um grilo é só um grilo

Pela rua abaixo já se ouve a sinfonia dos bichos. Chega o calor e voltam a ouvir-se os grilos. Prisioneiros das casas citadinas, cantarão até caírem para o lado e nunca mais voltarão ao campo de onde foram roubados.

Recordo os grilos que me ofereciam em criança como um castigo que me tocava a cada ano, uma obrigação que havia que honrar como possível. Lá o alimentaria com folhas de alface, lá lhe limparia a gaiola das folhas secas e dos cagalhotos, lá lhe aguentaria a barulheira que tem a sua graça bucólica na primeira noite e logo se torna infernal, até ao dia em que iria dar com ele muito esticado, com as patas para cima, e poderia, finalmente, com alívio, ainda que com essa pontinha de tristeza tão portuguesa, atirar com a criatura para o lixo.

Havia sempre alguém que me oferecia um grilo, convencido de que nada poderia agradar mais a uma criança citadina, e que a partir desse dia se interessaria pelo destino do bicho nas minhas mãos, perguntando sempre como é que ele ia, como se a vida de um grilo pudesse ter variáveis dignas de conversa, e já não havia forma de eu poder ir soltar o bicho no seu meio natural.

Eu não queria um grilo, queria o cachorro que não me deixavam ter, queria um pato feio, queria um chimpanzé vestido com jardineiras, tudo menos o horrendo grilo, cuja fronha, se ampliada, revelaria um monstro medonho. Até porque este grilo negro, primo da barata, em nada se parecia com o sensato companheiro do  Pinóquio.

A imagem patética da pequena gaiola, a miserável criatura ali encerrada, presa desse canto que é um chamamento cada vez mais desesperado por uma fêmea que não virá nunca, ainda hoje me deprimem. Tanto quanto as histórias das sortidas para apanhar grilos, mijando-lhes nas tocas, um bom exemplo de quão rudemente idiotas podem ser essas experiências da ruralidade, logo elevadas a rituais de passagem caracterizados pela boçalidade e pelo desrespeito pelas criaturas vivas.

Ó malditos grilos da cidade, maldita sinfonia que se conserva ao longo dos anos, que me persegue para onde quer que eu me mude, malditos grilos devoradores de alface, carregados de cio, a gritar cada vez mais alto pela criatura que lhes perpetue a raça, desesperados por pressentir que morrerão ali mesmo, encerrados na gaiola de plástico que agora se vende nos chineses, entre a alface seca e os cagalhotos, tão longe da vida eterna, tão sós.

Não morrerem de uma vez esses malditos grilos, ou não aprenderem a não sair cá para fora de cada vez que lhes caia o mijo em cima. Não haver quem apanhe a cambada que os vai caçar e espete um estaladão em cada um.

Não se deixarem ficar esses grilos no Verão das suas curtas vidas, incendiados de tesão, embruxados pelo seu próprio canto nas noites longas de estio, lá onde foram nascer, sob as estrelas, sem dono nem piedosa ração de alface, sem gaiola nem morte antes do tempo.

Mas também há quem me diga que estou a dramatizar. E que um grilo é só um grilo.

Comments

  1. A voz dos grilos, na sua extraordinária capacidade de multiplicação, é a evidência mais arrebatadora da monstruosidade a que os votamos, para nosso exlusivo deleite. É que um grilo canta por todos. O contrário, por muito contraditório que isto se afigure, já não se verifica. Infelizmente para todos, não só para eles. Se um grilo é um grilo, por que o prendemos, por que o queremos só para nós? Um grilo, às vezes, é toda a noite, é a pauta do pensamento que se confia à escuridão, é o pó sonoro das estrelas. Um grilo que morre por nós, que canta para nós até à hora da morte, torna-se um grito. Reparem na cruz em que o l se transforma. Cristo, rezam as crónicas, também se foi assim, numa cruz e num grito. E não era Ele só um homem?

  2. Libertação imediata dos camaradas grilos! Os grilos unidos jamais serão vencidos!

  3. mjrijo says:

    mas eu tenho tantas saudades de ter um grilo em casa, e de os apanhar..eu não lhes mijava em cima,seria difícil acertar, era mais civilizada; com uma palhinha eles também saem da toca.

  4. Aparecida says:

    Apoio ao companheiro….Liberdade ao grilo jáaaaaaaaaaa!!

  5. mjrijo says:

    Aparecida :Apoio ao companheiro….Liberdade ao grilo jáaaaaaaaaaa!!

    desmancha prazeres 🙁

  6. Carlos Fonseca says:

    E por que será que se diz que esta merda grilou? Carla, se calhar, há demasiados machos a mijar para os pés – é um palpite.

  7. Luis Moreira says:

    mas o meu grilo era sempre o que melhor cantava!

  8. julia principe says:

    Caro Marcos Cruz:
    Você conseguiu fazer um “poema” aos grilos domésticos e,com todos os pormenores. Tão reais que, todos víamos os nossos grilos , na janela, a cantar para todos.Uma curiosidade, não sei se concorda,mas só os que os detestavam é que “falavam” com eles…
    No silêncio do campo era já uma música diferente e com a vantagem de não termos de lhe fazer o “funeral”…
    Até amanhã! Até sempre!
    Júlia Príncipe

  9. alfacinha says:

    muit divertido ler sobre os grilos domésticos em gaiolas , nunca ouvi falar
    cumprimentos

  10. julia principe says:

    Caro Alfacinha:
    Acusei o toque(grilos domésticos). Então “todos” os que vivem numa casa, não são domésticos?
    Será que passamos a ser engaiolados como os grilos? Em gaiolas ao alto, onde a música é bem pior que a dos grilos!…
    Entrei num condomínio de gaiolas ao fim de setenta anos de vida…Preferia a gaiola com um grilo.Vamos perdoar aos grilos, pois no condomínio deles(pradaria) todos cantam…e ninguém lhe chama “nomes”…Concluindo, os maiores predadores somos nós,Eles matam por sobrevivência. O homem mata por ÓDIO exterminio religioso ou de castas.
    VIVAM OS GRILINHOS E AS GRILINHAS DESTE MUNDO!
    Nota:o género feminino não se deve descriminar…
    Até amanhã! Até sempre!
    Júlia Príncipe

  11. adao cruz says:

    Bem escrito, Júlia.

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