Rikamba

Eram sete horas daquela tarde de Junho de 1973, e ninguém chegava. Quimba, tardava.

O Zé recordou o recado recebido ao telefone: “Às cinco no Largo da Mutamba, nas paragens dos machimbombos”.

Com alguma ânsia à mistura, Zé descobriu Quimba na sua camisa azul e calça branca, a dar cor e sentido a um andar desengonçado. De súbito tudo parecia bem, na hora certa, sem atrasos ou porquês.

“Toma” disse Quimba, entregando ao Zé um pardacento envelope: “Foi tudo que consegui arranjar em tão pouco tempo”.

Zé sorriu, após breves contas de cabeça antecedidas de um relance ao interior do envelope. “É mais do que suficiente para uma vida nova. Não sei como te agradecer”.

Quimba sorriu: “Um dia que eu precise de vida nova, ajudas-me tu a mim”.

Zé anuiu com convicção, emanando um sorriso.

“Rikamba!” disse o Zé, enquanto o abraçava.

“Rikamba!” retribuiu Quimba, juntamente com o abraço.

Aquele abraço entre Zé e Quimba foi o último contacto entre eles. Mesmo quando Zé olhou para trás, após afastar-se de Quimba uns 100 metros, já não mais o viu.

Volvidos 30 anos, Zé voltou ao Largo da Mutamba, desta feita na qualidade de “empresário de sucesso”, de passagem a bordo de um imponente jipe do Estado angolano. Acabara de fazer um contrato de fornecimento de bens alimentares para as cantinas militares, e dirigia-se para o aeroporto de Luanda com vista ao regresso a Lisboa.

“Porque é que insistiu em passar aqui na Mutamba?”, perguntou o militar de patente que o acompanhava.

De olhar incessante na busca de alguém, Zé respondeu distraidamente “Matar saudades…”.

“Pode sempre voltar noutro dia”, retorquiu o militar, já com timbre de impaciência.

Zé abanou ao de leve a cabeça, em sentido negativo: “Não conto voltar mais. O meu filho tomará o meu lugar”. Olhou de fugida para o militar que aparentava ter pouco mais de 30 anos, e retomou a sua observação ao Largo: “É tempo de dar lugar aos mais novos…”

“Aconselho-o a fechar o vidro. Pode ver tudo sem estar assim exposto”, disse o militar enquanto fechava o vidro da janela do Zé, cuja visão perdeu a definição natural do que observava com a barreira dos vidros fumados.

Um homem velho, de roupas sujas, pele curtida e calejada, abeirou-se  e disse algo que a insonorização do jipe blindado não permitia escutar, e Zé não quis que a atenção que devotava ao Largo, na busca de um roste de há 30 anos, fosse distraída por um qualquer pedinte de roupagem esfarrapada a arrastar sacos plásticos atrás de si.

“Vamos embora!”, disse com autoridade o militar, e logo o jipe serpenteou por entre o espesso trânsito.

Para trás, o velho negro deixou de esbracejar, os seus olhos humedeceram abundantemente. No seu rosto havia dor, nos seus lábios havia derrota. “Rikamba!…”, murmurou ele, “Rikamba!…”

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Zé Mário, ai de quem conheceu alguem hoje poderoso, antes de o ser…

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