Avaliação de professores – a treta das quotas

O problema da chamada avaliação dos professores vai, lentamente, voltando a ser tema de debate e de discórdia, como se pode verificar aqui, aqui e aqui. Quando as pessoas que, em Portugal, se interessam, verdadeiramente, por Educação (uma minoria, digo eu), se aperceberem de que esta é uma questão muito mais do que corporativa, com reflexos terríveis na qualidade do ensino, talvez a Avenida da Liberdade venha a ser pequena para tanto descontentamento.

Entre os muitos disparates contidos neste imbróglio está a manutenção das quotas, erigidas por muitos ignorantes em condição sine qua non para que haja uma efectiva avaliação de mérito. A propósito disso, republico aqui um texto e uma adenda (ambos de Janeiro de 2010):

As quotas como treta

A luta dos professores ao longo dos últimos anos teve uma especial incidência na recusa de quotas na avaliação. Aliás, esse problema continua a ser, para muitos professores, razão suficiente para não se estar completamente satisfeito com o acordo recentemente assinado pelos sindicatos. O futuro ainda poderá dizer se não voltará a haver uma divisão entre sindicatos e professores.

Os argumentos para impor as quotas transformaram-se num dogma que pode ser resumido nestas duas frases: “só as quotas garantem uma avaliação de mérito” e “todas as profissões estão sujeitas a quotas”. Note-se que estas duas afirmações têm um acolhimento favorável entre a população portuguesa. Nesta luta, não há dúvida de que os professores estão muito sozinhos e a habilidade comunicacional do núcleo socrático tem contribuído largamente para a divulgação e solidificação do dogma.

Qual a origem de uma resistência tão tenaz por parte dos professores a uma ideia tão cimentada? Do ponto de vista da opinião pública, já se sabe: os professores não fazem nenhum e não querem ser avaliados. A verdade é que os professores lidam com problemas ligados à avaliação durante toda a sua carreira. Ora, relativamente aos alunos, a cultura de avaliação em que vivem os professores torna-lhes inaceitável a ideia de que a avaliação possa estar sujeita a quotas. Para um professor, a avaliação do trabalho de um indivíduo faz-se com base em critérios e não tendo em vista quotas que imponham ou limitem qualquer avaliação. A extrapolação é simples: a regra deve aplicar-se a qualquer indivíduo, aluno ou não. Professor ou não, já agora.

Esta resistência faz ainda mais sentido quando se sabe que não há diferença funcional entre um professor em início de carreira e outro professor no final. A existência de diferenças funcionais, como, por exemplo, o desempenho de cargos de coordenação ou de orientação de estágio, dava, antigamente, direito a horas de redução na componente lectiva, num sistema que oferecia algumas garantias de que a atribuição desses cargos estaria sujeita ao mérito e não a quotas.

Uma das principais qualidades do dogma é usar a assertividade irracional como blindagem. Um dogma não tem de ser explicado e convém que não seja escrutinado: é assim porque sim. Na sociedade capitalista em que vivemos, as quotas têm sido utilizadas como meio de contenção de despesas, sendo que esse argumento nunca é utilizado directamente, antes transformado num imperativo ético.

Este dogma foi espalhado pela parte interessada, ou seja, o patronato. Agora, vem a parte engraçada: todos aqueles que são prejudicados pelo dogma, os empregados, defendem-no também eles com unhas e dentes. Quando uma classe, aparentemente, alcança uma vitória contra este dogma, todas as outras se revoltam contra ela. Porquê? Porque acreditam tão profundamente no dogma que não admitem que possa ser posto em causa. Deste modo, o patronato (e o governo também é patrão) não precisa de se mexer: basta-lhe apontar os hereges.

Num país em que qualquer privilégio alheio é uma ofensa pessoal, os professores não passam de uns malandros. O que fazem, então, os trabalhadores cuja avaliação está abrangida por quotas? Resolvem pensar pela própria cabeça para decidir se isso é justo? Não, preferem confundir direitos com privilégios e a única coisa que exigem é que todos estejam tão mal como eles.

Enquanto as outras classes profissionais andam ocupadas a ver nos professores uma cambada de chupistas, esquecem-se de procurar saber quais deverão ser os seus direitos e não reparam que o Estado contribui despreocupadamente para aumentar o défice através de pequenas, médias e grandes despesas, que podem ir de reformas milionárias, passando por desperdício de dinheiros em frotas automóveis, até ao lançamento de grandes obras públicas reclamadas por entidades tão desinteressadas como, por exemplo, a Mota-Engil.

No território da política (usar o adjectivo “baixa” parece cada vez mais um pleonasmo), confirma-se o que já se sabia: há partidos que apoiaram as lutas dos professores enquanto lhes foi útil. Mal a maioria relativa lhes proporcionou a hipótese de acabar com as quotas, deram o braço ao dogma, ou não estivessem esses partidos umbilicalmente ligados aos beneficiários desse mesmo dogma, aqueles mesmos que aparecem devidamente engravatados e visivelmente perfumados a dizer que vivemos acima das nossas possibilidades.

Finalmente, o descaramento de José Sócrates mantém-se: depois de passar uma campanha inteira a gritar o seu esquerdismo, usa a direita como muleta de um orçamento completamente destro. Nada de novo num primeiro-ministro cuja especialidade comunicacional consiste em debitar chavões e frases feitas, sem mais explicações ou aprofundamentos. Quotas e congelamentos de salários? Claro. Porquê? Porque sim.

Adenda: o comentário de uma amiga que fez uma longa carreira na banca.

Na Banca já há muito que adoptaram este mesmo dogma. Desde os anos 80, quando tive acesso à carta de intenções da adesão à CEE, então classificada como “de divulgação reservada” que estas políticas, de contenção, se anunciavam.

Resultado prático da aplicação: as quotas nada têm a ver com mérito, mas com redução das despesas! Só servem para promover os bufos das chefias (que até fomentam estas práticas), o compadrio, os afilhados (ou melhor, filiados no partido do governo), os carneiros, incompetentes e conformistas, ou então, que não têm estofo para ir contra a corrente e conformados com a sua “sorte” temem perder as benesses, hipotecando princípios éticos e consciências.

Uma autêntica pobreza de espírito, total ausência de cultura (incluindo a cívica) e de ideias próprias.

Por último e não menos importante, a partir dos 50/55 anos (30/35 de carreira) não obstante estas circunstâncias poderem constituir garante de mais valia profissional e humana, uma vez que os respectivos ordenados também constituem maior despesa, simplesmente acabam-se as quotas e as carreiras, iniciando-se as políticas de “downsizing” através do assédio psicológico.”

Comments

  1. julia says:

    Caro Amigo:
    Fui Prof. 1ºciclo, praticamente sempre no lugar de “Directora” e prof.Vantagens do cargo:trabalho, trabalho, e não tinha remuneração adicional.Chamem-me “missionária”!…
    Teria muito para vos contar…
    Estou solidária convosco. Os profs. têm um “cranco” no meio de vós: não são unidos…e faço a mesma pergunta, que fazia quando estava no activo:motivo de tantos sindicatos? Nunca tive resposta…Vocês, já têm resposta para esta minha pergunta?
    UMa informação vos dou : os líderes, ainda são do meu tempo e não sei se algum dia deram aulas. Sabem- me dizer?
    Quando dava aulas e me entrava um inspector na sala, e me fazia crítica que não concordava, pedia-lhe para exemplificar e dar , ele a aula…Outra informação do meu tempo:os inspectores não gostavam de dar aulas e concorriam para…
    Caro Amigo, comecei a exercer em 1960; já apanhei a reforma de Abril…
    Vou mandar-vos um “miminho”, para ver se concordam com esta poesia…

    SER PROFESSOR

    Ser professor é ser artista,
    malabarista,
    pintor, escultor, doutor,
    musicólogo, psicólogo…
    É ser mãe, pai, irmã e a avó,
    é ser palhaço, estilhaço,
    espantalho, bagaço…*
    É ser ciência, paciência…
    É ser informação,
    é ser acção.
    É ser bússola, é ser farol.
    Incompreendido?…Muito.
    Defendido? Nunca.
    O seu filho passou?…
    Claro, é um génio.
    Não passou?
    O professor não ensinou.

    Ser professor…
    é um vício ou vocação?
    É outra coisa…
    É ter nas mãos o MUNDO de
    AMANHÃ.

    AMANHÃ
    os alunos vão-se…
    e ele,o mestre, de mãos vazias,
    fica com o coração partido.
    Recebe novas turmas,
    novos olhinhos ávidos de
    CULTURA
    e ele, professor,
    vai despejando
    com toda a ternura,
    o SABER;a ORIENTAÇÃO
    nas cabecinhas novas que
    amanhã
    luzirão no firmamento da
    PÁTRIA.
    Fica a saudade…
    a amizade.
    O pagamento real?
    Só na ETERNIDADE.**
    *bagaço-resíduo
    **-Autor descnhecido, afixado na ES. de CASTRO MARIM, e publicado no jornal da A.S.S.P.
    em 1995.
    Até amanhã! Até sempre!
    Júlia Príncipe

  2. Não penso que seja equilibrada esta sua análise. Desde logo a sua afirmação “Entre os muitos disparates contidos neste imbróglio está a manutenção das quotas, erigidas por muitos ignorantes em condição sine qua non para que haja uma efectiva avaliação de mérito” é sintoma de quem presume que é dono da verdade.

    E não é. Ninguém é.

    Se estudou noções elementares de estatística saberá que também as competências se distribuem num universo significativo segundo uma distribuição normal. Nem todos são excelentes, nem todos são medíocres. A opção pelas quotas (com todos os defeitos que lhe queiram apontar) tem o mérito de seguir aquele princípio.

    Não é um método simpático, não senhor, sobretudo por quem tem de avaliar. Mas é único que evita que as avaliações sejam um descarado exercício de faz de conta.

    Salvo melhor opinião.

  3. Dar uma opinião com assertividade é sintoma de que uma pessoa se presume dona da verdade e não vejo que isso seja um problema. De qualquer modo, isso não é o mais importante.
    Importante seria que as pessoas que defendem as quotas o fizessem com honestidade ou com conhecimento.
    Já se sabe (e os professores sabem isso melhor que a maioria das classes profissionais) que nem todos são excelentes, nem todos são medíocres. No entanto, uma avaliação séria deve assentar em critérios claros e na competência dos avaliadores.
    O problema é que a realidade contraria, por vezes, as probabilidades ou as estatísticas. Pode haver grupos em que os excelentes estejam acima ou abaixo do previsível.
    A imposição das quotas é, apenas, um mecanismo de contenção salarial: esta seria a única afirmação séria, mesmo que discutível.
    Afirmar que as quotas constituem a “única garantia de que a avaliação é séria” é lançar a desconfiança sobre quem avalia e sobre o próprio método de avaliação. Para isso, mais vale acabar com a avaliação.
    Finalmente, a ser verdade que só as quotas garantem a seriedade da avaliação, deveríamos aplicá-las aos alunos, não lhe parece? Pois, talvez não lhe pareça.

  4. Nenhum de nós sabe o que existe e o que não existe. Vivemos de palavras. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem. Mas há momentos em que cada um redobra de proporções, há momentos em que a vida se me afigura iluminada por outra claridade. Há momentos em que cada um grita: – Eu não vivi! eu não vivi! eu não vivi! – Há momentos em que deparamos com outra figura maior, que nos mete medo. A vida é só isto?

    Raul Brandão,

  5. Haver quotas, é além de tonto, desnecessário. Se a avaliação for imparcial e não trivial os respectivos resultados terão necessariamente que seguir uma qq distribuição, distribuição normal quase de certeza.

    Infelizmente parece que os resultados das avaliações em Portugal seguem distribuições muito enviesadas, se calhar temos aqui material para refazer o estudo das probabilidades e estatística… Ou então temos métodos de avaliação que não valem um caracol.

    Tendo em conta o anterior, proponho soluções para o problema:

    • Acabem-se com as avaliações! O professores fazem uma assembleia geral e nomeiam uma comissão de vencimentos. Em orçamento de estado é atribuída a essa comissão a verba destinada aos salários dos professores. A comissão atribui, segundo critérios definidos pelos professores, os salários. Se quiserem dividir o bolo por igual, tudo bem, se quiserem distribuir por idade, também, ou mesmo em função do clube de futebol preferido de cada um, não me interessa;
    • Pode-se usar o velho esquema dos exames. Fazer exames bastante complexos e os resultados servem de medida de avaliação. Talvez acrescentar uma avaliação psicológica. (Eu prefiro o método da comissão, seria muito mais divertido 😉 .)

    Fica assim o assunto da avaliação arrumado.

    • O método da comissão seria maravilhoso, com certeza, e proporcionaria momentos inolvidáveis.
      No que respeita aos professores, a verdade é que continuamos com métodos de avaliação que não valem um caracol e esse é e continuará a ser um grande problema. Como diz o Paulo Guinote, voltámos aos tempos anteriores a 2005, mas agora com quotas. Para cúmulo, continua-se a não incluir nesta discussão um problema gravíssimo: o empobrecimento brutal da formação contínua. A Educação é um assunto que continua a não nos assistir.

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