Raposas do Deserto


Os italianos olhavam para a sua recentemente criada colónia da Líbia, como uma frente de combate convencional, quase à imagem da Venécia ou Flandres da I Guerra Mundial. Pautavam os seus movimentos pela obsessão da conquista de posições, ou melhor, de um terreno inóspito, sem água, calcinado pelo sol e pedregoso, enfim, uma autêntica armadilha para qualquer serviço de logística do mais poderoso exército. Após meses de estéril simulacro de campanha, as tropas do Duce enterraram-se em posições que pensavam ser bastiões impenetráveis. Não houve fosso anti-carro, jardim de minas e de arame farpado, trincheiras, redes de bunkers e losangos de artilharia que as salvassem pois os seus adversários britânicos, com efectivos numericamente muito inferiores, aperceberam-se das verdadeiras condições decorrentes da arcaica mentalidade militar imperante em Roma. A consequência consistiu numa série de desastres, dos quais o governo de Mussolini e o Eixo jamais recuperariam. O desembarque de Rommel em Trípoli, modificaria o estado de coisas e desde cedo mereceu a alcunha de Raposa do Deserto, sempre apto a caçar no terreno que o inimigo pensava ser seu. Invertendo-se os papéis, o general alemão conseguiu com elementos quase irrisórios, anular os sucessos apenas recentemente obtidos pelos ingleses que paradoxalmente, acabaram por cometer os mesmos erros do exército italiano. Rommel manteve a logística como o ponto essencial para o sucesso das operações e a agilidade como norma. Apercebeu-se que combatia num mar de areia, onde os “tanques eram navios” e pouco importando sucessos de ocasião e obtidos pela conquista de uma ou outra desoladora localidade isolada do resto do mundo. Milhares de quilómetros quadrados “conquistados” e apresentados nos mapas avidamente coleccionados pelos estrategas de café, nada significavam. Em suma, compreendeu aquilo que o território líbio significa. Longe ainda estava o tempo em que a Cirenaica se tornaria num ponto vital da indústria petrolífera e ironicamente, sem jamais o saber, o Eixo tinha aos seus pés, o filão de combustível de que desesperadamente necessitou durante toda a guerra. Aliás, a falta de carburante, ditou a sorte da campanha e certamente, o destino da Alemanha e da Itália.

El-Agheila, Mersa-el Brega, Mechili, Agedabia, golfo de Sirte, Bengazi, Derna, Tobruk, são nomes familiares que hoje voltam aos noticiários, tal como há setenta anos andavam na boca do mundo. As condições não mudaram, a Via Balbia ainda é o eixo essencial que liga o país e é neste estreito âmbito que as “operações” têm decorrido. As distâncias a percorrer são enormes e num ambiente desolado, quase infernal. As “terras de ninguém” multiplicam-se e naquele país, significam todos os vastos espaços que se encontram entre localidades afastadas centenas de quilómetros entre si. Desta forma, qualquer anúncio de “vitória de Mersa-el-Brega”, por exemplo, apenas poderá significar um sucesso limitado. Como se tem confirmado, na Líbia pouco importa um êxito militar, se este não corresponder ao total aniquilamento do adversário. As peripécias dos panzer, dos M13-40 ou dos Crusader, realizavam-se através da contagem de centenas de veículos blindados, acompanhados de outros tantos milhares que garantiam desde a rectaguarda, o abastecimento e o transporte das tropas. Assim, como é possível – a não ser por uma súbita quebra no centro do poder instituído -, pensarmos na vitória total a obter por uma mão cheia de jipes e carros blindados sem rectaguarda organizada? Até hoje, tudo indica que continuaremos a verificar a ocorrência de correrias de parte a parte, pensando-se ser improvável a existência de forças suficientes para a obtenção de uma vitória esmagadora, total. Desta forma se explicam os frenéticos apelos de Kadhafi à não intervenção externa, enquanto ele próprio faz desembarcar corpos expedicionários contratados na África sub-sahariana e recorre aos “bons ofícios” diplomáticos do seu inefável aliado venezuelano. Pelo contrário, a gente que se revoltou na Cirenaica, apela à urgente intervenção das potências, garantindo o êxito da sublevação e o descalabro do regime kadhafista no leste. Na verdade, a Líbia consiste numa invenção recente e de contorno retintamente colonial, saída da vontade de Mussolini. Jamais existiu uma verdadeira unidade territorial entre o leste e o oeste, assim como entre as populações das margens do Mediterrâneo e aquelas que o mar de deserto separa dos escassos e isolados oásis do interior do país.

Sem que se possa garantir esta afirmação, os americanos aparentam ter sido apanhados desprevenidos pela sublevação do leste. Passados alguns dias, já é tempo de verificar alguns eventos que indiciam algo mais que uma simples “explosão por simpatia”, querendo isto significar, um efeito de contágio por aquilo que se passou na Tunísia e no Egipto. Decerto existem muitas explicações para o descontentamento e seria útil para a esquerda europeia, meditar acerca do arrazoado de dislates proferidos acerca das virtudes – recorrentemente baseadas no “pelo menos, o anti-imperialista Kadhafi”… – do actual regime. Despótico e abusador, fez o que bem entendeu das riquezas que já jorram do subsolo há décadas, mesmo antes de se ter assenhorado do poder total. Se compararmos a Líbia com qualquer emirato, principado, reino ou sultanato do Golfo, a diferença é abissal. Os kuwaitianos, bahrainenses, sauditas, ou omanitas têm um estilo e qualidade de vida, infinitamente superiores àquele que se verifica entre os líbios. Cidades ordenadas, pujantes de edifícios oficiais e de residências acima dos padrões médios – mesmo em comparação com muitos países europeus -, escolas e hospitais de primeira categoria, um consumo que faz inveja a uma cada vez mais periclitante Europa, centros turísticos e financeiros e museus, são o símbolo daquilo que a esquerda europeia aponta como opressão obscurantista ou absolutismo. Pelo contrário, a Líbia apresenta um confrangedor espectáculo de pobreza, desordem e atraso. Gente mal vestida, localidades sujas e onde o aspecto geral testemunha a não passagem do tempo, infra-estruturas muito deficientes e de paupérrima categoria, são o quadro que diante dos olhos nos é apresentado por impiedosas imagens transmitidas pela televisão. Que enorme diferença se apresenta entre Qaboos bin Said e Muamar Kadhafi! A Líbia nem sequer pode ser comparada, à infinitamente mais pobre Monarquia hachemita da Jordânia. Esta é a verdade dura, mas que não pode ser negada.

O Ocidente parece ainda atónito pela evolução dos acontecimentos. Quem é entrevistado nas ruas de Al-Baida, Derna, Tobruk ou Bengazi, mostra sempre uma profunda repulsa por aquilo que a Al Qaeda significa e é com alguma surpresa que ouvimos referências ao desejo de quererem viver e organizar-se …”como na Europa”. Em suma, o nosso destroçado e aparentemente morto modelo de sociedade, parece interessar-lhes. Maior é ainda a surpresa, quando os media euro-americanos verificaram um levantamento popular que reergueu as banidas cores dos Senussi, o tal “regime caquético e obscurantista” que Kadhafi enterrou e o ocidente aprendeu a desprezar através da propaganda do senhor das tendas. Teria sido fácil o recurso à bandeira republicana de 1969, aliás de forte conotação pan-árabe e que hoje enche as ruas do Egipto e do Iémen. Mas não, a verdade é que se confirmaram as bem fundamentadas suspeitas de Kadhafi relativamente à Cirenaica, onde a “sua República” foi pessimamente recebida e nunca aceite por uma população que nos Senussi via os seus libertadores e símbolos de independência. O sistema tribal pode muita coisa explicar, mas de facto, poderemos estar perante o nascimento de um novo Estado que nem precisará da Tripolitânia para sobreviver e até, muito rapidamente prosperar. Neste blog e logo no início da revolta, dissemos ser conveniente olharmos com mais atenção para a União Constitucional Líbia. As próximas semanas confirmarão ou não, esta suposição. A demasiadamente rápida proliferação de milhares de bandeiras executadas com materiais sintéticos – parecendo de encomenda -, posters realistas e outros artigos de propaganda, indiciam algo mais que um acontecimento expontâneo ou fortuito. A Aljazeera também tem ajudado e os nossos leitores facilmente poderão verificar o que queremos dizer.

Outro estranho sinal, consiste na prudência da administração norte-americana que já ontem e pela voz da sra. Clinton, utilizou precisamente os argumentos anti-Al Qaeda de Kadhafi, que queiramos ou não, tem sido um parceiro de muitos países ocidentais – os portugueses são disso embaraçadas testemunhas -, nomeadamente o “mundo de negócios” europeu e norte-americano. Por outro lado, sentimos igualmente a hipótese de uma manobra britânica, bem ao estilo de outrora e à revelia do seu privilegiado parceiro além-Atlântico, demonstrando que o velho leão poderá estar bem vivo e de razoável saúde muscular. É claro que não temos qualquer tipo de pretensões de conhecer a realidade do que se tem passado, mas as sugestões vão-se acumulando, talvez não sendo mais que uma miragem num deserto.

Se existe um mar de areia e pedras a separar a Tripolitânia e a Cirenaica, convém frisar as grandes diferenças que facilmente poderão cavar um intransponível fosso entre as populações do ocidente e do leste daquilo a que hoje designamos de Líbia. A Via Balbia consiste numa estreita fita que poderá significar a união, ou a divisão de ambas.

Para já, o que convém reter, é o facto desta ou daquela vitória obtida por um punhado de homens armados, pouco ou nada querer significar em termos da total conquista do poder. Vive-se um conflito de atrito e apenas uma súbita quebra num dos lados, dirá quem será o vencedor. Pode isto acontecer a qualquer momento e desconhece-se qual a verdadeira solidez do edifício estatal construído por Kadhafi, assim como a verdadeira força da subversão. Estamos perante qualquer imprevisível vitória ou derrota.

Apostamos que o vencedor, já não poderá ser Kadhafi.

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