25 de Abril quase sempre

Há 37 anos, no dia 25 de Abril, aconteceu-me uma coisa inédita: a minha mãe disse-me que eu não ia à escola, sem sequer estar doente ou estar a fingir que estava. Foi o que se chama uma verdadeira revolução. É claro que não tinha tido muitas oportunidades de faltar às aulas, até porque ainda só estava na quarta classe, mas, pela primeira vez, a minha mãe, a mesma que se esfalfava a lembrar-me da necessidade de fazer os trabalhos de casa, de ser responsável, de levar a vida a sério, a minha mãe, dizia eu, impediu-me de ir às aulas.

Na altura, vivíamos em Lisboa e alguém ligara a dizer que havia tanques na rua. Na altura, ainda pensei que eram tanques da roupa, o que seria muito estranho e até poderia atrapalhar o trânsito, mas eram dos outros, de guerra. Ora, com 9 anos, as únicas guerras que conhecia eram as dos filmes em que, obviamente, só morriam os maus. Quando soube que os homens dos tanques vinham lutar contra o senhor Américo Tomás, estranhei: um senhor tão simpático, tão respeitavelmente careca, não podia ser mau. Ainda por cima, era Presidente da República, cargo que não podia ser desempenhado por maus da fita. Para cúmulo, tinha achado muita graça, quando, algum tempo antes, o mesmo senhor, apesar da idade avançada, saltara alguns degraus no Estádio Nacional, para entregar a Taça de Portugal já não sei a quem.

A alegria evidente dos meus pais, no entanto, fez-me pensar que, das duas uma, ou eram ambos maus ou, afinal, o senhor Presidente não seria assim tão bom. Depois de reflectir maduramente, durante cerca de dois minutos, decidi que os meus pais não podiam ser maus, primeiro, porque eram meus pais, e, depois, porque, de qualquer modo, ainda tinha de viver com eles mais uns anos e não me convinha nada que fossem maus. Ficou, portanto, decidido que os maus eram os outros, incluindo, então, aquele velho hediondo.

Mais ou menos uma semana depois, como acontecia nos anos anteriores, chegou o dia 1 de Maio. Desta vez, em vez de ficar em casa, fomos todos para a rua, onde, estranhamente, não havia lugar. Nunca tinha visto tanta gente na rua e a sorrir, mesmo nas paragens de autocarro, onde as pessoas ficavam instantaneamente tristes. Andavam todos com dois dedos no ar, que era o gesto que o meu pai fazia quando pedia uma cerveja para ele e outra para os amigos. Pensei que aquela gente devia gostar muito de cerveja. Resolvi aproveitar a confusão e pedir o mesmo. Quando me explicaram que aquilo era sinal de vitória, não pude esconder alguma desilusão e percebi que ainda tinha de esperar mais uns tempos até beber a primeira cerveja.

Entretanto, via imagens estranhas e ouvia palavras novas: presos políticos, fascismo, PIDE, Caxias, capitães, guerra colonial, direitos, trabalhadores, povo. Não compreendia tudo, mas também não era preciso, porque não é preciso perceber tudo de uma vez, especialmente quando se tem 9 anos.

Desde então, tenho aprendido algumas coisas, que não tomo como garantidas, porque já me bastou aquela desilusão com o Presidente que, afinal, não era dos bons. Aprendi, em primeiro lugar, que o 25 de Abril, sorriso do povo, também não está isento de erros, mas acredito que um dia em que as armas se enfeitaram com cravos merece muito crédito. Aprendi que uma revolução é apenas o início e que estaremos sempre longe do fim. Aprendi que a palavra é de ouro, num país em que fomos obrigados a comprar demasiado silêncio. Aprendi que é melhor ouvir o que as pessoas têm para dizer, especialmente se forem muitas e estiverem a dizer o mesmo.

Comments

  1. Luís Teixeira Neves says:

    Puto esperto.

  2. Nuno Oliveira says:

    Lindo!!!
    Abraço

  3. Rodrigo Costa says:

    … Quebrado o silêncio, proibida a proibição de proibir; quando se pensava terem chegado ao fim os erros de cálculo, concluiu-se, muito antes de festejar os 37 anos, ainda na adolescência, que tinha sido dado início a outro erro —ou a uns quantos. Com o fim da ditadura, começou o ciclo das ditaduras rotativas, porque não há —percebe-se— formas de governo que não sejam ditatoriais; com mais proibição ou menos proibição, ditatoriais. E servio-me, para analogia, da história da intensidade do empurrão que origina o penalty. Admitindo que este empurrão seja mais terno, a verdade é que a bola aparece, ouitra vez, na marca de penalty.

    O problema de fundo, a razão dos problemas de fundo, nunca foi resolvido; porque nunca o modo de pensar foi alterado. A mentalidade, o sustentáculo de todos os comportamentos, é a mesma; as colunas continuam velhas; os poderes continuam estúpidos; as decisões continuam impróprias, porque, ao invés de procurar as soluções para os problemas, o tempo é usado para a procura de desculpas e de lugares. Olhamos em redor, e o que se vê são preparativos para os périplos de campanha. O que se vê são visitas estratégicas, em passeio pretensamente informal, a empresas e instituições; conversas que não são conversas, porque ninguém se ouve nem ninguém diz nada, porque ninguém pode, de facto, dizer alguma coisa que deva ser ouvida, na medida em que a atmosfera não é de raciocínio…

    Começam a aparecer as danças e os cantares; as entrades em bailes propostos por pessoas que, mesmo depois de os terem visto e ouvido mil vezes, continuam a esperá-los e a bajulá-los como se os vissem e os ouvissem pela primeira vez. E eles cantam e dão ao pé. Timidamente, com aquele ar de quem não sabe como evitar a conveniência…

    O passado ainda não foi esquecido e o presente lembramo-no-lo como futuro. Com outras roupagens, noutro estilo, com empurrões mais amenos… mas que vão dar ao mesmo.

    Lembrei-me, tarde, de quantos são hoje. Lembrei-me tarde, porque, no meu calendário, não havia nada para comemorar, a não ser a mentira, a hipocrisia, o segregacionismo. Tudo registado pelo dia-a-dia, e a insistência em que se vive num país democrático… Honestamente, continuo sem compreender o que é a Democracia. Vista daqui, parece-me a evocação do Deus de que me falam, com os modos de que me falam, com todos os poderes de que me falam… e que nunca encontrei, porque a prática tem desdito todas as teorias, e a fé vem sendo esburacada.

    Outro Abril, para quê?!… Já não tenho paciência para esperar que tudo volte ao mesmo; para perceber que, como no outro, no mesmo, não há projecto; não há linhas de orientação, não há um plano director; não uma figura ou figuras que esqueçam o poder e a posse. Das bases ao vértice, há uma pirâmide tonta, de base quadrangular mas de equilíbrio instável, porque as guerras continuam intestinas.

    nota: talvez ferindo a opinião de algumas pessoas, eu acho que o FMI, o Banco Europeu, a Comunidade Europeia, sei lá!, desde que fossem instituições externas, deveriam nomear um governo provisório, apoiado por portugeses que apenas lhes indicassem o lugar das coisas.

    Dirão que os estranhos não nos conhecem nem conhecem as nossas especificidades. Eu digo que, à partida, seria uma vantagem, porque os que nos conheciam e conhecem, aqueles com que, continuadamente “estamos”, governaram como se não nos conhecessem. Ou, melhor, têm podido roubar-nos porque nos conhecem.

  4. Manula Cerca says:

    Gostei. Eras de facto um catraio esperto e, cresceste provando-o, sempre que escreves(e não só).

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