Eu às voltas

Como era bela e única a Linha do Tua…

Estou às voltas com a infantil e deliciosa inocência dos filhos, a prepará-los para uma noite reparadora que amanhã há trabalho. Silencioso, enquanto faço isto e aquilo, penso que eles têm a sorte de ter um pai que lhes vai poder contar na primeira pessoa o que eram aquelas gargantas, aquele serpenteado que vêem na foto antiga de um comboio que mete medo.

Talvez até se interessem por saber mais sobre aquela água vermelha pútrida que estaciona no colo de uma amarra de betão, enquanto nada por lá acontece. Vou poder contar-lhes, fingindo-me culto, que em Portugal há muitos casos singulares de projectos nunca acabados. Vou-lhes referir a ponte (rodoviária) da Régua, aquela que levaria o comboio a Lamego. Vou-lhes mostrar a foto da ponte seguinte sobre o rio Varosa, uma ponte integralmente construída para ficar de testemunho. Vou-lhes referir que Coimbra teve eléctricos e que também acabou com um comboio que trazia, na época, um milhão de pessoas no vai-vem pendular das gentes de Lousã e que também sucumbiu quando se quis travestir de metro de superfície, e os meus filhos decerto nem entenderão que estou a falar de quase cem anos de diferença, como não quererão enquadrar, na inércia de uma noite de tertúlia, que as linhas estreitas nem nunca chegaram ao seu destino, e, quando já amputadas lhes quiseram dar mais segurança, afinal desligaram as máquinas, deixando-as morrer, não cumprindo uma promessa solene. Estou certo que, como eu e como todos, o discurso do pai vai tornar-se longo e aborrecido. Decerto que ele vai referir (nunca se esquece) que até integrou um grupo de gente com uma auto-denominação ligada à Linha do Tua, que pouco fez também por causa dos filhos serem pequenos, mas que acreditou que tanto argumento de gente de algum peso (dentre intelectuais, académicos de várias áreas, gentes da cultura – da verdadeira, entenda-se – e políticos) seriam suficientes para acabar de vez com aquela ideia de, só com uma decisão, mandar para o caixote das recordações um vale de um rio selvagem, sua biodiversidade, uma linha férrea com 120 anos que com o vale dançava, património de coragens e sonhos rasgados a dinamite, hectares produtores de azeite e vinhos de grande qualidade, duas termasantigas, claro, e todo um potencial de desenvolvimento – também ligados à mobilidade mais ecológica que é o comboio.

E aposta-se em surdina que o pai vai referir aquela situação do não respeito de uma directiva europeia ligada à qualidade da água, pela não consideração dos efeitos somados das barragens construídas e então a construir. Vai falar do Douro, e de outros enquadramentos que nos confunde sempre. Vai dizer (mais uma vez) que o Douro vinhateiro tinha sido património da humanidade, e que à conta daquela barragem e das linhas de alta-tensão, foi-se, mas que, e aqui ele baralhanos sempre, é como os comboios em 1990, fecharam as linhas, puseram autocarros e um dia acabaram, deixaram as pessoas entregues a si (normalmente ele aqui refere que os moradores do Porto e Lisboa também poderiam ser entregues a si, porque os respectivos metros tinham milhões de prejuízos às costas).

Não vai esquecer de referir que a educação que nos deu é uma das antigas, de valores (que não pecuniários), e não se vai esquecer aqui de referir que os autarcas da região venderam o património e bio-diversidade por 3 vezes o valor que o CEO de então da EDP (assim chamada) recebera de um prémio de bom comportamento («sim, era um valor anual, mas falo de 5 autarquias») – mesmo que os barquinhos e o funicular nunca tenha saído do papel, e daí nunca ter havido «mobilidade» pós-barragem – e vai dizer que até os ministros, numa lógica de progressão na carreira tinham conseguido dizer (esta parte também nunca percebemos bem) que a ministra da cultura, ao mesmo tempo que inaugurava o museu de Foz-Côa e se regozijava com o facto de uma barragem ter sido travada para a Humanidade poder usufruir das gravuras rupestres, dizia aos jornalistas que a classificação da linha e vale do Tua como património não era impeditivo da construção da barragem do Tua.

Aqui ele costuma sorrir abertamente quando diz que não quiseram reabrir a linha de caminho-de-ferro até Barca D’Alva (a custo de 2 km de autoestrada), mas abriram auto-estradas em todo o País. Sem carros, hoje, que a gasolina está a 2,50 Euros, apesar das soluções ecológicas dos mesmos… Por isso também, o museu só abre à semana, fechando aos fins-de-semana, recebendo umas curtas visitas de uns estrangeiros perdidos.

Do Ambiente não vai falar, nem vai referir que, em vez de defender o dito, o ministério (uma senhora ministra) aprovou estudos de impacte incompletos, e que mesmo assim, já não davam peso significativo às «vantagens» senão à da produção de energia, que até se sabia que era para exportar que já havia q.b. para Portugal…Só se tendo esquecido estas cabeças que o preço do mercado da dita electricidade ditou a falência do projecto e a barragem jazia ali sem produzir coisa nenhuma senão cianetos e metanos, como se fora uma fábrica de químicos.

Talvez por aqui lhe dê a nostalgia dos filhos ainda pequenos e nos poupe de dizer que tudo ocorreu sob apoio popular (no início do milénio ganhou as eleições um candidato que já era Presidente da República que tinha fechado linhas do comboio e não sabia distinguir a linha do Douro da Linha do Tua), que o Parlamento (representantes do povo?) e Autarcas (claro que com honrosas excepções) nada fizeram pelo poder dos favores e dos financiamentos esquisitos.

Sabemos que nos vai dizer que às voltas com a infantil e deliciosa inocência dos filhos, a prepará-los para uma noite reparadora que amanhã há trabalho, imaginou estas tertúlias, num ano da graça em que a Barragem era uma ameaça séria…

José Cândido

Comments

  1. mario sales de carvalho says:

    com Homens assim como é que é possível haver homens dos outros….

    grande abraço amigos

    mario

  2. E essas crianças irão estranhar ainda mais, quando souberem que tudo isso aconteceu num país onde supostamente quem governava era o Povo… e então irão desejar viver numa ditadura, para poder romper violentamente com o “statu quo”, pois em democracia pelos vistos anda tudo adormecido…

    • Manuel A says:

      Viver em ditadura não, mas era bom o regresso da monarquia, essa que foi a impulsionadora de algum progresso em Portugal.

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