Educação: ainda a influência do meio socioeconómico

Aqui há tempos, alguns aventadores manifestaram a sua perplexidade relativamente a uma espécie de estudo que, com base na análise de resultados de exames de 12º ano, chegava à conclusão de que cabia à Escola 70% da responsabilidade do sucesso dos alunos, ficando os restantes 30% a cargo de tudo o que fosse exterior à Escola, incluindo, portanto, o meio socioeconómico das famílias dos alunos.

Numa outra polémica que também passou aqui pela casa, alguns de nós referiram que o sucesso de muitas escolas privadas está ligado à selecção de alunos, com o estatuto socioeconómico a ter grande influência na respectiva vida escolar. Entre alguns comentadores levantou-se um pé-de-vento, vendo nisso a afirmação simplista de que ser pobre era o mesmo que ser burro.

Entretanto, Helena Matos, no Público (em artigo disponível aqui), atacou a mania de falar da dificuldade das crianças mais carenciadas: “Há poucas coisas mais vergonhosas que a ideia enraizada na casta de que os resultados escolares dos filhos dos mais pobres são uma espécie de destino social e não tanto o resultado duma escola que funciona mal e desistiu deles.” Não sei se faço parte da casta, mas numa coisa coincido com Helena Matos: os resultados escolares dos filhos dos mais pobres não deveriam ser uma espécie de destino social. Por outro lado, afirmar que esses resultados são o resultado de uma escola que funciona mal e desistiu deles é, no mínimo, simplista, a não ser que por “escola” se esteja a referir a um sistema educativo que, na verdade, não está preocupado em resolver os problemas educativos, mas antes em disfarçá-los.

Recentemente, em Inglaterra, um estudo realizado por Michael Marmot, professor de Saúde Pública e autor do livro Fair Society, Healthy Lives, chegou à conclusão de que quase 60% das crianças das áreas mais pobres de Inglaterra com cinco anos têm problemas de comportamento e de compreensão. O autor afirma, ainda, que já se sabia que as crianças de famílias de melhor estatuto socioeconómico alcançam uma maior capacidade cognitiva, porque, de uma maneira geral e de modo simplista, é mais fácil uma pessoa preocupar-se com as coisas do espírito se o estômago estiver saciado.

As dificuldades de compreensão, de concentração e de empenhamento que se verificam em muitos alunos têm, muitas vezes, origem na ausência de estímulos de diversa ordem, cujas causas estão, frequentemente, ligadas a insuficiências económicas e/ou culturais dos respectivos meios familiares. Se aceitarmos que um estudo semelhante, a ser realizado em Portugal, chegaria a conclusões similares, estamos perante problemas que começam por ser sociais e se transformam em problemas de saúde e de educação. Para que Helena Matos e outros percebam, vamos pôr as coisas em linguagem simples: ser economicamente desfavorecido é ter mais probabilidades de ter problemas de compreensão e comportamento.

Um dos principais problemas das políticas educativas é a recusa em assumir este simples facto. O Ministério da Educação porta-se como um médico preocupado com quotas de curas e não com curas, com aparências e não com realidades. Um médico assim, a existir, só prescreveria placebos e analgésicos; o Ministério recorre a estatísticas, estudos encomendados e, mais recentemente, à inclassificável quantificação de metas.

Um problema só pode ser resolvido se for reconhecido como sendo um problema. Ver elitismo na afirmação de que os problemas económicos têm reflexos nas aprendizagens dos alunos é não querer ou não conseguir reconhecer o problema.

A sociedade, através da escola e não só, não tem o direito de desistir daqueles que, por nascimento ou por outro acaso qualquer, foram desfavorecidos. A solução passa por dar condições à escola pública, sem que isso tenha de colidir com a possibilidade de existir liberdade de escolha. Aliás, a “livre escolha” como solução milagrosa para os problemas do ensino em Portugal não é mais do uma transferência para a Educação do conceito de auto-regulação do mercado que tão bons resultados tem trazido para todos os desfavorecidos do mundo.

Comments

  1. xokapic says:

    Ora aí está. A “escola pública”, i.e. o estado deve ajudar os alunos directamente, através
    de programas de ajuda ao indivíduo (aluno) e não de subsidiação ao sistema de ensino. Este
    deve ser livre e financiar-se a partir dos alunos que consegue captar.

    • António Fernando Nabais says:

      Ó caríssimo
      Não precisa que eu lhe reconheça a ter o direito à sua opinião. O q

    • António Fernando Nabais says:

      A minha inabilidade manual deixou a meio o que queria escrever.
      Dizia eu que tem direito à sua opinião. Não percebo é como é que o meu texto suporta essa sua opinião.
      “Captar alunos” é uma expressão homóloga de “captar clientes”, o tipo de linguagem que se insiste em colar às escolas. A escola pública, como as finanças ou os correios, consiste num serviço que o Estado deve financiar, com qualidade. Qualquer dia, e já não deve faltar muito, até teremos esquadras da polícia em concorrência para captar ciadadãos.

      • António Fernando Nabais says:

        cidadãos, claro

      • Artur says:

        E que condições são essas que as escolas deveriam ter e que permitiriam que os pobres acertassem o passo con os mais ricos?

        • António Fernando Nabais says:

          Não sendo possível prometer milagres, e assim de repente, uma pergunta como a sua obriga à elaboração de um programa de governo para a educação, mas tentarei dar-lhe a minha opinião, ainda que de um modo sumário.
          Em primeiro lugar, é fundamental assumir a existência do problema e não disfarçá-lo.
          A escola, para além de dever ser pequena (e não mega-agrupamentos), precisa de mais recursos humanos: mais professores (turmas mais pequenas e actividades de apoio pedagógico, entres outras), mais funcionários (as escolas debatem-se há anos com falta deles), psicólogos e assistentes sociais. Mais recursos humanos significaria, se necessário, maior proximidade e maior rapidez, no caso dos alunos problemáticos e no problema do abandono escolar.
          O discurso dos governantes deve pautar-se pela necessidade de exigência, do rigor, do estudo e não na referência à aprovação como um direito que é tomado como adquirido por uma população que, já de si, não está motivada para aprender.
          Em vez de campanhas centradas na obtenção de diplomas, a tónica deveria estar colocada na importância de aprender. Deveria haver campanhas públicas que permitissem aos pais saber de que modo devem acompanhar a vida escolar dos educandos.
          O estatuto do aluno deveria ser rigoroso, permitindo firmeza e pedagogia na resolução de questões disciplinares (a presença de mais profissionais nas escolas permitira o isolamento ocasional de determinados alunos, por exemplo).
          Os professores deveriam ter tempo, em vez de andarem ocupados com mil tarefas burocráticas.
          Para além disso, haveria, ainda, muitas outras questões relacionadas com o currículo e com a formação inicial e contínua dos professores, bem como uma recuperação da qualidade de ensino do primeiro ciclo do ensino básico.
          Resumidamente, na minha opinião, ainda não houve investimento na Educação (e percentagem do PIB não quer dizer nada, se o dinheiro for mal gasto). Investimento não significa só dinheiro.
          Isto foi um bocado atabalhoado, mas aqui está.

          • Artur says:

            Por mim o seu programa passava com distinção. Talvez incluisse apenas mais um sistema de avaliação dos professores mais baseado no exercicio do ensino do que no coleccionismo de formações adquiridas e na publicação de artigos e pseudo-investigação.

  2. António Fernando Nabais says:

    Muito obrigado, caro comentador.
    Só posso concordar com a sua sugestão, embora me pareça muito importante que não se desvalorize a componente científica da profissão. Na ligação que indico mais abaixo, tenho tentado, de modo muito bissexto e muito humilde, escrever umas opiniões sobre o que falta fazer na Educação.

    http://osdiasdopisco.wordpress.com/category/educacao-um-pouco-do-muito-que-falta-fazer/

  3. xokapic says:

    Caríssimo António,

    As suas visões de esquerda romântica já deveriam ter acabado… As novas gerações são uniformizadas pela Internet e não por vontade política dos “educadores do povo” (que assumem inculto).

  4. António Fernando Nabais says:

    Ó caro achocolatado

    Já deveriam ter acabado, mas não acabaram. Quanto ao resto, não vejo vantagem nos “educadores do povo” (você deve pensar que o pessoal de esquerda é todo igual), como não vejo na uniformização pela Internet. Vejo vantagem num debate que não ignore as questões fundamentais. É a direita (mesmo que disfarçada de PS) que quer fazer de conta que os problemas sociais e económicos não afectam a aprendizagem. O reconhecimento desse problema dava muito trabalho a resolver. Por outro lado, muita esquerda vê nesse reconhecimento a manifestação de um elitismo, de um ataque às classes desfavorecidas. Há pouca gente a querer resolver o problema. Há outros que pensam que basta deixar as novas gerações entregues à internet. São opções.

  5. Artur says:

    Os problemas económicos afectam o sucesso escolar não porque o estômago esteja mais ou esteja menos saciado mas sim porque os mesmos estão intensamente interligados à pobreza socio-cultural. A fome já não existe na Europa Ocidental ( e se existe alguma será a excepção e não a regra e não justificará com certeza os fracos resultados académicos de vastas franjas da sociedade).
    As crianças originárias de familias pobres recebem uma herança cultural bastante fraca, nomeadamente por terem pais que também não tiveram muita instrução e que normalmente não sabem nem querem fomentar a curiosidade e a ambição pelo conhecimento nos seus filhos.
    Dentro deste ciclo vicioso alguns felizmente conseguem sair, muitas vezes graças ao interesse deste ou daquele professor que souberam estimular o potencial do aluno. No entanto a maioria fica para trás.Serão mais burros que os ricos? Com certeza que não. Vivem sim em ambientes distintos.Devem as escolas estar preparadas para lhes darem uma hipótese? Sim. Deverão as escolas desistir quando os estragos culturais sejam de tal ordem que já inviabilizam qualquer recuperação?
    Penso que sim. A tal história da maçã podre no mesmo cesto que as boas.

    Foi por isso que não deixei de concordar com o sr. Nabais, pois mesmo sabendo que uma Escola como a que ele propos não fará milagres, com certeza que conseguirá pelo menos ajudar mais alguns. E mais alguns será sempre bom.
    Não parece que a sua visão (neste caso) seja excessivamente romantica nem de esquerda (o sr. Nabais até mencionou as palavras “rigoroso””firmeza” e “disciplina”, palavras que não são muito estimadas pela esquerda dita charrista.

  6. António Fernando Nabais says:

    É claro que a saciedade do estômago era uma metáfora. A grande questão é mesmo de herança cultural e podemos, ainda, interrogar-nos se a pouca vontade de aprender não será uma característica cultural portuguesa. É, com certeza, um problema mais associado às classes desfavorecidas, penso eu.
    Os que conseguem sair desse ciclo vicioso, normalmente, fazem parte de um ambiente familiar em que a escola e o conhecimento são valorizados.
    A sociedade, na minha opinião de esquerdista romântico, nunca deve desistir de ninguém. A escola, apesar de ser um esquerdista romântico, poderá nem sempre ser a instituição ideal para resolver alguns problemas, sobretudo se for uma escola tão desamparada como a nossa.
    Finalmente, é verdade que a esquerda tem muito pudor em usar essas palavras e já cometeu muitos erros por causa disso: não há educação sem firmeza, rigor e exigência.

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