Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido. Da reunião de Caracas da Internacional Socialista à fusão do PSP com o PSOE


Carlos Andrés Perez, Presidente da Internacional Socialista em 1976

continuação daqui

«Atento à evolução política na Península Ibérica, o Presidente da República da Venezuela, Carlos Andrés Perez, cujo partido, Accion Democrática, era observador da Internacional Socialista, percebeu que a «Revolução Portuguesa» e a evolução democrática em Espanha iriam ter enorme impacto na América Latina, onde ele, chefe de Estado de um país produtor de petróleo, pretendia ter um papel de relevo. O presidente venezuelano, que tinha sido eleito em 1974, acompanhava de perto a crescente importância da Internacional Socialista e, como tal, desenvolveu todos os esforços para reunir em Caracas uma cimeira semelhante à que acabara de ocorrer em Portugal. Mas, enquanto em Portugal a iniciativa partira de Olof Palme, a ideia da reunião de Caracas partira de Klaus Lindenberg, representante da Fundação Friedrich Ebert naquele país. Esta fundação já na altura investia consideráveis meios naquele subcontinente e tinha escritórios e representantes alemães em quase todas as capitais latino-americanas.
Editava aliás uma importante revista teórica sobre a social-democracia no contexto da América Latina, a partir da capital venezuelana, de nome Nueva Sociedad. Na reunião que teve lugar no hotel Tamanaco no dia 22 de Maio, para além dos anfitriões, que incluiriam o popular ex-presidente da República, Rómulo Betencourt, marcariam presença em Caracas Willy Brandt, Bruno Kreisky, Willy Claes e André Cools da Bélgica, Hernan Siles Suazo da Bolívia, Luis Albero Monge e Carlos Oscar Arias da Costa Rica, Anker Joergensen da Dinamarca, Rodrigo Borja do Equador, Felipe González e Luis Yanez do PSOE e Raul Morodo do Partido Socialista Popular, Michel Rocard de França, o italiano Bettino Craxi, ainda então secretário-geral-adjunto de Francesco De Martino e Vitor Raul Haya de la Torre, do Peru. Os representantes do PS seriam Mário Soares, Medeiros Ferreira e eu. Foi uma reunião muito importante para Willy Brandt e para a Internacional Socialista, que marcaria o início de tensões ideológicas com os Estados Unidos da América e de uma crise na definição geo-estratégica ocidental entre a Europa e a América.
A Internacional Socialista sentia-se no papel dos «mencheviques», chamando a si ou louros pela vitória da democracia em Portugal. Uma vitória que todos sabiam iria trazer não só repercussões imediatas em Espanha mas, a médio prazo, também na América Latina. Era do interesse da Europa, ou pelo menos da Internacional Socialista europeia, «ignorar» o papel dos Estados Unidos e explorar os defeitos da linha Kissinger no caso português. Seria essa a linha que o próximo presidente da Internacional Socialista Willy Brandt, apoiado por poderosos meios financeiros canalizados por intermédio da Fundação Ebert, iria seguir. Para ele, que dois anos antes se vira alvo de investigações dos serviços de inteligência ocidentais, era extremamente importante marcar o seu decisivo papel em prol da democratização de Portugal, da Espanha e da América Latina. Na nova fase da sua carreira política, ter contribuído para derrotar
os comunistas em Portugal, seria uma importante componente do seu currículo.
A Internacional Socialista estava lançada nos «Processos de Democratização na Península Ibérica e na América Latina», em concorrência com os EUA. Uma disputa que os americanos iriam ganhar com a ajuda do PS português. Luis Echevarria, então presidente do México, tinha reputação de antiamericano e via com suspeição as actividades da Internacional Socialista na América Latina. Sobretudo preocupante para o seu Partido único era o facto de o modelo português incluir a exigência de regimes pluralistas, Mas, por outro lado, compreendeu que a reunião que estava a ter lugar em Caracas representava uma terceira via demasiado importante para que o México pudesse ficar de fora.
Os homens do PRI, que governam o México em exclusividade há cerca de sessenta anos, pressentiriam, contudo, que o seu afastamento das iniciativas de Brandt os obrigaria a sair da situação de privilégio político em que se encontravam, tolerados pelo seu gigantesco vizinho pelo seu não alinhamento com os comunistas, não obstante os atropelos à democracia e aos direitos humanos, e reconhecidos pela União Soviética pelo seu não alinhamento com os EUA. Sem
aderir à IS, optariam por uma espécie de associação com o objectivo de neutralizar eventuais críticas ao seu aberrante regime! Assim conseguiriam, de facto, ser interlocutores de todos, ficando com as mãos livres para prosseguir o seu modelo «de democracia…
um pouco sui-generis».
E, sem qualquer preparação prévia, «obrigariam» a que a reunião de Caracas tivesse o seu final a milhares de quilómetros dali, na cidade do México, enviando a Caracas dois «Boeing 707» da presidência para transportar as delegações. Foi uma maratona imprevista, extremamente cansativa, destinada a participar num inútil comício de solidariedade eleitoral com o candidato do partido único, José Lopez Portillo. Depois de muitas horas de viagem e de uma paragem em São José da Costa Rica, chegaríamos à capital mexicana na madrugada do dia 25. Nas placas de estacionamento do aeroporto, para além dos nossos anfitriões, esperavam-nos
orquestras de «mariachis» e luxuosas hospedeiras que nos encaminhariam para o hotel Camino Real. Com a consciência já tranquila em relação a Portugal, a IS dava-se ao luxo de uma pausa exótica para colaborar com uma farsa política!
As minhas relações com Felipe González e com Luis Yanez passariam, durante o ano de 1976, de meras relações políticas a relações de amizade e confiança. Além de termos idades mais ou menos próximas, descobriríamos, ao longo de muitas conversas,
que as nossas opiniões políticas coincidiam em muitos aspectos. E, ao contrário do secretário-geral do meu partido, eu não sentia nenhuma atracção pelo Partido Socialista Popular, que considerava ter pouco que ver com as realidades espanholas. Era um
pequeno grupo de amigos de grande craveira intelectual, alguns dos quais, como era o caso de Raul Morodo, eram extremamente simpáticos. Possuíam muito do «mitterrandismo » que tanto atraía Soares mas, para usar uma frase de Tony Benn, bastava
olhar para eles para ver que «não tinham nada que ver com o socialismo das classes trabalhadoras».
O PSP espanhol fazia-me lembrar o nosso MES, embora a este último faltasse um líder com o prestígio e a craveira de Tierno Galván, mais conhecido carinhosamente entre os madrilenos pelo nome de «velho professor». Numa das noites livres em Caracas, González e Yanez convidaram-me para «uns copos» e durante a nossa conversa verifiquei que, embora tivéssemos ideias semelhantes em relação ao PSP, que com o apoio de Mário Soares fazia um grande esforço para ser reconhecido pela IS, González tinha grande admiração por Tierno Galván que considerava um dos grandes teóricos do socialismo espanhol contemporâneo. Eu perguntei-lhe então porque razão ele não fazia um esforço para juntar aquele grupo ao PSOE e, para grande surpresa minha, compreendi que tal ideia lhe não desagradava. Disse-me que uma tal associação dependeria de Tierno que, estava convencido, não simpatizava com a sua liderança do PSOE. Era González quem estava convencido de que Tierno Galván nunca aceitaria uma tal amálgama entre os dois partidos. Eu perguntei-lhe então se ele estaria de acordo que eu contactasse o PSP, com vista a uma primeira aproximação, ao
que ele respondeu afirmativamente. Desde que tal empreendimento, disse-me, fosse por minha conta e risco.
Já no México eu falaria com Morodo, que por sua vez consultaria Mário Soares. Este, como é óbvio, ficou encantado com a ideia e renovaria o oferecimento dos serviços do PS enquanto mediador entre aqueles dois partidos. Ficou então decidido que Morodo consultaria Tierno Galván e que González abordaria o assunto na Comissão Executiva do seu partido, após ser conhecida a opinião de Tierno. Até lá ninguém estava autorizado a revelar o teor das conversas que, curiosamente, seriam sempre feitas por meu intermédio, mesmo em Caracas e no México. González e Morodo, ambos a participar nas mesmas reuniões, nunca falariam um com o outro sobre este tema, embora ambos me tivessem autorizado a prosseguir com a ideia. Pouco tempo depois receberia luz verde para organizar o primeiro encontro entre ambos, que teria lugar em Lisboa, numa sala do hotel Altis, nos dias 8 e 9 de Outubro. No início da reunião convenci-me de que tudo parecia perdido, dada a frieza e formalismo com que se iniciaram os trabalhos e também pela rigidez de posições, sobretudo de Tierno Galván que, na ausência de consultas eleitorais, não acreditava na força do PSOE. Tal e qual como
Mário Soares. Mas, depois, a pouco e pouco, Mário Soares foi introduzindo vários cenários, com o optimismo que o caracteriza, e o gelo começou a derreter. Graças à nossa atempada intervenção, Tierno Galván e Felipe González compreenderiam que tudo teriam a ganhar com a unidade entre os seus dois partidos e ficaria estabelecido, como questão de princípio que a haver acordo: a) o nome do partido seria o do PSOE; b) que nesse caso Galván seria proposto para presidente, enquanto González se manteria
como secretário-geral e c) que seria designada uma comissão mista para desenvolver estas e outras questões de fundo.
A reunião tinha sido um êxito, e no final deste primeiro encontro Mário Soares, então já primeiro-ministro do I Governo Constitucional,
encontrava-se visivelmente satisfeito quando declarou aos media que «os partidos reunidos encontraram importantes pontos de convergência e decidiram continuar as conversações. Estiveram presentes por parte do PS, Mário Soares e Rui Mateus, por
parte do PSOE, Felipe González e Luis Yanez e por parte do PSP, Enrique Tierno Galván e Raul Morodo».
Foi assim que nasceu o processo que daria lugar à fusão dos dois partidos, com a integração do Partido Socialista Popular no PSOE, dois anos depois. Os dois partidos, ambos oriundos do partido fundado por Pablo Iglesias, decidiriam «fundir-se num só depois de haverem constatado, através de uma comissão mista constituída para o efeito a substancial identificação dos seus respectivos textos programáticos, dos seus programas eleitorais, bem como da estratégia que vinham praticando».
A partir daí o relacionamento do PS com o PSOE seria muito mais fácil, sobretudo após nova visita de González a Lisboa em 1977, em que, pela primeira vez, o PS e o PSOE assinariam um comunicado conjunto. Nessa altura, já o PSOE se transformara no maior partido
político do país vizinho, continuando, contudo, as relações de Soares com González a ser sempre influenciadas por uma certa desconfiança.»

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