Portugal, essa minha criança

a primeira imagem da República de Portugal, faz 100 anos

Pensa-se que o amor à criança é genético. Entre a minha experiência dispersa por vários textos e livros, e a de Eduardo Sá, expressa, entre outros, no ano de 2003, diria que esse amor é resultado do convívio respeitoso, da acumulação de experiências na memória acumulada no decorrer do tempo ou história da interacção social entre progenitores e descendentes.
Poderia afirmar sem medo de me enganar que o amor não é genético, não é o acto de parir que o transporta: mas sim, o amamentar, acarinhar, beijar, cuidar, ensinar, que podem (e devem) ser exercidas por ambos os progenitores. A criança desenvolve-se no meio de percalços e de doenças, bem como entre estigmas de crescimento que o tempo vai marcando no seu ser e afazer, organiza a sua inteligência e estrutura a sua boa disposição, ou a sua saudade.
Portugal, essa criança também formada por mim, percorreu uma imensidão de experiências na comprida e larga jornada da sua cronologia de vida. O óvulo vinha do Império das Astúrias, os espermatozóides da Borgonha Francesa e do Reino de Leão, a descendência começa no Condado Portucalense, com herança genética denominada Foz Côa e Românica, essa infecção que cria a experiência somática denominada Província Lusitânia. Província, depois, cheia de bactérias cristãs e trespassada, em tenra idade, pelos vírus que todas as crianças apanham na luta entre a sobrevivência e a destruição das defesas que orientam o corpo a formar bactérias.
Defesa proporcionada por um longínquo vírus que transfere antídotos de imunidade visigótica e, mais tarde na contagem da sua vida, injecções corânicas a aplicar numa multidão de doentes para experiências dolosas denominadas (re)conquista. A criança precisou ser inoculada pela vacina cristã, retirada da medula da memória da espinha dorsal que percorre todo o território de um corpo em crescimento na passagem do tempo.
Vacina retirada da agressiva actividade desenvolvida pelo corpo púbere em crescimento, a esticar as suas pernas para além do berço, a cair com os pés perto do coração verde alface dos bons ventos da costela occipital do corpo. Vacinas extraídas dos pés materiais que acabam com a vulnerabilidade das infecções corânicas e submetem as bactérias à actividade da inoculação variólica cristã.
Inoculação primária, base do comportamento pretensamente sadio do interagir com outro indivíduos: não contagiar nem ferir, mas sim um credo a incitar a vida ecológica que cura e resguarda de doenças insuperáveis. Doenças como enfiteuse, jornas, salários, subordinação, invasão, conquista, designada também achados ou descoberta, mal que acontece em todo o corpo vacinado com o vírus cristão para criar defesas denominadas, mais tarde, concordatas.
Esta minha criança não aceita uma doença qualquer e, após tempos prolongados de servidão, derruba o conjunto de médicos parasitas do seu corpo, via restabelecimento de tratamento republicano: acamado na lei e na nova constituição, repousa até habituar o corpo a não depender de injecções compradas em sítios estrangeiros para seu soma e curar-se via democracia. Cura que parecia ser curta, e tão eficaz que, ao surgir uma outra infecção denominada ditadura, o corpo bem crescido desta minha criança, treme todo e acaba por atirar, sem mágoa e sem dor, essa nova infecção que percorria toda a Península Ibérica, Itália, Alemanha, grupos sociais das Ilhas Britânicas, rapidamente evacuados do foco do poder infeccioso pela vacina da abdicação.
A cura da democracia leva o corpo da minha criança a crescer em silêncio e, dentro do espírito do seu soma doente, desenvolve uma guerra de guerrilha ou aspirinas afrodisíacas, em imensas quantidades que alastram uma multidão de indivíduos doentes, para uma cura massiva e maciça que derrota o perigo de choque contra a saúde ganha na democracia.
Uma democracia que se instala de tal maneira no corpo da criança, que não precisa de ajuda nenhuma na continuação do pensamento sadio do seu soma, dentro de sistemas ecológicos de saúde permanentes denominados liberdade, igualdade, fraternidade, parlamento, sindicatos, eleições, leis, constituição reformulada, debate, partidos políticos, sistema judicial, livres de serem contagiados pelas doenças de outras estruturas do corpo como bancos, lucro simples, lucro de mais-valia, juros altos, rendimento mínimo não garantido, alianças para entrar em guerras não declaradas em sistemas imunológicos alheios ao próprio, preços altos, salários sem aumento, inflação declarada para travar o investimento de vacinas no corpo, que, às tantas, adoece, gasto pelas lutas de sobrevivência ao desemprego e na raridade de uma educação bem apoiada e devidamente subvencionada que permita a esta minha criança, a liberdade imunológica pela qual o corpo tem lutado ao longo de séculos, até se juntar aos outros sítios geográficos povoados com doentes como esta minha criança que ainda anda na puberdade.
Puberdade na lei, puberdade nos interesses públicos ou chamada de atenção para assuntos pessoais e não para assuntos sociais, como o direito à adopção, ao matrimónio livre, ou à opção de ter ou não filhos. Criança que ainda sofre a tutoría de uma ideia religiosa que habita no corpo e que nenhuma vacina, ou lógica histórica, têm sido capazes de tirar. Esta minha criança, preocupa-me. Esta minha criança, adoece-me. Esta minha criança, anda a ser mal gerida por más companhias além fronteiras do seu coração alfacinha. Esta minha criança já estabeleceu o seu código de honra para não se acamar outra vez, pouco respeitada por pretensos médicos que a desejam gerir.
Até quis deixar de ser solitária e casou com essa rapariga, a União Europeia, que lhe define lei e comportamento, medidas de gestão da força de trabalho e empresta injecções a prazo certo, devolvidas embrulhadas em desemprego dos membros ao se fecharem as torneiras que alimentavam e davam essa água necessária para continuar a viver com alegria e paz. Uma vida tipo Babeuf, uma vida sem as doenças que 1789, julgava-se, tinha acabado ao criar o soro da liberdade, soro, porém, com falta de componentes, como a igualdade e a fraternidade.
Esta criança ocupa-me, preocupa-me, mantém-me sem sono, as noticias dos jornais distraem-me do elo central do seu crescimento: a economia, ciência nunca ensinada para que esta criança soubesse gerir o seu corpo e nunca mais adoecer. Em democracia pacífica e sem debates inúteis entre os membros do corpo, para não cairmos nas doenças dos parceiros da cura denominada União Europeia ou na ameaça de doença pelo vírus descoberto da globalização, vírus enganoso ao permitir apenas a alguns juntar os seus aparelhos curativos: o lucro e deixar os restantes membros em perigo de contagio da doença: desemprego.
A minha criança ainda não acabou de crescer, mas acredito na sua fortaleza como a melhor defesa contra as bactérias e os vírus que amolecem o corpo, como o álcool e as corridas impacientes pelas estradas da vida.

Comments

  1. Albano Coelho says:

    Esse Império das Astúrias não será antes o velho Reino da Galiza? O primeiro território independente do Império Romano por volta do ano 500 dC, na época governado pelos Suevos. Em 572 reúnem-se no Concílio de Braga (capital da Galiza) os bispos de Braga, Dúmio, Viseu, Coimbra, Idanha, Lamego, Porto, Lugo, Íria, Chaves, Ourense, Astorga, Tui e Bretonha. S. Martinho refere que ali estão reunidos os “bispos da Galiza”. Entende-se assim o limite territorial de um país – Galiza – que incluía os três velhos conventos romanos junto com o território lusitano da Scallabitense (Viseu, Idanha, Lamego e Coimbra) e também o território da Cantábria provavelmente até ao rio Asón, limite histórico com os vascões (e a sua língua). É esta entidade político-administrativa que persiste até à declaração de independência do Condado Portucalense e depois. Este, originado pela partilha da Galiza entre as filhas de Afonso VI, Teresa e Urraca respetivamente com Henrique e Raimundo. A gênese de Portugal encontra-se nas lutas de poder entre os territórios galegos face ao crescente poder da Igreja, da Monarquia e da alta nobreza chefiada pelo Conde de Trava. A nobreza “portucalense”, acossada pelo poder nortenho, confiou a Afonso Henriques (filho de Teresa e Henrique) a tarefa de defender os seus interesses. Este arma-se cavaleiro com apenas 11 anos (em 1122) mas a rutura política com a sua mãe, apoiante dos Travas, remonta pelo menos a 1120. Dirige vitoriosamente as tropas na batalhas de S. Mamede (1128) e em 1139 autoproclama-se Rei de Portugal. A vitória na batalha de Ourique (1139) consolida o desenho de um novo Estado, apesar da condição de vassalo de Afonso VII. Só em 1179 o Papa Alexandre III o reconhece como Afonso I Henriques de Portugal. A gênese do novo Reino de Portugal é, portanto, incontornavelmente galega. É certo que nos séculos anteriores Galiza, Astúrias e Leão são entidades politicamente inseparáveis tendo o centro do poder oscilado várias vezes entre todas mas é da Galiza que irrompe Portugal e não das Astúrias ou de Leão. O Portugal “lusitano” é um mito da historiografia espanholista convenientemente aceite pela portuguesa. Ambas conspiraram (e conspiram) no apagamento da Galiza da História comum dos atuais estados ibéricos.

  2. Albano Coelho says:

    Errata: A batalha de Ourique foi em 1143.

  3. Raul Iturra says:

    Queria agradecer os comentários de Albano Coelho, que enriquece o meu texto. Essa História da hoje Galiza Ceibe e Socialista, é bem conhecido por mim, contada a mim por Ramón Pinheiro, amigo e discípulo de Alfonso Castelão, e a sua mulher Sara. Foi tão emotivo, que dediquei um texto baseado na teoria de como, por meios pacientes e falando com os sobreviventes da foto que encontrei húmida e destroçada no palheiro da casa Medela em Gondoriz Pequeno, a aldeia dos Medela. Foi o fruto de uma conferência proferida por mim, como narro no texto central, no Pazo de Raxoi em Março de 1998, no meu segundo trabalho de campo extenso e com residência na casa de Hermínio Medela e a Mama Esperanza Dobarro, a sua mulher, pessoas amigas, a minha família metafórica. A conferência foi proferida a convite da minha amiga Maria Xosé Rodríguez Galdos, Catedrática de História em Compostela, que presidia a instituição. O texto: A oralidade e a escritura na construção do social, foi publicada em Dezembro de 1998 na Revista Estudios Migratorios, todo o texto escrito em Galego, com a colaboração de um antigo doutorando meu, Xosé Manuel Cid; e um livro em Portugal, em que narro a História da Galiza, retirada de Histórias de Vida, Arquivos Paroquiais, especialmente os de Lugo e da Universidade de Compostela: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, apresentado na Galiza em honra a Baltazar Garzón quem teve a força de meter em prisão ao Ditador do Chile, esse que, ao visitar o Chile de Salvador Allende, me mandara a um campo de concentração. Não podia narrar toda essa História, que começa com Suevos e Celtas, dentro do meu texto. Aliás, já está escrita nestes e outros textos meus. Com todo, há um debate: os galegos dizem ser lusitanos, em procura de uma identidade. Natural sempre me pareceu que fossem lusos galaicos. Concordo consigo, como descendente directo de Bascos e Alincantinos, além das minhas relações com o discípulo de Ramón Pinheiro, o meu amigo da alma Xosé Manuel Beiras, e o outro, Ramón Maiz, que a Galiza é luso galaica, como defendo nos meus textos. Se assim no for, o que aprendeu Afonso Henriques de Dona Urraca, à que pretendia em Compostela? Pelo que há esse sim não de discordância dentro da própria população galaica, mas entre os académicos. Sempre, como Etnopsicólogo, morei em aldeias e não existia a menor dúvida, nem comentários, nem conversas que os leva-se a duvidar que eram GALEGOS e ponto. Agradeço o seu comentário: sério bem provado e com correcções quando necessário. Domingo Garcia Sabel, falava de ser a Galiza parte da Nação Espanhola, mas era Senador de nomeação Real, Senadores criados em 1888 pela Regente Maria Cristina de Bourbon, que já não há desde a Reforma Constitucional de 1978. Agradeço a sua dica, ajudara-me a preencher a História

  4. Raul Iturra says:

    Finalmente, com quem é que falo? Tenho tentado saber quem é Albano Coelho, que tanto ajuda aos meus trabalhos! Obrigado

  5. Albano Coelho says:

    Caro Mestre,

    Grato pelas palavras de apreço mas sou eu quem deve agradecer por tudo o que aprendi desde os meus 18 anos (e poucos meses), recém chegado da “província galega” de Viseu, na década de 90, ISCTE, curso de Sociologia. Devo ao meu querido Mestre o facto de ter-me iniciado nos saberes da Antropologia, Sociologia da Educação e no que mais tarde viríamos a chamar de Etnopsicologia da Infância. Discípulo preguiçoso aqui me confesso e arrependido pelo desencontro nestes quase 20 anos. Foi preciso a Rede das redes ter atingido um certo grau de desenvolvimento para que eu retomasse o prazer na aprendizagem destes saberes, individualmente e por livre eleição, sem ter como objetivo qualquer titulação académica. Foi uma feliz descoberta este blog e a que através dele se proporcionou porventura ainda mais feliz: Saber que o meu querido Mestre tem afinal muito que ver com um projeto que desde há anos tenho seguido de perto, The Natural Child Project (e a saudosa Alice Miller). Hoje uma surpresa mais ao descobrir que a Galiza também nos une, que a rede de personalidades que evoca é-me tremendamente familiar. Será esta a revelação de obscuros desígnios de velhos deuses galaicos? Como membro da AGAL entende-se facilmente a familiaridade com os nomes Ramón Pinheiro, Xosé Manuel Cid e outros; com o fantástico comunicador Xosé Manuel Beiras apenas tive um encontro por altura da sua palestra promovida pela Agrupaçom Cultural “O Facho” d’A Corunha, da qual também sou sócio. Ontem mesmo tivemos o prazer de contar com uma palestra de Júlio Lopes Valcárcel sobre Uxío Novo Neira (ortografia reintegrada, “agálica”). Enfim, esta tem sido a minha militância ultimamente.
    Sempre ao dispôr, uma vez mais um grande obrigado por tudo.

  6. Raul Iturra says:

    Meu Caro Albano! É evidente que me lembro de si, profunda e profusamente, e das nossas conversas mais íntimas sobre assuntos de mútuo interesse, que lembro e fazem-me falta! Qual é o seu e-mail e telefone, para contactar e nos vermos outra vez e continuar a interrompida conversa?
    Grande abraço com carinho
    Raúl Iturra
    lautaro@netcabo.pt

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