É preciso arrojo, eu sei!

(adão cruz)


É preciso arrojo, eu sei!

Nestes tempos futebolísticos, nomeadamente neste malogrado Portugal-Espanha, assunto de que não percebo nada, nem estou interessado em perceber, é preciso muita coragem e muito arrojo, para vos vir falar de Materialismo e Espiritualismo. Precavi-me no entanto, com a ingestão de uma boa dose de ameixas vermelhas, pequeninas, pouco maiores do que cerejas, deliciosas, do quintal de minha saudosa mãe, regadas com meia garrafa de Mouchão tinto. Dizem que tais frutos, com um bom tinto, produzem um belíssimo resultado em termos de equilíbrio metabolismo-catabolismo, e, por conseguinte, de homeostasia, termo que já aqui tenho utilizado várias vezes, e que significa uma total harmonia do todo do ser humano.  

O indivíduo materialista, no sentido filosófico e científico do termo, é aquela pessoa que acredita no ser humano como um todo, um todo indivisível, indissociável, uma única substância como dizia Espinosa. Aquela pessoa para quem não há qualquer fronteira entre a pele e a carne, entre a carne e o sangue, entre o sangue e o cérebro, entre o cérebro e a mente, entre a mente e o pensamento, do qual decorre toda a vida dita psíquica do indivíduo.  

Assim como o aparelho circulatório se encarrega de toda a distribuição de fluidos no organismo, assim como ao aparelho respiratório cabe toda a oxigenação dos tecidos, assim como ao sistema endócrino pertence todo o complexo mundo hormonal do organismo, assim ao sistema cerebral corresponde toda a vida “psíquica” do ser humano. O cérebro é o receptor e emissor de todos os estímulos, exógenos e endógenos do organismo. É ele que, através de tais estímulos cria imagens, das quais decorrem emoções que, por sua vez, geram sentimentos que levam à consciência, à reflexão, à vontade e à decisão. E o pensador materialista baseia os seus conceitos numa intuição natural, numa investigação científica permanente, progressiva, dia a dia mais convincente, e, a não muito longo prazo, pensa ele, acabando por atingir verdades irrefutáveis.  

A realidade de uma vida psíquica em nada se encontra em contradição com o materialismo. A vida psíquica, entendida como a vida decorrente da actividade cerebral, e, logicamente, de toda a actividade pensante, não contradiz, de modo algum, o pensamento materialista. O termo “psíquico” está de tal modo enraizado na nossa linguagem e na nossa sociedade que não é possível eliminá-lo, nem interessa. Quando um materialista diz, por exemplo, em conversa ou num texto literário, “a alma do poeta ou do pintor”, quer dizer o íntimo, o mais nobre do poeta e do pintor, e não, como é óbvio, se refere à alma do poeta ou do pintor em sentido espiritualista. Quando um materialista diz “ele é um espírito vivo”, logicamente que quer dizer que ele tem uma actividade psíquica intensa, perspicaz e arguta, e, de modo algum, se refere ao imaterial espírito contido no conceito espiritualista.  

Para o espiritualista existe um dualismo corpo-espírito. Há duas realidades distintas no todo do ser humano, o corpo e o espírito, ou alma, interligadas em vida mas separadas depois da morte. Logo que a alma se separa do corpo, este vê-se reduzido à sua condição de matéria, logo putrefáctil, sem vida, enquanto a alma segue por outros insondáveis caminhos. Enquanto o materialista baseia os seus conceitos nas poderosas investigações científicas, sobretudo na área da Evolução e das Ciências Neurobiológicas, o espiritualista, sem qualquer base racional científica e convincente, baseia os seus conceitos numa crença, apenas numa crença, legítima, mas uma crença. Mas é assim e quem sou eu para tentar convencer alguém da “minha” verdade?  

Não queria terminar sem deixar aqui bem explícita, a finalidade deste artigo. E esta resume-se no seguinte: Perpassa por aí a ideia, e muitas vezes em mentes de aventadores bem formados, de que o materialismo, em termos de sentimentos, está a léguas do mundo sentimental do espiritualista. Disparate total! Disparate absoluto! Faz lembrar aquela pergunta de uma amável e intrigada senhora: como é que o senhor, sendo materialista, pinta, escreve, faz poesia e tem sentimentos tão bonitos?  

A vida psíquica, isto é, a actividade cerebral e mental de qualquer ser humano , não pessoalizada, evidentemente, é idêntica, seja materialista ou seja espiritualista. Um e outro pensam, raciocinam, amam, choram, riem, fazem poesia, são capazes das mais profundas emoções e dos mais nobres sentimentos. Quantas vezes um materialista tem sentimentos e vivências “espirituais” muito mais profundas e mais nobres do que um espiritualista e vice-versa! A única diferença reside no conceito de “esfera psíquica”que cada um tem. No primeiro caso, materialista, esta faz parte integrante, material, do ser humano no seu todo biológico, conceito bem firmado na dificilmente negável investigação evolucionista e neurobiológica, e, no segundo caso, pertence a um ser humano feito de duas partes, uma terrena e outra sobrenatural, mera questão de crença, legítima, repito, mas sem qualquer base racional e científica.  

Acabemos de vez com o sentido pejorativo atribuído, de ânimo leve, tantas vezes acintosamente e irracionalmente, ao materialismo científico. Tal atitude, sobretudo nos dias de hoje, não eleva nem dignifica ninguém.  

Comments

  1. Carlos Fonseca says:

    Bela lição. Obrigado.

  2. Luis Moreira says:

    Bem escrito,Adão.Para ler segunda vez.

  3. Frederico says:

    Gostei muito do que li e concordo com todas as certezas e incertezas. Parabéns

  4. Obrigado a todos

  5. Caro pai,

    Parabéns. Cada vez gosto mais do que escreves. Se me permites, há, porém, nessa dissertação uma coisa que me intriga: a necessidade que tens, não separando matéria e espírito, de separar materialistas e espiritualistas. Mais do que isso, a certeza com que entendes os primeiros como integralistas e os segundos como dualistas. Não será essa uma generalização dualista? Entre os espiritualistas haverá, concerteza, quem entenda matéria e espírito como um todo, e entre os materialistas idem aspas. E o contrário para ambos os casos. Haverá, estou seguro, materialistas que, de tão positivistas, criaram uma aversão liquidatária ao que chamamos, poética e/ou religiosamente, não interessa, de espírito. O que interessa, isso sim, e fundamentalmente, é que não recusemos a complementaridade das vertentes científica e espiritual no desenvolvimento humano: há coisas que uma pessoa alcança na actividade física, mental e espiritual que não têm apenas a ver com a mente, inclusivé porque dependerão, julgo, e muito, do contexto externo, de uma miríade de variáveis claramente inquantificável e indissecável, porque, e desculpa o palavrão (mas já que falas em Espinoza), inDecartizável. A vida do homem é um todo, ou pelo menos eu sinto-a assim, transcendendo a sua componente biológica, a sua fronteira física. A vida do homem, entendida nesse todo, nesse verdadeiro não dualismo, é a vida de todoo universo, a vida que realmente não separa carne de espírito, que não nos destaca do pano de fundo, que não nos subtrai à eternidade.

  6. InDescartizável, queria eu dizer, claro…

  7. Marcos, depois falamos mais pormenorizadamente. Esta matéria não é de discussão fácil em blogues. Obrigado pelo comentário. Eu separo materialistas de espiritualistas, apenas no conceito que cada um tem da sua esfera psíquica. Esfera psíquica que, na realidade, existe como função de um órgão, mas não só como função de um órgão, antes como função de um todo. Sem coração ela não existia, sem respiração ela não existia, sem células ela não existia, e sem cérebro e vida “psíquica” não há sangue a correr, nem brisa nos pulmões. Mas quem existe, verdadeiramente, ao fim e ao cabo, é o ser humano. Os materialistas, claro que são rigorosamente integralistas, ou melhor, nem integralistas são porque não há nada a integrar num todo que é uno, indivisível, e cujas partes são virtual e artificialmente separadas por nós mesmos para que melhor entendamos o todo.
    Entre os espiritualistas há integralistas, com certeza, isto é, pessoas que acreditando num espírito imaterial, acreditam no todo humano como fenómeno científico tão intrincado que não permite separação possível em vida. Mas estes serão, a meu ver, os mais inteligentes, porque há aqueles que nada integram, aqueles para quem a fronteira entre corpo e espírito é mais vincada do que a fronteira entre as duas Coreias.

  8. Ok. No entanto, deixa-me só apresentar as minhas dúvidas de que essa separação virtual nos faça entender melhor o todo. Talvez nos faça entender melhor a parte desligada do todo, mas entender melhor a parte desligada do todo talvez não equivalha ou ajude a entender melhor o todo. Podes invocar situações médicas, podes falar-me por exemplo do tratamento do cancro, que seria impossível sem a prévia separação virtual das partes, ao longo da história da ciência, mas não me podes garantir que isso corresponde a um melhor entendimento do todo em que se inscreve a vida humana. Prolongar a vida pode ser visto como contrariar a acção do todo. Isto, claro, é uma questão filosófica, não científica, e sem hipocrisia reconheço que eu próprio prefiro viver mais uns anos ou não sofrer as dores de um qualquer desarranjo orgânico. Mas depois falamos, então. Claro que estes assuntos não se debatem idealmente em blogues, mas a escrita talvez tenha o condão de fazer com que nos compreendamos melhor, sem as exaltações do momento. E digo isto, mais uma vez, consciente de que afastar essas exaltações é separar virtualmente as partes. As verdades fogem-nos por entre os dedos, não são para termos, são para admirarmos na sua liberdade. Abraço e até já.

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