Sobre as Praças de Marrocos

Mogador

Baluarte da muralha de Mogador. autor desconhecido

“Ficávamos nas praças de Marrocos como a bordo das nossas naus; porém as naus iam, vinham, livremente pelos mares, multiplicando a força, distribuindo o castigo; ao passo que as praças de África eram pontões imóveis, ancorados, constantemente batidos pelas vagas da mourama tempestuosa” Oliveira Martins (MARTINS, 1947, pág. 258-259)

As Praças-fortes portuguesas em Marrocos eram um problema para o país. Rodeadas de inimigos, encontravam-se isoladas e dependiam da metrópole ao nível do abastecimento e víveres. Portugal fazia esforços para celebrar acordos com os mouros que habitavam as áreas circundantes. Esses acordos davam origem a uma relação de vassalagem entre os mouros e a coroa portuguesa. No seu âmbito Portugal garantia protecção aos seus vassalos, bem como o direito de livre circulação e exercício de actividade comercial nos seus domínios. Em troca assegurava um clima de paz com as áreas circundantes às praças e cobrava tributos em espécie, principalmente cereais e gado. As tribos que aceitavam a vassalagem à coroa portuguesa eram chamadas de “Mouros de Pazes” ou “Mouros de Sinal”.

A situação tinha contornos completamente diferentes nas praças do Norte e nas praças do Sul, resultados das características das duas regiões, fosse ao nível geográfico, climático, do povoamento ou políticas, fosse pela própria forma como Portugal implementou o seu estabelecimento em cada uma delas.

síntese

Marrocos Verde e Marrocos Amarelo

Portugal não consegue ocupar a costa de Marrocos de forma contínua, estabelecendo as Praças-fortes em duas zonas distintas, separadas por uma área controlada pelo Reino de Fez, um hiato que inviabilizou a pretensa “asfixia” desse reino através do corte do seu acesso ao mar. Os historiadores portugueses da época fazem uma clara distinção relativamente às zonas Norte e Sul do território em que as Praças se localizavam.

A Norteo Marrocos Verde, com campos onde vicejavam, sobretudo, a vinha, a oliveira e outras fruteiras e se praticava a pecuária do gado grosso”. Em contraste, a Sul ficava o “Marrocos Amarelo ou a região dos cereais e do gado miúdo”. (SANTOS, 2009, pág. 3)

E estas diferenças na agricultura e criação de gado correspondiam outras de carácter socio-económico, como refere João Marinho dos Santos:

“O Marrocos dos séculos XV e XVI patenteava já um povoamento elevado, sobretudo a Norte, com muitas aldeias, vilas e cidades. A Sul, a população era mais nómada. Concretamente, na Duquela e sobretudo a Sul de Safim, o que se viam eram “alcaimas” ou “aduares”, isto é, tendas de lã negra (as alcaimas) em que acampavam os berberes que pastoreavam os gados, formando por vezes povoações transitórias com um cercado ao centro (os aduares). Tratava-se de pastores-guerreiros nómadas, sem grande organização política e que, guerreando-se, apreciavam a protecção de outros mais fortes.” (SANTOS, 2009, pág. 3)

reino-de-fez

O Reino de Fez. Planta de Jean Picart, 1657, in Tresor des carte Geographiques

No século XV e início do século XVI, o chamado Marrocos Verde era posse do Reino de Fez, cujo limite Sul era o Oued Oum Er-Rbia ou Rio Morbeia das crónicas portuguesas, “divisória natural dos Reinos de Fez e Marrocos”. (SANTOS, 2007, pág. 54)

O Reino de Fez era uma entidade político-administrativa real, centralizada na cidade de Fez, regido pela dinastia Oatácida. O referido Reino de Marrocos não existia como tal nos finais do século XV, sendo um território gerido por um conjunto de tribos Berberes de forma mais ou menos autónoma, ganhando esse carácter de Reino com a conquista da cidade de Marraquexe em 1524 pelos Xerifes Sádidas, que posteriormente conquistam Fez em 1549 e unificam os dois reinos.

Estas duas realidades políticas, aliadas ao facto de no Marrocos Verde existirem cidades populosas e bem defendidas, enquanto no Marrocos Amarelo predominar uma costa pouco povoada, determinariam, conforme já referido, a forma como os portugueses implementariam a ocupação desses territórios. Estas diferentes abordagens teriam também o cunho político dos seus promotores _ a política de guerra e saque defendida pelo infante D. Henrique e D. Afonso V no século XV e uma política mais “mercantilista” defendida por D. Manuel no início do século XVI, apesar de tanto uns como outros alimentarem a ilusão da conquista de Marrocos, ilusão que David Lopes tão bem sintetizou nesta frase _ “Um reino português em Marrocos era sonho irrealizável com os nossos parcos recursos em gente e dinheiro” (LOPES, 1989, pág. 12)

Torre de menagem de Arzila

A Torre de Menagem de Arzila

Desde a conquista de Ceuta em 1415 até à conquista de Arzila em 1471 instala-se um clima de guerra permanente nas Praças do Norte e nas suas áreas circundantes, com cercos frequentes e ataques aos ocupantes portugueses, que isolam estas praças e levantam desde logo problemas relativos à sua segurança e logística.

As conquista portuguesas das cidades do Norte de Marrocos são extremamente violentas, acompanhadas de massacres das suas populações, saques e destruições. O resultado é a própria destruição do seu tecido económico e social, a imposição de bloqueios por parte do Reino de Fez, o desvio das rotas das caravanas e a fuga dos comerciantes estrangeiros aí estabelecidos.

As conquistas de Ceuta e Arzila são particularmente violentas. Nesta última, a população rende-se, mas os portugueses não aceitam a rendição e o massacre é terrível. Foi de tal forma violento, que os habitantes de Tânger abandonam a sua cidade, que Portugal ocupa sem combate. Aliás, a conquista de Arzila terá tido um efeito psicológico enorme em Marrocos, abrindo caminho ao estabelecimento de vários acordos de paz, como refere David Lopes:

“A tomada de Arzila encheu de pavor Marrocos, de norte a sul.” (LOPES, 1989, pág. 26)

marrocos-verde

Marrocos Verde

O primeiro acordo entre portugueses e mouros só se firma após a conquista de Arzila e pelo facto de o seu governador derrotado, Mulay As-Said Ash-Shaykh, se encontrar em guerra aberta com o sultão de Fez, não querendo manter as hostilidades em duas frentes. É então celebrado um acordo de paz por vinte anos. Proclamado sultão, Mulay Ash-Shaykh renova em 1490 o tratado com D. João II, que incluía a troca de duas mulheres suas, aprisionadas pelos portugueses em Arzila, pelas ossadas do Infante Santo, e o envio do seu filho para Lisboa, para aprender a língua e os costumes portugueses. Por esse motivo o filho de Mulay As-Said Ash-Shaykh ficou conhecido em Marrocos como “o Português”.

O acordo não só previa a posse de Arzila e das outras praças por Portugal (Ceuta, Alcácer Ceguer e Tânger), como incluía também “os lugares e aldeias do campo ou termo dos mesmos” (LOPES, 1989, pág. 26). Apesar da criação desta área de mouros de pazes no “país” Jebala, a verdade é que Arzila é constantemente atacada, porque o próprio tratado de paz assim o permitia, já que continha uma clausula que referia que “os lugares murados das duas partes, que eram da parte dos mouros Alcácer Quibir, Tetuão e Xexuão, poderiam continuar a fazer-se guerra, sem quebra do tratado”. (LOPES, 1989, pág. 26)

O tratado de paz legitimava a posse das praças por Portugal e também das aldeias do seu termo, que no seu limite Sul teria uma distância de cerca de 10 quilómetros de Arzila, já que a tentativa falhada de construção da Fortaleza da Graciosa se localizava nos limites da fronteira do reino de Portugal em Marrocos.

Jbel Magou

Chefchauen, cidade de onde partiam muitos dos ataques contra as Praças portuguesas

O clima de guerra permanente foi sempre uma constante nas praças do Norte, mesmo existindo acordo de paz assinado, facto agravado com a chegada a Marrocos de grandes contingentes de mouriscos expulsos da Península, que transportaram para a guerra em torno das praças e para a guerra no mar a luta contra os cristãos que os tinham expulso das suas terras.

“Era pois uma paz precária e foi sempre assim nos lugares de África. Não sabemos se se procedeu a uma delimitação dessa esfera de acção portuguesa em torno das nossas praças, talvez sim (…) D. João II nomeia em 1482, xeque de duas aldeias do termo de Tânger o filho do xeque anterior; por outro, de 1490, o mesmo soberano faz mercê ao alcaide de  Quibir ‘das nossas terras de Beniarroz e Benamancuma – termo de Arzila – com todas as suas entradas, saídas, fontes, montados, pascigos, foros, rendas, direitos, tributos e pertenças…’ (…) Os moradores desses lugares e aldeias eram chamados ‘mouros de pazes'”. (LOPES, 1989, pág. 26)

No ano de 1543 o rei de Fez “dá as pazes como rotas”, e desde esse ano até ao abandono das praças do Norte houve sempre guerra.

Baluarte de S. Cristovão

O Baluarte de S. Cristóvão em Azamor

A inexistência de um poder centralizado no Marrocos Amarelo permitiu que Portugal se instalasse na região pela via dos acordos. Acordos celebrados numa fase inicial com as várias autoridades que geriam autonomamente as cidades, caso de Safim em 1471, Azamor em 1486 ou o estabelecimento da feitoria de Meça em 1497. Numa segunda fase, após a tomada de posse dessas cidades, através de acordos com os mouros de pazes da região, que na capitania de Nuno Fernandes de Ataíde em Safim tomaram a forma de um verdadeiro protectorado, mas que teve uma duração muito curta.

Este tipo de acordos “tribo a tribo” criavam uma situação de grande instabilidade, já que, não existindo um acordo global, os seus termos estavam permanentemente a ser colocados em causa. As características do povoamento, baseado sobretudo em “aduares” habitados por nómadas, dificultava a instituição de entidades vassalas estáveis.

“Nesta área de muitos milhares de quilómetros quadrados, Ataíde e os seus colaboradores fizeram vassalas e tributárias as populações que a habitavam. os cereais – o trigo, a cevada, o milho – e os gados – o cavalo, o burro, o camelo, o carneiro – eram a principal riqueza destas regiões (…) Neste territórios, tirando as nossas praças, só havia duas povoações de alguma importância: Tite, entre Mazagão e o Cabo Branco, e Almedina, a leste de Ualídia. Tudo o mais eram alcaimas, aduares ou adixares”. (LOPES, 1989, pág. 33)

marrocos-amarelo

Marrocos Amarelo

Nas praças do Sul o clima de guerra era permanente. Este clima de “obsessão da guerra” agrava-se com a tomada de Marraquexe pelos Xerifes Sádidas em 1524. A partir desse momento as tribos da Duquela começam a unir-se para fazer a guerra aos portugueses.

No ano de 1541 cai Santa Cruz do Cabo Guer, marco decisivo da caminhada triunfal dos Xerifes até à tomada de Fez e unificação dos dois reinos marroquinos, e do início da política de evacuações das praças pelos portugueses.

Bibliografia:

FARINHA, António Dias. “Os Portugueses em Marrocos”. Instituto Camões. 1999

LOPES, David. “A Expansão em Marrocos”. Editorial Teorema, Lisboa, 1989 (Publicação original BAIÃO, António, CIDADE, Hernâni e MURIAS, Manuel . “História da Expansão Portuguesa no Mundo, 3 vols. Editorial Ática. Lisboa, 1937)

SANTOS, João Marinho dos. “Portugal e Marrocos – da confrontação à cooperação”. Universidade de Coimbra. Instituto de História da Expansão Ultramarina. 2009

SANTOS, João Marinho dos; SILVA, José Manuel Azevedo e; NADIR, Mohammed. Santa Cruz do Cabo de Gue D’Agoa de Narba”. Estudo e Crónica, Viseu, Palimage Editores e Centro de História da Sociedade e da Cultura, 2007

Comments

  1. A torre portuguesa de Arzila- torre e fotografia lindíssimas!!
    gostei mto deste post!

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  1. […] das áreas circundantes, cedo se percebeu que o clima de guerra existente, principalmente nas praças do Sul, e os cercos cada vez mais frequentes confinavam os seus habitantes aos perímetros muralhados e […]

  2. […] Portugal prossegue o estabelecimento de praças-fortes e a construção de fortalezas, agora no território do chamado Marrocos amarelo. […]

  3. […] da criação desta área de “mouros de paz”, a verdade é que Arzila é constantemente atacada, ao que parece porque o próprio tratado de paz o […]

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