Impunidade e justiça

Ele não morreu nem matou ninguém. Do mal o menos. Atrás de mim, ele esbracejava como um possesso. Mesmo sem nada ouvir, eu não tenho dificuldade em traduzir as palavras que esses gestos significavam: anda p’ra frente , lesma, mexe-te filha da puta, ó velho do caralho! O carro vinha mesmo em cima do meu, ameaçando, já não digo abalroar-me, mas tocar-me. Seguia pela marginal do Douro, do Freixo a Entre-os-Rios, estrada com muitas curvas e quase sempre com traço contínuo.
Sessenta, setenta era a velocidade do meu carro, velocidade legal e perfeitamente adequada ao trajecto. Acima desse valor tornava-se não só ilegal como perigosa. O gajo queria passar sem mal nem morte, e só não o fazia, mesmo nas curvas e no risco contínuo, porque a fila de carros em sentido contrário tornava a manobra impossível. Então, o bode expiatório do seu desespero era eu. Atirava-me com gestos obscenos, e gritos que eu não ouvia, perfeitamente condizentes com o fácies de atrasado mental que eu conseguia enxergar pelo retrovisor.

Por mim, em nada alterei a minha postura e a minha marcha. Até que a estrada se desfez por momentos das curvas, mantendo, no entanto, o risco contínuo. Vi logo que o animal aproveitaria aquele momento, a despeito de um carro que surgira de repente ao fim da recta. E como já conheço estas diárias aberrações mentais que infestam as nossas estradas de Norte a Sul, vi logo que ele ia esboçar o gesto de travagem brusca à minha frente. Claro que tomei as devidas precauções.

Ele não morreu nem matou ninguém, mas uns quilómetros à frente, ali para os lados de Gramido, afocinhou na valeta encolhendo a frente do carro até meio capot. Reconheci a pobre viatura, e reconheci o gajo a olhar com ar de lorpa para o carro vermelho. Vi que não havia vítimas. Apesar de o ter observado somente através do retrovisor, e de ele me ter perecido um néscio e um atrasado mental, a sua figura, fora do carro era de um gajo vulgar e normal. Para tristeza minha.

Como são os sentimentos humanos! Como pude eu sentir tão grande satisfação ao vê-lo estampado! Penso que esta minha pequena perversão não existiria se houvesse vítimas, mesmo que a única vítima fosse a própria alimária. Mas quando vi que era só chapa, soltou-se-me uma destas espontâneas e fundas gargalhadas que não sabemos de onde vêm, mas vêm certamente do eterno conflito entre a impunidade e a justiça, quando esta sai vencedora.

Comments

  1. Luis Moreira says:

    Adão, um dia ia eu para o Algarve, sem autoestradas, na tristemente célebre, recta de Pegões, um tipo fez-me o mesmo. Muitos me têm feito o mesmo, mas este desgraçado matou-se , a ele e à família na primeira lomba que encontrou, ao fazer uma ultrapassagem como me tinha feito a mim, uns Kms antes. Infelizmente não deu para dar gargalhadas mas foi uma lição que nunca mais esqueci!

  2. Ricardo Santos Pinto says:

    Excelente. Eu acho que não resistiria a sair do carro.

  3. carla romualdo says:

    é um lugar-comum mas realmente impressiona ver como pessoas podem transfigurar-se ao volante. Sentem-se impunes, intocáveis, atiram os insultos mais alarves, dizem e fazem o que nunca fariam num frente-a-frente. E não digo isto como sendo um pecado de que estou livre, já me excedi muitas vezes e envergonhei-me muito disso. Descarregar as frustrações ao volante é um exercício demasiado perigoso e demasiado desumanizador.

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