, simplificando-os, sem com isso adulterar o seu sentido nem apoucar o seu alcance.

Quem não alia à erudição a humildade e o prazer da partilha bem poderá lançar sobre a mesa os cartões-de-visita onde pontificam os graus académicos, e ditar as suas sentenças definitivas sobre qualquer que seja a matéria em que é versado, que dificilmente ali se vislumbrará a sabedoria.

Claro está que num país de doutores, a sabedoria vale pouco se não vier precedida de títulos honoríficos.

Comments

  1. Talvez... says:

    Lembrou-me de certo documentário em que um professor da Universidade da Columbia dizia, com toda a convicção, que x não podia ter sido causado por electricidade estática porque a electricidade ainda não tinha sido descoberta (referia-se a tempos antes da era Cristã). Disse o mesmo da radioactividade.
    Pergunto-me o que responderia quando lhe perguntassem como respiravam nessa altura.

  2. Carlos Loures says:

    A erudição fica bem apoiada por diplomas. Nada lhe acrescentam, mas confirmam-na. A estupidez, quanto mais numerosos e sonantes forem os títulos académicos, mais ridícula se torna. Texto oportuno e certeiro, Carla.

  3. maria monteiro says:

    também podemos acrescentar o “Reverendíssimo”

  4. ricardo says:

    Nunca ninguém sabe tudo e é preciso ter a humildade de reconhecer exactamente isso.

  5. Luis Moreira says:

    No fim da vida tudo se resume a uma sabedoria. Dá pelo nome de bondade!

  6. maria monteiro says:

    Luís é melhor irmos sendo bondosos ao longo da vida porque nunca se sabe o que nos espera o minuto a seguir

  7. carlos ruão says:

    eh pá, eu tinha quase proibido a mim mesmo fazer mais comentários aqui porque, como professor doutor (arggg), académico (argghhh) e «gótico» (uuuiii), homem homérico e ao mesmo tempo homem «pop», toda a gente me caía em cima mas, enfim…
    … pelo menos não «estrafego» este blog com entradas minhas que denunciam as minhas mediocridades – i.e. os meus poemas e os meus desenhos, as minhas memórias e coisas quejandas, pois não percebo nada da teoria das super-cordas e, para além do mais, o meu cérebro só começa a funcionar quando leio kierkegaard – o que, desde logo, já diz tudo !!!!

    … mas, a cena que relatas do «annie hall» é uma das minhas máximas, um «must» que, por acaso, tenho por hábito contar nas minhas aulas no ensino superior – uuiiii…., a sério, será possível ???? – como exemplo da nossa mediocridade (académica).

    … claro que aquilo que aqui diz o carlos loures é a mais absoluta verdade mas, enfim, ele é excelente…

    … continuo a pensar que nós, profs. do ensino superior – que nem sequer temos direito a subsídio de desemprego, uau, fantastiK – somos o cancro deste país.
    .. por isso é que merecemos ser identificados com o gajo da fila 🙂
    … ao fim e ao cabo, ou como dizia um dos meus amigos de reserva, ao cabo e ao fim, nunca fizemos psico-pedogógias, portanto, não sabemos ensinar… e mais do que isso…
    … vá lá, pelos menos conseguimos cumprir os diritambos fisiológicos, o que já não é mau….
    … (isto esquecendo uma outra máxima woodyolesca que diz…. quem não sabe, ensina!!)
    … mesmo que o ensino universitário, como penso que sabes, carla, nada tenha a ver com ensino tradicional… mas sim com a «universitas» (pergunta ao carlos loures, já agora…)

    gostei mesmo. parabéns. nós somos mesmo assim !!!

    … somos muito pior que o zé sócrates, eh eh.
    … voces têm que fazer qualquer coisa para eliminar este cancro de 80% de prof. do superior que estão a contrato, sem oportunidades de carreira e a viver de bolsas desde a licenciatura…. eh eh eh. grandes professores doutores… ninguém fala disso pois não???
    … mas se derem cabo de nós, o país volta a pensar ao alvor do quinto império….
    … e então, o Norte finalmente dará cabo dos mouros e tudo ficará limpinho…
    (espero que os ciganos sejam também expulsos, porque o meu sonho é mesmo levar a minha portugalidade e erudição académica com uma musikinha cigana a acompanhar – e não precisa de ser a no smoking band do kusturica, esse grande académico do cinema europeu)

    ps: mas já agora, para que se saiba, grande parte de nós nunca terminaram o curso num domingo, tal como nunca tiveram uma nota inferior a 14, e somos poucos o que usaram fatos académicos porque bebiamos demais ou fumavamos charros ou outras coisas, mas desculpem-me, gostaria de ter sido mesmo mau e ter sido prof do ensino superior vindo das juventudes partidárias, mas não consegui !!!!

    ps2: descupa, não enfio o barrete… mas garanto-te, concordo contigo.
    … não estamos cá a fazer nada.
    quem é que estará ?????????

    ABAIXO OS PROFESSORES DOUTORES E AS UNIVERSIDADES PÚBLICAS, CARAGO!!!!

    ass: anarquista do vale, prufessôr dôtore contratado a prazo com honra e distinçouñe e docente de muôda e midia e arte e diesiegn.

    ps#: oh pá, até tinha algumas coisas bem mais graves a dizer-te mas tinha que levar em cima com todos os teus fãs do blog e isso não aguento pois sou fisicamente muito frágil LOL. para além do facto de, como acamédico, não respondo ao povinho, eh eh, esta foi boa não LOL.

    ah, como tudo é fácil quando toda a gente existe digitalmente….!

    ass. anarquista do vale.

  8. Carlos Loures says:

    Belo comentário, Carlos Ruão. Tenho a certeza de que a Carla não quis ofender os grandes professores universitários que tivemos e temos e aos quais tanto devemos. Eu com o meu comentário, também não (apenas quis sublinhar a irremediabilidade da estulticia, a que não há títulos que valham).
    Um poeta, o Guerra Junqueiro, segundo creio, afirmou que para que da Universidade de Coimbra saísse alguma luz, só pegando-lhe fogo. Não estou de acordo (e ele que tantos anos por lá andou, certamente que também não) – de Coimbra, Lisboa, Porto, das suas universidades, tem vindo muita luz e, claro, algumas trevas também. Não incorrendo em generalizações, e para que conste, reafirmo o meu respeito pelos mestres dignos desse nome.

  9. ricardo says:

    Olhem-me só o prof doutor académico, tenho tanta pena dele, coitadinho do anarquista, coitadinho do homem gótico, homérico e ao mesmo tempo homem «pop». Ele é tão inteligente, ele é tão giro, tem tanta graça, teve sempre notas acima de 14, fumava charros, bebia demais…bad boy…mau mau….-olha que a mamã não anda se anda a esfalfar a trabalhar para andares a estourar a mesada nas p…..
    acima de tudo toca-me pela sua humildade…tadinho.
    não responde ao povinho…o gajo é importante…
    opá, vai dar banho aos cães com essa conversa

  10. Carla Romualdo says:

    Agradeço a todos os comentários. Carlos Ruão: pensei que fosse evidente, mas pelo vistos não é, que eu não pretendo identificar o tipo da fila com todos os professores universitários deste país. Só com alguns.

  11. carlos ruão says:

    minha cara, será preferível ter um cão de fila que pensa que percebeu o mcluhan (como se fosse uma coisa do outro mundo) ou ter um gajo que tudo o que conhece leu na wikipédia ?

    tou farto de hipocrisias e como bem vês, o comentário supra das 11.39 define muito bem a coisa
    (de facto, a ironia e o sarcásmo são coisas acessíveis a poucos mas enfim, os hábitos de leitura são hoje coisas ultrapassáveis, como bem sabes!)

    enfim…

    ora pensa lá, valerá a pena ?

  12. Carla Romualdo says:

    Não me obrigues a escolher entre um e outro, dispenso ambos.
    E não faças essa pergunta que aparece já por aí alguém a citar o Fernando António e aí é que temos o caldo entornado.

  13. ricardo says:

    Afinal o professor doutor, académico e «gótico», homem homérico e ao mesmo tempo homem «pop», não enfia o barrete e começa por dizer que não comenta e comenta em grande. Depois diz que não responde ao povinho e responde…depois o fulano lê…, vejam bem e não lê qualquer coisa…epá, o fulano é dos poucos que tem hábitos de leitura…o que não é para qualquer um. Até essa coisa da ironia e do sarcasmo ele sabe o que é, poça o gajo é mesmo culto…vou já ver à não sei quê pédia o que é isso do sarcasmo…será presunto?…

  14. ricardo says:

    Bem, fui ao dicionário e sarcasmo não é presunto.

    Significado de Sarcasmo
    s.m. Zombaria acerba, ironia mordaz.

    Aproveitei e também vi:

    Significado de Pedante
    adj. e s.m. e s.f. Pessoa que faz alarde de si, de conhecimentos ou qualidades superiores aos que possui; afetado; pretensioso; pernóstico.

    a ver se o nosso pseudo intelectual é capaz de pensar…

    “Quem sabe que é profundo busca a clareza. Quem deseja parecer profundo para a multidão procura ser obscuro porque a multidão toma por profundo aquilo cujo o fundo não vê, ela é medrosa… exita em entrar na água”

    ops…esta não vem na não sei quê pédia, se calhar está nas suas leituras…ah, ah…

  15. Talvez... says:

    ricardo :
    afetado; pretensioso; pernóstico.

    Afetado? Não me diga que os dicionários em Portugal já aparecem assim? (Lembro-mo-nos dos…. académicos que conjuraram o Acordo Ortográfico).

  16. Talvez... says:

    Corrijo, “lembremo-nos.”

  17. ricardo says:

    Fui verificar, na verdade, consta afectado. Não ser professor doutor, académico e «gótico», homem homérico e ao mesmo tempo homem «pop», tem estes inconvenientes, de vez em quando, erra-se. Peço desculpa.

  18. Talvez... says:

    ricardo :
    Peço desculpa.

    Não peça. Também eu me enganei. É humano.

  19. maria monteiro says:

    apenas recordando o passado…. na faculdade tive de tudo, bons professores, maus professores, professores assim-assim professores para todos os gostos e feitios mas também nós o éramos enquanto alunos… Ernâni Lopes , Jacinto Nunes, Victor Constâncio, Manuela F.Leite, Cavaco Silva … como colegas de “carteira” A.Mendonça, Vieira da Silva, Carlos Carvalhas…

    Os profs valiam por aquilo que nos ensinavam, pelas lutas que connosco travavam …… agora os nomes são os mesmos mas nem todos mantém as mesmas qualidades do antigamente e quanto aos defeitos…tornaram-se mais refinados …. pode ser que tenha a ver com tanto título acumulado… digo eu que… também me engano

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