Agricultura e tempo – parte II

A ruralidade actual combina formas antigas e modernas de trabalhar a terra, incluindo cursos para ensinar agricultura e criação de cooperativas para a produção de leite, único e actual objectivo nas ruralidades da Galiza, Astúrias e outros locais de outros continentes que tenho estudado. É o caso dos Picunche, clã da Nação Mapuche que habita na República do Chile. Convivi com eles desde os anos 90 do século passado. Os Mapuche chegaram da Argentina há mais de seiscentos anos. Por ser um grupo agrafo não há registos da sua história. Apenas dispomos dos relatos dos Frades Jesuítas que tomaram conta do clã, ensinando-os a ler, a escrever e a trabalhava na agricultura. A nação Mapuche vivia da caça de animais do mato, como o huemul, a vicunha, os guanacos. Estes últimos defendiam-se do ser humano cuspindo uma baba peganhenta. Não obstante, a sua carne era utilizada na alimentação e a sua pele usada como roupa de agasalho. O frio era intenso no inverno e o verão muito quente.

Viviam com a ajuda de animais domesticados, como ovelhas, vacas e ainda cavalos que serviam como meio de transporte. Conheci muitas histórias dos Mapuche, não apenas pelos comentários que ouvi durante o tempo que vivi com eles, como através da leitura dos manuscritos dos Jesuítas, escondidos no vale das palmas entre a cordilheira e o mar. A minha boa sorte foi ter encontrado não apenas esses manuscritos, bem como um espólio do recenseamento da população, livros de matrimónio, baptizados, defuntos e anotações dos párocos que por aí passaram e que escreviam, ou os seus sermões, ou a história do povo com quem eu habitava. Pencahue, palavra mapudungum que em castelhano significa a língua da terra (que tive de aprender para conseguir comunicar com eles), enquanto Pencahue, nessa língua, significa hue, grande e penca, abóbora ou cabaço: tudo junto, Pencahue é a terra das grandes abóboras que os Picunche sabiam cultivar, após terem aprendido a fazê-lo com os jesuítas que os catequizavam em troca de ensinamentos sobre a agricultura e o gado. Estes ensinamentos eram essencialmente transmitidos pelo Pároco Iván Rojas, filho natural, (era assim que se denominavam os filhos sem pai) pois era filho de outro pároco com o mesmo nome e de uma rapariga Picunche.

Os Picunche tinham o hábito de trabalhar pouco e as suas mulheres tomavam conta dos animais… Só com a invasão dos Inca no ano de 1400 é que passaram a conhecer e a trabalhar na agricultura. Até lá apenas usavam um pau tirado de uma árvore de nome castanheiro e consumiam o seu fruto, a castanha. Os primeiros que lhes ensinaram a tratar dos campos e a retirar produtos da terra foram os incas e a seguir os jesuítas. Pencahue passou então a ser um exemplo de novos hábitos para tratar a terra. Mais ao Sul, nem incas, nem espanhóis podiam entrar naquele clã: a luta dos Mapuche contra os invasores era cruel e desalmada. A fronteira era o que hoje se denomina a cidade de Temuco ou águas sujas.

Os Mapuche tinham a sua própria agricultura e hábitos. Costumavam consumir milho ainda não amadurecido, alimento delicioso e com proteínas. Já na Europa, a planta que dá o milho era utilizada seca para construção de casas, enquanto a maçaroca, a espiga do milho, era utilizada como alimento para os porcos e outros animais. Entre os Mapuche, quem tivesse uma grande extensão de terra semeada de milho, batatas e feijão era considerada uma pessoa rica, a quem os outros acudiam para levar uma parte da produção que os alimentaria. Os cultivos eram feitos pelas mulheres. Um homem que dedicava o seu tempo à agricultura era considerado nocivo e homossexual. Cada homem adulto, nomeadamente sendo Toqui (Rei, para lembrar), podia ter várias mulheres para procriar e trabalhar e rapazes novos para o seu prazer. Estes rapazes eram ensinados a fazer a guerra, objectivo sublime da Nação Mapuche; em troca, enquanto cresciam e aprendiam a batalhar, emprestavam ou forneciam os seus corpos aos mais adultos.

Estas eram as formas de trabalhar dos mapuche, servos dos proprietários das terras desde a aparição dos invasores de Espanha. Poderia afirmar-se que os homens nada faziam, eram as suas mulheres e vários filhos das diversas casas que se dedicavam à agricultura. Este facto está provado por fotografias publicadas no meu livro de 1999: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças, Profedições, Porto. Eu próprio cheguei a receber propostas de outros homens, como narro no livro supra. Neste inverno de pesquisa de 1997 enquanto Angélica Cárcamo, a sua prima Victoria e eu vasculhávamos nos manuscritos, pedi a um trabalhador de Pencahue, que ajudava imenso a decifrar a escrita do Século XVII, se tinha tempo livre para lavar o meu carro. Com imenso prazer, parece-me a mim, o fez. Acabada a faina, quis pagar 1000 pesos, muito dinheiro nesses tempos, que ele não quis aceitar. As raparigas que me observavam riram e disseram: “Senhor Doutor, não é dinheiro o que ele quer, porque já tem muito, o que quer é o seu corpo!” Fiquei estupefacto, nunca me tinha acontecido uma oferta semelhante. Fui falar com ele e disse: XX, agradeço o amor que tem por mim, mas não é essa a minha opção, lamento por si. Chorou, acarinhei-o no meu ombro… e nunca mais o vi, apesar das imensas vezes que passei pelo local em trabalho de campo.

É porém fácil de advertir que a agricultura e as ruralidades têm uma complexa maneira de trilhar os caminhos da vida da produção de bens da terra, com imensa colaboração do saber prático e do saber aprendido nas escolas, especialmente, de agricultura.

Como podíamos definir ruralidades? Ou já está definido e eu não sei? No meu ver, ruralidades abrange, como ideia, tudo o que acontece fora das cidades, mas com ela relacionadas porque a vida urbana não existiria sem bens de consumo e sem ornamentação de ruas, casas, instituições com plantas bem cuidadas, árvores para oxigenar o ar que nos mantêm alegres e vivos. Sem ruralidade dentro de cidade, a vida urbana acabava por matar-nos, como descreve Max Weber no seu texto de 1922, obra póstuma editada pela sua mulher Marianne, antiga discípula do seu marido e pelo seu discípulo Johannes Winckelmann: Economia e Sociedade, versão castelhana que uso, editado pelo Fondo de Cultura Económica.

Ruralidades é a base da vida, da nossa alimentação, de aprender a fazer contas, de calcular investimentos.

Para ruralidades, precisamos terra própria, arrendada ou emprestada por meio do contrato de enfiteuses, pago por meio de um foro.

O melhor exemplo é o meu estudo da Paróquia de Vilatuxe na Galiza, Espanha.

Galiza tem-se caracterizado por dividir as grandes herdades em pequenos troços de terra alugados ou entregues por contratos, tal como defini ao começo deste texto. Mas o tempo foi passando, os hábitos mudaram e os antigos enfiteutas, por outras palavras, os que alugavam terra pelo contrato de enfiteuses (convenção pela qual o dono de um prédio transfere para outrem o seu domínio útil em troca de um foro, sendo este último conceito uma pensão anual que o enfiteuta paga ao senhorio directo, é dizer, ao proprietário do bem raiz). No entanto a ideia de propriedade pessoal começa a aparecer com o liberalismo napoleónico e os levantamentos contra os proprietários começam a surgir. No caso de Vilatuxed, em 1870, perto da queda da Monarquia de Isabel II e do seu exílio na Itália, um novo imposto foi decretado, o denominado imposto sobre o consumo. A Guarda Civil de Lalín, a vila mais próxima da Paróquia, aparecia a seguir a missa dominical, porque sabia que todos os habitantes dos 14 lugares ou aldeias da Paróquia iram lá estar e podiam assim ordenar o pagamento do imposto. Os habitantes, furiosos, liderados por José Ferradas, essas duzentas almas como diz o ofício da guarda civil, num assolo de raiva começaram a lançar pedras contra os oficiais da polícia, que foram obrigados a fugir. Este relatório aparece como Anexo no meu livro da Profedições, 1998, citado antes.

Os habitantes de Vilatuxe, como os de outras paróquias, sentiam a terra como deles e lutaram sem parar até à publicação da lei de 1902 sobre a redenção dos foros. Tornou-se possível adquirir a terra, pagando apenas um imposto de bens reais, os imobiliários, guardando os proprietários que exploravam as suas terras os lucros para si.

Parece-me natural dizer que foi a revolução dos foreiros, ganha por eles, que deu origem ao primeiro sindicato de proprietários, em 1902, extinguindo-se os contratos de foros em todo o país. Foi uma luta dura e cruel. Habituados a serem mandados, a ouvir o que iam produzir e o que estava proibido, os primeiros anos da redenção dos foros foi caótica. Os mais avisados começaram por ganhar mais e ensinavam aos menos apropriados para a agricultura que pensassem por si próprios para assim puderem aprender.

Todo este movimento chama-se agrarismo, esta luta por possuir uma terra própria, com o risco de ganhar ou perder: a agricultura nas mãos dos antigos trabalhadores era uma corrida sem objectivos claros para os agricultores, excepto lucrar com as vendas dos produtos, sempre que as colheitas de bens eram suficientes para alimentar a casa e vender em férias e mercados.

O Movimento dos revoltados foreiros nasce na Galicia, nas províncias da Coruña e Pontevedra, província onde realizei o meu estudo sobre o pensamento dos operários convertidosem proprietários. Aluta tinha sido dura e com revolta, mas o movimento agrário ganhou, lutou contra as rendas forais e o contrato de enfiteuses, que impunham o pagamento de rendas através de bens que eram vendidos pelo produtor, denominado agora proprietário. Estas reivindicações vencedoras começaram em 1899 na Coruña, e passaram a ser uma revolta geral em 1900, movimento que se tornou político vinte anos mais tarde, que desencadeou o derrube do Rei Alfonso XIII e deu um passo para a República, para a vida civil igualitária e para a liberdade de organizar cooperativas de produtores e sindicatos de trabalhadores rurais, instituição nunca sonhada antes, e muito menos experimentada. Foram criadas as associações irmandinhas que lutavam contra o pagamento de avultados valores de foro, tendo começado no Século XII, sem nenhuma sorte, excepto a luta entre pessoas da vida rural: quem era mais obediente e submisso tinha terra; quem era revoltoso, nem de jornaleiro podia trabalhar. Era a aristocracia contra os trabalhadores, estes que produziam os bens que eram o lucro dos ricos, Duques e Condes, que passavam seu tempo em festas e danças na corte do rei.

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