o medo que o adulto tem da criança

para os homens que são pais.

filhas a rirem do pai

1. O problema.

Estou certo de que o titulo deste texto, não é um titulo que pareça ser verdadeiro. Até parece uma invenção da minha parte, propor que o adulto tenha medo da infância. Na nossa cultura ocidental bem como na maior parte das culturas ou modos e maneiras de pensar, a ideia parece ser ao contrário. Até as artes dedicam a sua estética a salientar o amor que a criança recebe. Amor do qual ninguém parece duvidar pela pratica do sentimento, um conceito de sui. Sentimento racionalizado que coloca outra questão. E esta outra questão é simples: porquê tanta insistência em amar os pequenos? Será por ser um sentimento nem sempre praticado? Será uma questão que tenta lembrar o tabu que significa o não tomar conta da infância? Assunto este que não parece problemático na quotidiana interacção social nem estimulante para pensar.

No entanto, é problemática para mim. Estou habituado a observar que o que é socialmente mandado e não obedecido, pode fazer mal. E, para que mal não faça, é reiterado como norma de comportamento entre as pessoas. Como é para os adultos o facto social de estarem devotados de criar a pequenada. Como é que a fidelidade entre adultos é parte do bem criar a infância. A não relação reprodutiva entre consanguíneos, tem feito parte de divisão social dos sentimentos, espalhados na interacção entre conhecidos e desconhecidos ao longo da vida. O respeito à lei, o temor à polícia, a aceitação das hierarquias, o desejo de bem-estar, é ideias culturais que o adulto deve transferir à infância, tal e qual a fidelidade e lealdade entre eles, já referida. Talvez, uma simples análise das histórias de crianças nos possa revelar a necessidade de enfatizar a valentia, o saber lutar, resistir, aceitar mas com critica. Donde, a insistência do amor i.e., respeito e cuidados do adulto pela criança, levanta questões em mim. Como deve levantar em muitos adultos, que se importam analisar a interacção adulta criança. Não posso deixar de reconhecer que há amor à pequenada, que a pequenada faz ilusão, que a pequenada é desejada entre as pessoas. Não há ninguém que não se queira ver reproduzido noutro ser derivado de si, em fazer berço dos braços para acarinhar esse ser feito. Em criar pensamentos que introduzam os mais novos dentro da vida social. Criança feita por nós, na relação íntima com mais alguém. Se acontece ser natural pensar, cantar, instruir, construir ideias para transferir, beijar, sorrir e lutar pelo ser que fizemos, porquê passa a ser necessário desenhar, cantar, escrever, debater, raciocinar, abstrair dentro da cultura um facto que parece ser normal? Não será necessário lembrar aos adultos o tipo de relações com a nova geração? Porém, ideias desenhadas para orientar esta interacção entre os adultos e  infância

2. A paixão.

Duas pessoas encontram-se um dia olhando-se nos olhos. Os olhos, a dita janela da alma do corpo. E do pensamento. E gostam, e os olhos sorriem e penetram profundamente no sentimento de quem aceita esse olhar sedutor. Nasce uma paixão entre esses seres até uma nova entidade humana nascer um dia. Novo ser resultado da culminação do amor entre dois. Cume que, no começo, nada tem de vendavais. E se vendavais houver, como falta de meios para alimentar, como pranto á noite, como fraldas, como cuidado que querem introduzir os pais dos pais, como falta de licença para fazer esse ser, como existência de outros afectos com outra pessoa, enfim, todos esses vendavais são abatidos pela paixão, é dizer, pela atracção dura e tensa de dois corpos que só se sabem entender e se procurarem. E mais nada a fazer. Eis que a mente humana criou o mito da concepção virginal para salientar a identidade de quem pode mudar a matéria e abater a morte. Em todas as culturas de todas sociedades. Donde, o ser feito é uma continuidade de dois adultos. Donde, o ser feito identifica os adultos sintetizados nele. É o que se diz ser complementar o amor. Amor, um entendimento do contexto do outro e um respeito a esse contexto, uma companhia a esse contexto. Uma idealidade de vida, uma amabilidade na vida a dois. Como a nossa sociedade manda.

É aí que nasce o primeiro medo do adulto à criança: o de interromper o contexto a dois, o entendimento a dois. Um rompimento da paixão se ela não incluir o novo ser que fez. Paixão que podia ser a três, a quatro, a mais, se se entender e sentir que todo novo ser é mais um membro do casal original e não um intrometido como tenho observado acontecer. Romantismo, pode dizer o leitor? Mas, quem pode procriar e amar e manter a paixão sem romantismo? Será a materialidade reprodutiva, a posse de recursos, a possibilidade de juntar pessoas e bens que guarda o amor, e o amor com desejo e compreensão, a paixão? Responda o leitor.

3. O trabalho.

Para criar, é preciso alimentar. Para alimentar, é preciso trabalhar. Para trabalhar, é preciso ficar fora de casa, longe dos pequenos às vezes; ou levar os pequenos consigo, quando for possível. Na nossa sociedade, nem sempre é. E a meninada precisa ficar só, longe dos progenitores, para os progenitores trabalharem para os alimentar e criar. Em tempos passados deste século que acaba e na nossa sociedade, um dos progenitores ficava em casa, o outro saia à procura de recursos. Quem ficava era sempre a mãe. Para o prazer da pequenada. A divisão do trabalho tem tido por base a diferença sexual. É a mulher quem transporta dentro de si o corpo do mais novo e , mais tarde, no seu colo; donde, a sociedade tem escolhido o corpo livre do homem para trabalhar fora do lar e fechar a mulher em casa. Caso seja economicamente viável para o lar. Inclinação social que tem permitido termos alguém socialmente adequado para criar os novos seres. Uma mãe é o membro do grupo social mais próprio para tomar conta dele. Que nem sempre existe no homem. E se essa inclinação é reconhecida e cuidada, a mãe tem um objectivo na sua vida: a de criar e tomar conta do crescimento, bem como da união entre os que crescem e de quem sai para trabalhar fora do lar. Contrapartida dolorosa para a fêmea, esse de ficar fechada em casa sem grupo social alternativo, sem autonomia, sem outra individualidade que ser mãe e não pessoa com uso social reconhecido. Porque ser mãe é apenas, infelizmente, uma escravatura. Produzir bens, é economicamente viável. Produzir produtores, é um fecho doloroso. Donde, a desconfiança das fêmeas de hoje de terem descendentes a ficarem largamente no seu colo, com a sua autonomia sempre abatida, como tenho observado na minha pesquisa. Bem claro está no mito central da nossa cultura, que a mãe intermédia, intercede entre dois grupos: o que cresce dentro do lar e o que sai fora do lar. Porque a criançada não entende esta distância. E, menos ainda, a necessidade da mesma. Calha à mulher explicar. Para a ajudar, a estética tem cantado louvores à mãe, tem criado uma imagem da mãe alegre e da mãe que sofre. Tem feito da mãe o centro da interacção. Em toda sociedade, acrescentaria eu.

Há grupos nos quais existem sítios especiais, separados dos homens, para tomar conta dos filhos. Para os criar. Nesses grupos, o objectivo social é reconhecer que a mulher faz uma vida com sentido, o que incrementa a sua auto estima. Pessoa sem tristeza, não isolada. Que entende porque a sociedade a entendeu. Eis um outro medo que o adulto tem da criança: a capacidade da própria não saber que ausentar é necessário, que ficar em casa é também preciso. Porque a pequenada pensa de forma diferente da do adulto. E sente de outra forma. Os seus sentimentos batem-se entre as emoções geradas para o adulto presente e para o ausente: a pessoa presente, cansa; a pessoa ausente, dá saudade. Nem repara essa criança, que o ser humano presente cria, cuida, toma conta, ensina, corrige; o ausente, pode dar alternativas ao seu comportamento bem, mais atraentes por causa de falar do mundo exterior que o pequeno não entende. E a mãe, por vezes, também não. O temor do adulto é a sedução imposta perante ele, pela criança. Imposição derivada dos seus parâmetros de querer entender as partes da vida que um dos adultos do lar conhece e o outro não sabe e vice-versa. Imposição que deriva em sedução por causa da diferente interacção: com um dos adultos, para não gritar de fastio; com o outro, para não gritar por ausência.

4. A mercadoria.

É a força para trabalhar e a moeda que produz. Para trabalhar, porém, para outro que tenha recursos produtivos. E saiba pagar. E quem é pago, saiba poupar. E quem poupe, saiba investir. Este conjunto de conceitos, faz mercadoria da pessoa e da relação. Numa sociedade onde o que se tem, é símbolo da hierarquia e do poder. Ter é ser. Não é apenas saber, dizer, pensar, exibir, acarinhar. Este conceitos todos, não são para ser, são conceitos ocos. Um dia, a mulher saiu de casa e foi também trabalhar. Ganhar. Ser social numa outra esfera. Passou a ser necessário, foi feito necessário. O consumo pedia mais produção. E para maior produção, a força de trabalho de toda pessoa pareceu importante. E a sociedade foi aberta para todos manipularem recursos. O primeiro, a entrega da pessoa em casa de outro, a limpar. Com recursos empilhados, as habilitações para os sucessores. E o consumo foi acrescentado a bens de exibição. Como os que tenho visto nas casas dos pobres que ganharam: salas fechadas para festas de família ou mostrar as visitas, ou ao investigador, ou para os vizinhos saberem e respeitarem. Para mostrar, no caso português de democracia mudada , ou espanhol de nova industria desenvolvida e monarquia constitucional, ou dos enriquecidos coloniais ingleses, ou alemães de pais unificado, ou holandeses recuperados da guerra, ou vitoriosos franceses da união europeia. Para mostrar, nas antigas colónias pelo mundo fora, que se vive conforme o padrão etnocêntrico que a Europa, essa nova proprietária do mundo, diz a partir do seu saber acumulado no tempo. E a mercadoria faz sair de casa a todo adulto capaz de produzir. Os primeiros, os pais. Donde, um outro medo à criança é o travão que esse ser coloca à actividade comercial dita doméstica. Definida por muitos de nós antropólogos, como o grupo que partilha o tecto e a panela. E que eu gosto dizer que é o centro de expansão de braços para as empresas. Conceitos que são difíceis para a criança entenderem e aceitar. E grita e berra, e teima e seduz, e procura aos seus na rua, ou na escola, faz sua família do seus pares e abandona por horas a casa em procura do entendimento não definido, da sua situação. Faz do adulto um inimigo a combater ou a extorquir para partilhar a riqueza que esse adulto traz e poder exibir o seu próprio poder de criança sobre o adulto. Criança que, adolescente já, entra na adição a essa família que lhe faltou e faz todo o que os seus amigos andam a fazer, ou, em segredo temporal, a consumir. A mercadoria separou a família e o conjunto de indivíduos domésticos analisam o agir do outro, sem entrar no contexto que ao outro, faz. Medo do adulto que se cura sem filhos, ou com apenas um, ou com a culpa que se transfere do social ao individual e sobre eles se bate. Ou se grita, ou se desorienta com exemplos de outra geração. Relação complexa que trava a paixão reprodutiva e a substitui por prazer individual e conjuntural.

5. A família.

Uma tramóia de andaimes afectivos deslocados. Afectivos; ou, no entanto, afectivos. Há emoções paternais, maternais, filiais, mudadas do modelo central herdado pelas gerações. Aí onde se pensava que o pai mandava e a mãe calava e obedecia, acabou por existirem duas vozes a orientar. Em dissonância normalmente. Duas autoridades ligadas às fontes dos recursos. E quem tem o recurso, tem o poder. Porém, duas visões mediadas pelo poder que partilham fora e exercem dentro. Com descendência a entender as diferenças a partir da sua própria pratica da vida experimentada com a família que criou fora do lar. Uma das autoridades, lembra que o seu pai era servido pela sua mãe e quer esse serviço; outra, que o seu pai trazia meios suficientes e sente que o seu homem o não o faz e quer passar a ser a entidade masculina do lar. Tensão esta que se reflecte na pequenada, que responde e se defende. Eis um outro medo dos adultos às críticas dos mais novos. Medo que não tem alternativa, devido aos conceitos diferentes que as gerações próximas estão a usar. O tempo dos adultos, todo necessário para eles, é controlado pela rapaziada que precisa atrair aos mais velhos do lar. Já tinha sido controlada no ciclo de vida prévio, o bebé a ser amamentado e a dormir horas diferentes que as horas adultas. Enquanto o ciclo passa e se transforma, a luta pela liberdade leva a luta do mais novo ao mais velho. O que faz do lar, um campo de batalha que já o adulto conhece e arrisca, até perder. E, o medo final, é entender com antecedência, a solidão que fica até acabar. De certeza, nem tudo é assim. De certeza, há o amor que entende o contexto e não transfere ao mesmo, a história conjuntural que o faz. Entende, organiza, distribui e acompanha. Existem filhos felizes que não dão medo ao adulto. Há pais fabricados e mães não abandonadas, bem como juventude sem rebeldia. Há os filhos que não dão medo ao pé da quantidade de outros que os meios de informação, usam para criar o mito final da autonomia individual da criançada. Autonomia individual hoje precisada para criar o mercado concorrencial do trabalho. Objectivo da vida social que parte ao adulto em duas metades: o amor que resulta da sua paixão, calma e serenidade; e a interacção que muda na história entre os indivíduos e as necessidades das empresas que deles precisam para criar o lucro que abate o amor. Facto que não é sabido ou sentido pelos indivíduos do lar e ficam a lançar faltas e falhas uns sobre os outros. O que eu denominaria o medo fundamental do adulto à criança. Com um medo suplementar: do homem fazer tarefas entregues por costume à mulher, e a mulher aceitar que a sua ligação aos recursos não a faz essa entidade masculina que sempre detestou por mandar tudo e todos. Mulher que arrisca a solidão dum lar com filhos, homem que arrisca ser o gafanhoto que anda de casa em casa em procura da perdida vida doméstica. Medos com culpa socialmente construídos e transferidos para dentro de intima interacção emotiva. Hoje é preciso ensinar economia no lar.

Bibliografia.

Faz parte do texto. Texto que tenho retirado da minha observação participante com adultos e crianças ao longo do tempo em Portugal, Espanha, Chile, Escócia, França, e aprendido, a traves de membros da minha equipa, de trabalhos que tenho orientado em outros Continentes. Os livros de Daniel Sampaio, José Gameiro, Filipe Reis, Ricardo Vieira, Henrique Gomes de Araújo, Luiza Cortesão, Stephen Stoer, Helena Costa, Paulo Raposo, Teresa Joaquim, Luís Souta, os meus próprios, os escritos de Telmo Caria, Amélia Frazão, Conceição Lopes, sugiro serem básicos para, eventualmente, desenvolver o saber do educador da infância. Saber derivado da prática e que precisa debate. O conjunto do publicado em Educação, Sociedade e Culturas, Afrontamento, Porto, bem como os artigos de A Página da Educação, Profedições, Porto. No cito autores estrangeiros, por aparecerem nos textos invocados.

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