Factores de reprodução social em sistemas rurais: trabalho, produção e pecado em aldeias camponesas

1 – O problema

          Embora num sistema rural se possa definir pela cultura que nele surge como dominante, seja porque proporciona o sustento ou o dinheiro, seja porque ocupa a maior parte do tempo de trabalho, e por fim, da criação da sociedade e cultura, com ele coexistem outras actividades produtivas que o complementam. No caso das aldeias, que tenho estudado no Chile e em Portugal, produtoras de uvas e de vinho, ou nas aldeias produtoras de leite que estudei na Galiza, o milho, as batatas, as azeitonas, as hortaliças, os animais, as matas, compõem o contexto mais amplo dentro do qual se desenvolve o trabalho principal. A  produção  de  tecnologia e a renovação dos instrumentos são também parte do processo de trabalho.

Qualquer processo produtivo nas aldeias camponesas, que no presente subsistem, deve ser entendido neste contexto. Consequentemente, o trabalho da vinha faz parte de um conjunto heterogéneo de actividades, pelas quais se define a relação dos produtores com ela. Não obstante, tanto o conjunto como a sua especificidade ocorrem dentro de conjunturas históricas de rentabilidade, às quais se vinculam os diferentes conceitos de propriedade desenvolvidos ao longo da história, assim como as suas correspondentes formas contratuais, que determinarão as dimensões da exploração rural. O produto principal de uma exploração rural (aquele que mais lucro dá ao trabalhador directo e mais renda ao proprietário) está muito bem controlado tanto pelo receptor da renda como pelas técnicas disponíveis.

         Num sistema camponês, o trabalho (seja produção de leite, de uvas ou de vinho) é realizado pelo conjunto dos membros do grupo doméstico. Porém, o cultivo da vinha e a produção de leite impõem um limite ao número de trabalhadores que pode viver sobre o mesmo tecto e ser alimentado com base no produto principal. Especialmente no caso da vinha, que sazonalmente necessita de um grande número de pessoas, os membros das casas, durante o ciclo  agrícola, devem dedicar-se ao trabalho noutras actividades menos rentáveis. Tanto a vinha como o pasto exigem uma alta concentração de trabalhadores e dado os constrangimentos impostos pelo próprio grupo doméstico, devem obter-se a partir de contratos, de entreajuda, de formas corporativas entre iguais ou de outras alternativas   que permitam  reunir um  grupo de  trabalho   suficientemente

numeroso nas estações que o exigem. Estes agrupamentos efectuam-se dentro das possibilidades tecnológicas e de capital com que os sistemas rurais contam: as formas de angariar trabalhadores não deverão comprometer a unidade patrimonial (quer seja em usufruto ou em propriedade), mas ao mesmo tempo, hão-de permitir a circulação de pessoas, de instrumentos de trabalho e de saberes de forma fluida e garantida. Trata-se de uma estrutura que os produtores criam e regulam, combinando elementos materiais e ideais no processo de trabalho. Tal estrutura, proponho, está definida num código de carácter religioso: a religião expressa publicamente a racionalidade reprodutiva, dá-a a conhecer e garante-a, definindo direitos e obrigações e atribuindo tarefas. Examinaremos, de seguida, o modelo geral que emerge desta hipótese, analisando os factores gerais do processo reprodutivo rural.

2 – A terra

         Não há dúvida que, num sistema camponês de reprodução, a terra é um factor básico. Contudo, não parecem ser, nem a qualidade, nem o tamanho que a convertem num factor reprodutivo melhor ou pior; à qualidade ou ao seu valor ecológico, têm-se os homens adaptado, recolhendo o que ela dá. Da quantidade também se livram os homens, organizando processos de trabalho que permitam dispor da força de trabalho necessária para cultivá-las; ou ainda, estabelecendo alianças que a incrementem quando não é suficiente. Além disso, no passado, idealizaram-se técnicas artesanais para incrementar o rendimento da terra como o adubo (assim como os fertilizantes de hoje em dia, baseados em técnicas industriais), ou como o sistema de rega, que, em conjunto como uma técnica, definem direitos e deveres (Netting, 1981-a, 1982-b; Tax, 1970; Grenwood, 1976; Hansen, 1977). No que se refere à quantidade, quando o grupo de trabalho, que sobre ela se reproduz (o grupo doméstico), se manifesta insuficiente, formam-se grupos como os criados – instituição bem difundida na Península Ibérica até épocas recentes -, constituem-se também grupos de entreajuda, através das redes do parentesco e vizinhança (Iturra, 1978 e 1979); e finalmente, quando a terra é pouca, surgem a emigração, o controlo da fertilidade e o controlo do casamento.

         Pode-se igualmente afirmar que nos novos sistemas economico-políticos, quando se criam regimes de assistência aos trabalhadores do campo, a ajuda estatal à velhice, a não extensão do capital financeiro ao trabalho camponês submetido a um mercado generalizado de mercadorias, neste caso, não importa que a terra seja grande ou pequena. Porque a natureza, por si mesma, não é um recurso reprodutivo, e a terra é apenas um recurso produtivo: são os processos de trabalho e a distribuição dos ganhos, que fazem dela um factor reprodutivo. O exemplo mais claro é o dos latifúndios, pois vários milhares de trabalhadores têm vivido na condição de pobres em explorações agrícolas imensas durante centenas de anos (Martinez Allier, 1968; Cutileiro, 1971; Malefakis, 1976; Barros, 1979). Assim sendo, quando aludo à terra, refiro-me às ideias económicas e jurídicas que definem as relações dos homens sobre o território, estabelecem as relações dos primeiros sobre o segundo, e estabelecem como resultado final a hierarquia social que ordena ou disciplina o acesso.

         Para avaliar o factor terra como factor reprodutivo, é necessário distinguir entre camponês e trabalhador da terra, para abarcar globalmente os dois sistemas principais que têm existido no Sul da Europa, a pequena propriedade e o latifúndio. É necessário diferenciar também o campesinato de instalação recente daquele que, desde há muito, está instalado. Quanto à primeira distinção quero, contudo, chamar a atenção para o facto de os conceitos induzirem em erro: existem explorações de grandes dimensões na Galiza e no Norte de Portugal, como se da Andaluzia ou do Alentejo se tratasse. É que o latifúndio é um sistema de trabalho, como afirmam  Sevilla-Guzmán (1979) e de Barros (1979), ou Barraclough (1966) em relação à América Latina, da mesma forma que o é a pequena propriedade do Norte ibérico ou de Itália. Quando distingo a instalação dos camponeses nas terras da sua maior ou menor duração, refiro-me a quem controla o processo reprodutivo no trabalho camponês. Na pequena agricultura, o controlo do trabalho e do que se deve plantar é assumido por determinadas pessoas, cujo poder deriva da aplicação de categorias etico-económicas, ou então da crença baseada no sagrado. Assim, por exemplo, até à reforma de 1926, em Espanha, que aboliu os foros, ou a de 1968, em Portugal, que extinguiu legalmente a enfiteuse, tinham esse direito o rei, conde, duque, bispo, padre, patrucio, hereu, cabezoleiro, morgado, capelães, reguengos3. Este  sistema  desmoronou-se  lentamente  através de  reformas  sucessivas, entre os séculos XVIII e XIX, enquanto que o latifúndio foi abolido por lei de uma vez, recolhendo os diversos ajustes locais que se haviam produzido ao longo dos vários séculos.

         As categorias éticas ou as de carácter sagrado vinculam as pessoas com a terra, independentemente da sua capacidade para dirigir a produção, dos seus conhecimentos ou do seu interesse. A justificação deste facto encontra-se na ordem natural, nas ideias medievais generalizadas, nas definições dos fisiocratas franceses, portugueses ou espanhóis, reproduzidas num discurso de carácter ideológico, e que haviam já sido definidas pelo tomismo original e pelo neotomismo dos juristas canónicos (Escoto, 1639; Suarez, 1671). Ambos os sistemas foram, desde há muito tempo, contestados por revoltas populares (Maria da Fonte e A Patuleia, em Portugal e as revoltas na Galiza, entre outras), até serem substituídos por outras categorias éticas renovadas, que atribuem a autoridade para dirigir o trabalho produtivo a pessoas com o título cultural e quotidiano de pai, mãe, avô, avó, tio, tia, irmão mais velho, filha casadoura, genro trabalhador, nora fértil, entre outros. Estas mudanças concretizaram-se, por outro lado, na consagração laica do direito sagrado ao uso, abuso e alienação da terra, coisa que Napoleão nos recordou depois de tantos séculos de definições de Agostinho de Hipona sobre as relações dos homens com os bens. O que se consagrou, por outras palavras, foi o sagrado direito do indivíduo à propriedade, categoria definida pelo professor de ética de Glasgow, Adam Smith (1776), e aprofundada por outro filósofo moral, John Stuart (1861), e traduzido para o Sul da Europa pelo liberalismo.

         Vemos, por fim, o conceito que subsume todas as actividades que se relacionam com a terra. Esta ideia de propriedade que regulamenta a relação dos recursos humanos com os naturais, é o que permite explicar que os sistemas de trabalho do Sul e do Norte ibéricos sejam diferentes, ainda que coincidam com a orientação económica: o produto de vários trabalhadores é reclamado pelo proprietário do latifúndio, da mesma forma que diversas unidades de exploração pagam a quem possui o domínio eminente ou ao proprietário de melhor direito.

         Ainda que hoje vejamos o passado com olhos romanos, da mesma forma que vemos a racionalidade reprodutiva com olhos católicos, enganando-nos em ambos os casos, é preciso distinguir os diferentes conceitos de propriedade, se queremos entender como se reproduz o sistema rural. Recentemente, eu cogitava (Iturra, 1985), tentando entender como é que tantas pessoas da aldeia que estudei em Portugal nasciam jornaleiros, viviam enquanto proprietários e morriam jornaleiros; como é que, a tantos proprietários, não era possível aplicar a correlação de Bourdieu (1962) entre estado da exploração e celibato, aplicada a Portugal por O’Neill (1984) com a máxima de «património – matrimónio» (quer dizer, quem tem propriedade casa, quem não tem não casa), extrapolada da situação histórica específica aí estudada, onde o camponês é  proprietário desde longa data. Mostrei, com dados específicos, para as aldeias da Galiza (1979) e Portugal (1985), que nem sempre há, necessariamente, correlação entre casamento e propriedade: nem todos os proprietários casam, assim como nem todos os não proprietários são celibatários ou têm filhos bastardos. O assunto com interesse é outro: os diferentes grupos sociais estão, historicamente, relacionados de forma muito diversa com a terra, inclusive, no seio de um mesmo país e têm, em consequência, diversos conceitos acerca do direito de propriedade (Manuel António Hespanha, 1978, 1980 e 1982; Manuel Murguía, 1982; Michel Foucault, 1966 e 1976, entre outros), e do que esses direitos envolvem (Ramón Villares, 1976; Nuno Monteiro, 1985). No Antigo Regime, o acesso à terra define-se de forma hierárquica dentro dos moldes juridicamente possíveis (foro, arrendamento, parceria, plena propriedade), em função da qualidade das pessoas. Com as revoluções burguesas, passa a ser prioritária a capacidade dos indivíduos para ter riqueza ou, pelo menos, para reunir dinheiro a partir de outras actividades e poder, assim, comprar terra. Nas aldeias que tenho estudado, Vilatuxe na Galiza, Pinheiros (São João do Monte) em Portugal, Talca no Chile, tenho podido comprovar que a libertação da dependência pessoal de um grande proprietário (dependência idealmente formulada, mas materialmente necessária, já que o camponês que não tem terra para trabalhar morre, a menos que procure outras alternativas nem sempre existentes nas economias globais portuguesas e espanholas), dá-se quando um grupo doméstico, representado por um indivíduo, compra a sua liberdade em terra.

         No Antigo Regime, e também antes, a terra faz parte da ordem natural; pertence em última instância ao rei, que vai concedendo prerrogativas (forais), suficientes para que algumas pessoas tenham acesso à terra, e que estas, por sua vez, a concedam a outros para que a trabalhem: é a cadeia, bem conhecida, dos diferentes graus de ser camponês. Esta forma de acesso à terra, materialmente necessária dada a tecnologia e idealmente definida pelo Direito Canónico e pela doutrina dos juristas eclesiásticos, é ensinada ao povo através do catecismo (a versão vulgarizada dos cânones), do conjunto de milagres e do temor ao fogo divino. Sistematiza-se nos conceitos de bem e mal que o próprio povo consagra. Não é por casualidade que o maior pecado no Minho seja «levantar os marcos divisórios da propriedade», tal como descreve Fátima Sá (1983). Portanto, não são apenas o Papa e os sínodos que definem o bem e o mal, o  povo também o faz, na sua prática reprodutiva.

         O acesso à terra, ideado a partir do sagrado e ordenado juridicamente, tem como garantia a noção de pecado e, no segundo âmbito, a de crime. Trata-se de dois conceitos morais que podem merecer castigo público nos tribunais ou em autos-de-fé, o que lhes confere um poder extraordinário  sobre a  conduta,  pelo que  proponho   considerá-los  como factores de reprodução, já que intervêm na regulamentação do acesso à terra, disciplinam as pessoas e emanam da materialidade das relações homens/território. Esta regulamentação moral do acesso à terra/ética que define como deve ser a Natureza – um recurso a ser trabalhado – , encontra-se ainda expressa, de forma mais clara, no regime burguês de propriedade individual, pois nela as designações do parentesco são a categoria da hierarquia de acesso à terra: filho/filha; mais velho/do meio/mais novo; filho presente/ausente; filho/filha que casa primeiro e tem um filho; filhos/filhas dos séculos XX, XIX, XVIII, etc. São conceitos que no processo de transmissão hereditária expressaram, individualizando, qual a pessoa  que fica em determinado lugar, quem terá acesso à terra e quem será excluído. Nos meus trabalhos acerca de Vilatuxe, Pinheiros e Talca, demonstrei que os ideais que definem o acesso à terra, diferenciam-se das estratégias que os trabalhadores devem idear para fazer frente à conjuntura da história económica. Durante o Antigo Regime, na Galiza, o herdeiro era o filho mais velho, enquanto que na actualidade, herda quem sabe mais de aritmética e de cheques, ou então quem ficou em casa acompanhando a velhice dos pais; em Pinheiros é herdeiro o filho ou filha que produz primeiro um filho seu (Iturra, 1980, 1983). Importa salientar que se trata de uma formulação geral, porque o acesso à terra é conjuntural e heterogéneo, e é sobretudo, manipulador das normas canónicas e civis, como veremos noutro ponto. Entretanto, queria apenas mencionar que existe um corpo doutrinal central dogmático, que está presente nas relações entre trabalhadores, sendo o catecismo o código que regulamenta as relações económicas que existem entre eles, aspecto este que pretendo clarificar de seguida.

3 Os trabalhadores

         Se queremos saber como se reproduzem as condições da reprodução social, quer dizer, a sua dimensão processual, teremos de perguntar-nos também como se fazem os trabalhadores, pois eles são condição da reprodução. O grupo doméstico, como diria Goody (1958, 1976, 1979), e Fortes (1958), a família e o casamento, como diria mais tarde o próprio Goody (1983), assim como a maior parte dos investigadores da temática rural (Chayanov, 1925; Polanyi, 1957; Nash, 1966; Franklin, 1969; Dalton, 1971, 1972; Shanin, 1973; Tepicht, 1975; Galeski, 1977; Gudeman, 1978). Ou, por fim, as formas que regulamentam a circulação do conhecimento no seio da família, das pessoas através do casamento, e das terras pela herança, que, como diria Bourdieu (1976), constituem os factores que assumem a reprodução das pessoas e do sistema social.

         Na Antropologia Social, a introdução da dimensão temporal na análise da sucessão de gerações (Fortes, 1949; Goody, 1958; Evans-Pritchard, 1962), ou de sistemas sociais (Goody, 1976), permitiu estudar de que forma os grupos domésticos e o seu contexto global dão continuidade, ou melhor, modificam, a estrutura socio-económica. Mais tarde, investigadores como Bourdieu (1962), Laslett (1977) e O’Neill (1984), preocuparam-se com as formas não oficiais da reprodução humana. Em dois trabalhos diferentes tentei analisar como as condições da história económica afectam a escolha de cônjuges e herdeiros (Iturra, 1980), e as de produzir o produto final, o trabalhador (idem, 1985). Nesta aproximação, os trabalhos de Flandrin (1975), Foucault (1976), Ariés (1980),  Handman (1983), , Vernier (1985) têm sido importantes contribuições na linha seguida por Medick (1984), que formulou com os interesses, parecem orientar as emoções, delimitando assim o processo reprodutivo dos produtores. A contribuição para a análise dos autores mencionados insere-se na linha de definição do contexto em que tem lugar a reprodução social; um exemplo de síntese deste tipo é o magnífico texto de Godelier, La production des Grandes Hommes (1982). O problema é o seguinte: certamente que há um conjunto de factores que incidem no processo de reprodução social, especificamente, dos homens. Contudo, e do ponto de vista do contexto em que se reproduzem, são aqueles indivíduos que virão a ficar com a terra e no grupo doméstico onde aprenderam as técnicas de trabalho (os trabalhadores, em suma), para  contribuir especificamente para a continuidade do processo reprodutivo. Por este motivo, quando me refiro a eles, falo de trabalhadores e de «produção de produtores». Considero que para abordar a sua análise devem considerar-se três elementos de um mesmo processo: o primeiro, o sistema heterogéneo da reprodução humana; o segundo, a aprendizagem; e o terceiro, a colaboração redistributiva de funções que ocorre entre os membros do grupo doméstico para executar o trabalho produtivo, aspectos estes que tratarei adiante.

         Através dos dados das aldeias que tenho estudado (Iturra, 1985, 1986), e nos estudos de O’Neill (1984) e Rowland (1984), para a Península Ibérica, é possível verificar o que tenho denominado um sistema reprodutivo heterogéneo. O matrimónio, do ponto de vista legal e também cultural, é a forma mais evidenciada de produzir seres humanos, surgindo nos meus dados como uma das formas possíveis, entre várias, para produzir produtores. Na realidade, é a forma ritual de declarar quem é aliado de quem, e a que terras vai ficar adscrito, dependendo do estatuto do cônjuge: proprietário eminente, proprietário do uso, trabalhador sem terra ou proprietário directo.

A filiação faz parte das formas reprodutivas, pois responde à necessidade de mostrar publicamente de quem é filho/a cada uma das pessoas e, portanto, que vínculo terá para com os bens. O estatuto que cada indivíduo venha a adquirir define se este será senhor da terra ou trabalhador que deve obediência aos outros para aceder à terra ou a um salário, ou se ficará na terra ou se deverá emigrar. A filiação regula a relação com os bens que, em conjunto com o trabalho, permitem a continuidade da vida. É por essa mesma razão que parece ser também necessário evitar a relação de filiação declarada legalmente, a fim de não vincular as pessoas com os bens. Pessoas que, por outro lado, é necessário produzir para assegurar a manutenção do processo de trabalho. Entre os bens transmitidos não se conta apenas a terra; há também os direitos que no Antigo Regime, e ainda hoje, se transmitem de pais a filhos, como são os contratos de enfiteuse e algumas formas de parceria.

         Na análise de um período de cinquenta anos que realizei em relação a uma aldeia portuguesa, deparei-me com o facto de um terço das pessoas nunca ter casado; e destas, todas as mulheres jornaleiras e uma ou outra proprietária tiveram um ou mais filhos apesar de não estarem casadas. Quanto à situação dos homens, esta é um pouco mais difícil de investigar, embora tenha podido comprovar nos registos entre 1868 e 1864 que se consignava o nome do pai, ainda que não houvesse vínculo ritual público. A partir de 1867, os pais não casados constam como padrinhos das crianças com quem tinham tido filhos até essa data. Trata-se do ano em que o  primeiro Código Civil Português estabelece que os filhos que consigam provar a sua filiação (mediante prova escrita ou testamento, ou então pela pessoa lesada desde que o prove através de arquivo), terão direito aos bens do pai, se os houver. Desta forma, a deslocação do pai biológico, e a sua conversão em pai ritual, chamado padrinho, constitui uma forma de manter a produção de trabalhadores (a um filho sem vínculo com os bens não lhe resta outro destino senão ser trabalhador), permitindo, ao mesmo tempo, cumprir com os deveres de assistência que a moral prescreve. Na actualidade, nos poucos casos de filhos sem pai social, os irmãos do progenitor são padrinhos.

         Casamento, bastardia, incesto, gravidez da mulher do outro, adopção e filiação ritual constituem, juntamente com o celibato, são estratégias complementares de um sistema de reprodução de tipo heterogéneo que parecem ir contra o sistema ético com que as pessoas regulam as suas relações, e que a Igreja Católica parece defender tão tenazmente. Contudo, há diversas situações que é necessário clarificar para evitar pensar que existe descontinuidade lógica entre as ideias que orientam as relações e as próprias relações. Uma explicação possível é a paixão e o desejo, mas não seria lógico que um sistema racional de reprodução se baseasse na abstinência, quando, por outro lado, a própria abstinência e o desejo estão previstos para regular em cânones e nas práticas. Assim sendo, a fornicação de qualquer tipo (ainda que analise apenas a reprodutiva), só será considerada crime se for possível provar publicamente em tribunal eclesiástico ou civil (Can. 2757 do Código de Direito Canónico de 1917). Além disso, a confissão é um acto através do qual um tribunal socializa a reparação da falta; ou seja, a confissão e a comunhão frequentes da pecadora são o signo do perdão, a aceitação por  parte do grupo social de condutas teologicamente incorrectas. Procura-se, não obstante, evitar o casamento da mulher que teve filhos sem filiação oficial, a menos que seja com o próprio pai da criança, ou quando esta é fruto de um incesto forçado e injusto. Assim acontece, pelo menos, nos casos que surgem do cruzamento dos dados que recolhi.

         O que me interessa realçar aqui é o facto de, ao nível dos trabalhadores, a reprodução ser uma prática heterogénea, tanto no que diz respeito ao número de práticas existentes, como nos aspectos com os quais se liga, especialmente, o patrimonial. Não se trata de que um esperma qualquer fecunde um óvulo qualquer, mas sim de estabelecer que esperma (de qual homem) casará com o óvulo (de qual mulher). Ideologia historicamente oculta, mas persistentemente imposta pela patrística da Igreja Católica. Reprodução que poderá ser, por vezes, impossibilitada por causas naturais. Situação igualmente prevista pela Patrística. Quando a aliança é impossível, então dissimula-se como se fosse inexistente, e o fruto dessa união é declarado unilateralmente, ainda que a bilateralidade seja pública e notória. Isto só é possível em sistemas culturais onde o poder da palavra escrita tem tanta relevância como a própria procriação. A partir do momento em que os camponeses passaram a ser proprietários da terra, o sistema heterogéneo viu-se reduzido a uma só prática, a do casamento, normalmente entre gente que ainda não tem filhos, ou que só possui aquilo que o sistema de regulamentação da fertilidade não fiscalizou a tempo.

         Um segundo momento que há que fazer ressaltar na reprodução dos trabalhadores é o da sua doutrinação. Ainda que no fundo só existia um corpo doutrinal, há três tipos de mestres nesta prática: a família, a Igreja e o Estado, que ensinam de forma a não deixar dúvidas nos espíritos, os princípios que, em primeiro lugar, definem as relações sociais, hierarquia, obediência e autoridade. Há também, o princípio da solidariedade ou caridade, que se aprende entre as virtudes. Não obstante, parece-me que o princípio da maldade primordial do homem é tão reiterado em palavras e práticas, que o da caridade passa a ser a sua sombra positiva.

         A criança, desde que nasce até que, já maduro, morre, passa por um conjunto de rituais bem especificados na idade e no tempo, os quais já  referi detalhadamente (Iturra, 1985). Não existe aqui apenas um conhecimento dos códigos de comportamento, que são minuciosamente ensinados (catecismo), rigorosamente controlados (confissão) e redefinidos escatológicamente (comunhão ou eucaristia), como também há neste ensino uma dimensão totalmente prática. Por exemplo, a divisão do tempo litúrgico serve de referência às actividades produtivas ao longo do ciclo agrícola. Desta forma, enquanto que a criança recebe o código moral público de comportamento, são-lhe ministrados também os aspectos práticos da reconciliação social mediada pela penitência, que assegura o cumprimento do código ético a nível público, e do ciclo mítico que orienta o ciclo cósmico, agrícola.

         A religião, como teoria da actividade, faz parte da racionalidade reprodutiva, antes da teoria do liberalismo se ter introduzido na produção rural, baseando-se nos conceitos de direitos e deveres que se devem aos que

detêm a autoridade. Da sociedade do Antigo Regime sobreviveram as categorias domésticas enquanto directrizes da produção, às quais se aplica a noção de Deus estóico que no Ocidente representa a verdade. A doutrinação do produtor consiste na alienação da sua vontade mediante noções como as de hierarquia e autoridade, representadas conjunturalmente por determinadas pessoas. Esta ideia da religião como “ópio do povo” (Marx, 1884), tem correspondência com uma realidade consistente: as ideias mobilizadoras do trabalho rural, feitas teologia pela Igreja ao longo do tempo, e que têm um conteúdo que mobiliza as pessoas na sua entrega à vontade do soberano. Trata-se, pois, de um paradigma teísta, que antecede e é contrário ao paradigma burguês que lhe sucederá. E se tais noções são mobilizadoras, é porque conseguem sistematizar as ideias e dirigi-las para os aspectos pragmáticos da actividade produtiva material.

         Nas análises que tenho desenvolvido acerca da conduta ritual, tenho podido observar que, tanto no passado como no presente, esta é praticamente universal em todos os grupos sociais onde tenho trabalhado. Só se afastam dela as pessoas que contam com bens próprios comprados (a partir do século XIX), ou aquelas que dispõem de um grupo de trabalho suficiente para realizar a actividade produtiva, pelo que podem desinteressar-se do conjunto mais vasto do grupo social. Contudo, esta falta de solidariedade para com os demais ameaça de extinção a sua estirpe, já que não casam, não festejam, nem contam com colaboração no trabalho e na doença. Afastam-se igualmente aqueles que atravessaram os limites do permitido na vida privada (coisa que, normalmente, é mais frequente do que a Doutrina Católica permite), como o são os casos de incesto, de prostituição e homossexualidade reconhecidos publicamente, quando o transgressor abandona abertamente o Direito Canónico e, ficando isolado dos outros, acaba por ter de partir. Estes casos, que o limite da minha exposição não me deixa aprofundar, são a prova de que as normas doutrinais devem ser cumpridas, mas que podem transgredir-se em privado, sempre que não afectem o domínio público.  É claro que doutrina e  a falta podem manipular-se como provam as variáveis definições de pecado (registadas anualmente pelos sínodos regionais), ou as manipulações efectuadas com o ritual quando, por exemplo, pelo casamento se legitima um bastardo, ou como no caso de um registo que encontrei de um nascimento que havia sido feito quatro anos após a morte do progenitor, ou ainda os casos de assassinato que se ocultam porque o seu autor controla ou redistribui recursos.

         Em síntese, e sem poder entrar na miríade de casos que parecem contradições, mas que não são mais que alternativas relacionadas com os factores históricos da racionalidade reprodutiva, quero realçar que o produtor é fabricado no grupo social, pelo que a sua presença individual no mundo é apenas parte de um processo mais geral.

         O terceiro momento, refere-se à atribuição de tarefas a cada componente de um grupo doméstico, como um dos aspectos que contribui também para a reprodução dos trabalhadores. A tecnologia do sistema rural  pode apenas usar-se a partir da força de trabalho que o grupo doméstico possui ou, se falta, complementada pelos parentes e vizinhos. Ora, as ideias morais codificadas na doutrina e na lei canónica permitem a existência de um grau de confiança suficiente para que se possam dividir tarefas entre os membros do grupo doméstico. Ao mesmo tempo que anulam as forças antagónicas que, se disputassem por um mesmo pedaço de terra, aniquilariam e dividiriam também a força de trabalho.

         Tanto na Galiza como em Portugal, tenho podido observar a colaboração, que existe entre pessoas distintas que circulam por meio dos laços de consanguinidade, e que se adapta a distintas conjunturas históricas. Assim sendo, quando a propriedade eminente é do conde ou do morgado, os casamentos entre parentes próximos (que implicam a manipulação da lei canónica), são prática habitual que assegura a concentração de recursos: terras, animais, foreiros e trabalhadores. Quando a propriedade se concentra num indivíduo e, como resultado da desamortização ou do desinteresse da classe proprietária, a terra vai ficando abandonada e vaga, o produtor emigra, abandonando, de forma prolongada, o grupo doméstico, e regressa para comprar a fazenda vizinha que já ninguém cultiva. São estes os momentos em que, na variabilidade típica da aliança matrimonial, se volta à exogamia e se importam maridos para a aldeia, enquanto que os homens da casa partem para poder reunir o dinheiro que permitirá a lenta compra de terras por parte dos parentes que ficam em casa.

         O trabalho é feito pelos residentes do grupo doméstico, o produto é aplicado em pagamentos  e na reprodução agrícola, enquanto que a renda é colectada individualmente, tal como prescreve a concepção dos juristas burgueses. A terra continua a ser trabalhada e consumida por um grupo, cuja racionalidade reprodutiva está contida nos preceitos religiosos, já que estes sistematizam os direitos e deveres do parentesco, o que se pode apreciar melhor nas distintas formas de ajuda e colaboração no trabalho. Assinalarei, finalmente, que esta reflexão, baseada nos meus estudos sobre a pequena agricultura, tem uma dimensão diferente em zonas de conquista e de missão, aspectos que não posso aqui desenvolver.

4 – O trabalho

         Os grupos domésticos, por vezes, não são suficientes para realizar o trabalho, tanto na pequena agricultura como no latifúndio. Quanto a estes últimos, tenho observado na América Latina e no Alentejo que a casa se divide em dois tipos de trabalhadores: os que partem (em número que depende dos constrangimentos do produtor), para trabalhar nas terras do proprietário, e os que ficam em casa para trabalhar as terras, das quais se possui o usufruto, ou que pertencem à família (Barraclough, 1966; Barros, 1979). Na pequena agricultura segue-se um sistema semelhante, tanto no Antigo Regime como quando já existe a propriedade directa.

         Os grupos domésticos não têm pessoal suficiente para realizar o trabalho necessário, nem todo o conhecimento que as diversas tarefas requerem, nem tão-pouco os instrumentos. Mais ainda, no seu desenvolvimento através do tempo, cada grupo doméstico vai perdendo pessoal jovem por casamento ou por emigração (o que contribui também para a reprodução), e é afectado também pela morte dos mais velhos e das crianças. O grupo doméstico não adquire mais trabalhadores pelo casamento do que aqueles que perde pelas razões apontadas; e os que ganha por nascimento estão numa etapa da vida em pouco podem contribuir para as tarefas agrícolas. Face à necessidade de contar com mais pessoal, de suplementar os conhecimentos técnicos e de juntar ferramentas, cada grupo doméstico recorre a outros em busca de colaboração, sendo comum a chamada entreajuda.

         A circulação de bens e de trabalhadores constitui um aspecto essencial do processo de trabalho, através de um código regulado pela racionalidade do parentesco, onde se encontram categorias etico-económicas diversificadas entre pessoas que devem umas às outras obrigações e direitos, seja em vida, seja na morte. São categorias éticas porque as define a doutrina cristã sobre forma de deveres aos quais não correspondem direitos; e são económicas porque nelas se incluem os recursos produtores de bens. Porém, quando um grupo doméstico necessita estabelecer cooperação, a que outro grupo doméstico recorrerá e para que tipo de trabalhos? Os requisitos variam de uma região para outra e dependem também do tipo de agricultura praticada, embora em todos os casos haja sempre períodos do ano em que se concentra mais trabalho. O ciclo agrícola tem uma série de etapas: preparação da terra, sementeira, colheita, as actividades relacionadas com a conservação da casa, caminhos, muros, assim como o cuidado dos animais e a exploração da mata. Assim sucedia nas aldeias estudadas na Galiza e em Portugal, dedicadas à produção de leite e de vinho, tanto na actualidade como quando existia domínio eminente de um senhor.

         O grupo doméstico do sistema rural, quando detinha propriedade eminente, dividia o seu trabalho entre os deveres para com o senhor e os da terra concedida; o da pequena agricultura divide entre os trabalhadores especializados para a venda e para a subsistência. O grupo doméstico da propriedade eminente podia destinar aos seus trabalhadores tarefas de cooperação quando não trabalhavam para o senhor. O grupo da pequena propriedade individual reparte o trabalho em função dos conhecimentos especializados, da capacidade para trabalhar (segundo a força física e a idade, mais do que pelo sexo), e, eventualmente, em função do dinheiro, mesmo quando o sentido da colaboração é poupar esta forma universal de pagamento de economia do capital, com a qual confinam os camponeses. O tempo de trabalho divide-se entre uns e outros, para poder ajudar outros grupos, como constatei ao longo da observação de duzentos casos na Galiza e duzentos e oitenta em Portugal. Esta necessidade de colaboração verbaliza-se como uma obrigação entre parentes e vizinhos de se ajudarem mutuamente. Contrastada com a acção, a definição verbal, que para todos os efeitos é muito ampla, não coincide estritamente com ela, precisamente porque nas aldeias rurais todos são parentes e vizinhos.

         Esta verbalização que diz respeito à obrigação de ajudar-se mutuamente não faz mais do que definir ou repetir um código que já está escrito, sobre a honra devida aos pais e aos superiores e sobre o amor ao próximo (S. Pio X), o que constitui uma dimensão da relação social garantida mediante o castigo material (exclusão do grupo de trabalho) e espiritual (condenação eterna). A honra ao pai e à mãe e aos superiores inclui também o que nas palavras de Radcliffe-Brown (1952), estudando os Maori, poderíamos denominar a solidariedade devida aos membros de uma mesma geração. No preceito doutrinal católico, os irmãos dos pais são conceptualizados e tratados com o mesmo tipo de respeito que os progenitores, ainda que possa haver um maior grau de flexibilidade na relação, tal como pude comprovar no meu trabalho de campo. Quando tal relação se consolida através do parentesco ritual padrinho/afilhado, os deveres que se estabelecem podem ser inclusivamente maiores do que os que têm origem na filiação directa. Se a isto juntarmos o casamento (pelo qual normalmente o cônjuge ingressa na família da sua mulher, ainda que nem sempre na casa), temos já uma pista acerca do que constitui a racionalidade do trabalho: o direito de dar que se estabelece a partir da rede de relações de trabalho que se tece nas aldeias, devido aos constrangimentos que tenho assinalado. Este direito formula-se, normalmente, com algo que deve complementar-se com a obrigação de pagar, seja em relações recíprocas ou não (o senhor dá e a ele se paga, e a relação que se estabelece não é de reciprocidade).

         O direito de dar, ou simplesmente, a dádiva (Mauss, 1923-1924; Malinowski, 1922; Sahlins, 1965, entre outros), base da racionalidade dos sistemas de trabalho, pode-se construir e orientar de modos diversos. Evidencia-se, em primeiro lugar, o casamento, em que duas pessoas declaram diante de uma testemunha privilegiada, sagrada, que querem viver juntas para sempre, e isto implica cessão de bens entre elas, seja de forma unilateral ou mútua, com acordos em relação aos dotes, ou então mediante acordos matrimoniais (Iturra, 1980); implica também dar o corpo  para a procriação e o trabalho. Uma segunda forma de construir a relação de dar e receber, é a que se estabelece entre filhos e pais, com trocas equivalentes de alimento e trabalho que são reguladas através do afecto ou, simplesmente, através da autoridade dos pais e da obrigação que têm de prover os primeiros: deixo para outra ocasião a análise dos elementos pragmáticos da relação e sua abstracção no modelo bem definido da Sagrada Família (onde o pai é casto, a mãe é virgem e o filho é a verdade). Uma terceira forma de processar a obrigação de dar é a projecção dos deveres filiais para com a casa, uma vez que os filhos a deixem para contrair matrimónio fora: estabelece-se, assim, uma obrigação mútua entre casas, que ao mesmo tempo é conflituosa, já que os cônjuges que estão numa casa são filhos de outra e ambas necessitam de colaboração. Enquanto os netos são pequenos, a relação é resolvida conjunturalmente, embora  tenha observado que se há escassez de filhos para colaborar, pede–se ajuda de preferência aos pais da mulher, pelo que esta é considerada, pelos parentes do maridos, uma má nora, o que significa que não cumpre as obrigações mútuas. Uma quarta forma de construir a relação de trabalho é a que se estabelece quando os netos são adultos e se repartem entre as casas dos avós, tios-padrinhos, padrinhos e tios. Neste nível de parentesco estabelecem-se também e em quinto lugar, relações construídas com base nas doações hereditárias. Em populações onde ocorre o não casamento (celibato, maternidade bastardia), há sempre um conjunto de proprietários de terra (usufrutuários ou proprietários directos), que têm de assegurar a continuidade da gestão com base em descendência criada por outras e definida como continuadora através do parentesco ritual, estruturado canonicamente.

         No modelo até agora apresentado sobre a racionalidade da cooperação, reconheço que faltam todas as estratégias alternativas que noutros trabalhos tenho analisado, pois nessa racionalidade, alteram-se nos casos de emigração, com as mudanças na técnica e com a especialização dos parentes em distintos processos de trabalho, uma vez que o direito de dar se processa de forma diferente, ainda que os princípios de recrutamento sejam os mesmos. Na emigração com regresso, os ganhos entregam-se à família que fica na aldeia e o dinheiro investe-se em terra, na construção de uma casa ou um café: a colaboração confia os recursos obtidos na economia da maximização para aos recursos da reciprocidade (Iturra, 1984). No caso em que os parentes estão em diferentes processos de trabalho, a racionalidade da ética religiosa não tem mais eficácia económica do que orientar, é reconvertida a partir da inclusão de outros indivíduos no mesmo processo de trabalho, os quais, classificados como parentes em algum grau, se aproximam da relação por meio da prescrição ética (obrigação de dar), que renderá benefícios comuns na actividade económica. Esta é, como comentava acima, a quinta forma de estruturar o direito de dar, de orientar o processo de trabalho.

         Há toda uma gama de colaboração possível entre vizinhos, com base no conhecimento, na contiguidade de terras, na posse de instrumentos ou, simplesmente, no facto de obter benefícios em dinheiro no final do ciclo de produção. Este último, impõe-se presentemente nas aldeias, onde o tractor é o grande parente que, ao acelerar o trabalho dos outros, cria uma abundante clientela de mão-de-obra, liberta do ciclo total das rotinas artesanais que ocupam o tempo e as energias dos trabalhadores. O uso do tractor (que se é pago em dinheiro pertence à racionalidade da economia do liberalismo burguês e não camponês), efectua-se mais na linha de maximizar a força de trabalho para o proprietário da máquina, do que em linhas éticas. No domínio da economia camponesa pode ver-se que a racionalidade que organiza as trocas entre não parentes responde a critérios de utilidade dentro de uma troca de bens, em que se podem isolar moedas que servem como mediadoras (Iturra, 1977; 1985).

         Em síntese, pode dizer-se que o direito de dar (a dádiva, o dom da caridade), exerce-se entre vizinhos como uma forma de dinamizar uma relação de trabalho que coloca uma pessoa em dívida para com a outra se aceita a relação, e aceitá-la em função de aspectos bem utilitaristas: ou por falta de parentes que possam mobilizar recursos através da rede etico-económica orientada canonicamente, ou então porque o doador é membro do mesmo processo de trabalho que o recebedor. No segundo caso, a racionalidade da ética religiosa explica-se de uma maneira geral através da solidariedade e do amor, e mantém-se materialmente pelo benefício monetário que a associação traz. Quanto ao primeiro caso, emoções ou interesses estão convenientemente distribuídos e garantidos escatologicamente, como passo a explicar.

5 – A garantia

         Até ao presente momento tenho tentado demonstrar de que forma a reprodução do sistema rural, processo de trabalho submetido a outro, tem uma racionalidade de publicidade nas ideias religiosas. Por outras palavras, tenho tentado unir elementos do processo produtivo a um sistema de pensamento que normalmente se estuda como um fenómeno em si mesmo. A minha hipótese de trabalho parte da ideia de que a religião é a teoria da actividade económica que, nas relações sociais de hoje, se transforma lentamente numa racionalidade teorizada a partir de uma perspectiva económica (Iturra, 1986). Existe uma semelhança entre ambas as teorias: as duas orientam a actividade que permite produzir a vida material, sistematizam as relações entre os homens, dão estatuto às coisas e regulam a relação dos homens com elas. Há entre ambas uma diferença: enquanto que a teoria religiosa da actividade económica se centra nas pessoas e nas hierarquias (maximiza-as), para vinculá-las às coisas, a teoria económica centra-se nas coisas (maximiza-as), e atribui-lhes um valor, através do qual podem ser adquiridos pelas pessoas. Entre as duas existe uma relação que não é de continuidade, pois trata-se de dois sistemas que se cruzam em diversos níveis: no tempo histórico (onde conjunturalmente coexistem com maior preponderância de uma ou outra), e na própria racionalidade, já que a teoria económica com que hoje se tentam governar as coisas é uma derivação da ordem moral definida religiosamente. Adam Smith (1776), por exemplo, substitui o príncipe pelo Estado, John Stuart Mill (1861) realça a bondade como base da sua teoria da opção e John Maynard Keynes (1936) desenvolve uma teoria da riqueza que, pelas vantagens que tem para o sistema reprodutivo, se converte numa ética que faz predominar o monetarismo e justifica o predomínio da riqueza sobre a Humanidade.

         Como sistema teórico das relações com as coisas, a religião desenvolveu um braço armado que, por vezes, era de temer – a Inquisição – que se manteve ainda depois do seu desaparecimento nas águas, ora quentes, ora frias, da confissão (criada no século XII). Porque, quer seja um problema de crença ou não na outra vida – há diferenças entre esta outra vida definida pela Igreja e a do povo ou, pelo menos, entre o ciclo tomista e a aldeia onde os mortos residem, o cemitério -, quer seja pelo facto de a religião ser um sistema metafórico e não escatológico, existe no domínio público uma parte de código das relações que é repressivo ou, pelo menos, é orientador e fixa opções. Neste contexto situa-se a noção de pecado, da qual não estou em condições de falar, pelo menos do ponto de vista da investigação que estou realizando.

         O pecado aparece muito cedo na mitologia cristã explicando geneticamente a Humanidade; como qualquer cultura, a judaico-cristã distingue entre o bem e o mal: o primeiro é premiado e o segundo castigado. Pertencendo a esta cultura, conhecemos bem a existência das penas do Inferno que nos fazem viver como seres culturais. Estas penas não só são prometidas pela palavra nos sermões (que ao longo dos meus trabalhos de campo pude ouvir), como são também prefiguradas fisicamente por meio de jejuns, penitências, genuflexões, castigos e outras formas através das quais as sanções se têm expressado ao longo dos séculos. Os ritos da Semana Santa, por exemplo, constituem um bom quadro da desolação do corpo quando a alma perde a graça. Porém, a pergunta que surge é até que ponto a noção de pecado garante o funcionamento do código doutrinal porque se temem as penas futuras, e até que ponto o garante, tornando públicas e socializando (quer dizer, predicando), as razões pelas quais uma pessoa pode ser expulsa da colaboração (comunhão), ou excluída da possibilidade de aceder à terra através do casamento, da herança ou então, continuando os exemplos, do sacerdócio. Será a crença aquilo que funcionou como garantia de que os contratos orais sejam cumpridos e que os valores adscritos às categorias etico-económicas sejam respeitados, ou será a prática da conduta que se ajusta à ética? A dúvida assalta o investigador quando se apercebe, como sucedeu nas minhas investigações, que podem aparecer dois comportamentos éticos: um que se ajusta às normas e prescrições e que demonstra publicamente um comportamento que honra a pessoa, e outro que envergonha, que dá que falar. A heterogeneidade reprodutiva, as contravenções dos preceitos rituais, o cumprimento pouco fiel das normas, e algumas faltas contra a propriedade, são aspectos facilmente esquecidos pelo povo, ou reajustados dentro de um código social garantido oficialmente pela Igreja, que reorienta estes comportamentos desajustados: o arrependimento redime. A educação não oficial dos jovens através de outros jovens e adultos, a custódia da castidade pré-matrimonial, a regulação da fertilidade matrimonial através do recurso à prostituição, os  numerosos pactos com figuras malignas em conjunto com promessas e votos e a predicação sagrada e a reprodução humana criminal, são alguns dos muitos factos que proporcionam continuidade ao comportamento e que resolvem o que a rigidez da prescrição não contempla. Por outro lado, actos como o roubo, a invasão da propriedade alheia, os atentados contra a saúde e a integridade física, o bom nome ou a fama (todos eles contemplado no decálogo), são normalmente sancionados de forma directa pelos ofendidos, que assim passam a ser pecadores devendo então recorrer ao tribunal da confissão, pelo menos se agridem na réplica, tornando-se agora vítima o primeiro agressor.

         Todos estes assuntos têm sido bem legislados pelo Direito Canónico, que prevê tribunais consoante os crimes, e também sínodos locais que cada ano redefinem as faltas. Assim, como o preguiçoso ou  não cumpridor terá o seu castigo na terra ao ser proscrito das alianças e cair na pobreza, assim, também, o que não cumpre os deveres terá de pagar uma sanção cultural por cada falta infringida na estrutura de relações. Para que tais faltas se conheçam, se identifiquem no tempo, no espaço e nas diversas categorias de pessoa de uma sociedade oral e cíclica como é a rural, tais faltas e seus castigos inscrevem-se na memória pela penitência, que passa a ser o tribunal mínimo que garante o cumprimento da racionalidade reprodutiva. Desta forma, tais faltas são conhecidas, identificam-se no tempo, no espaço e nas diferentes categorias de pessoas. Parece-me, portanto, que se estrutura o trabalho nos sistemas rurais, inclusive os que se centram na vinha, e assim parece estruturar-se a racionalidade reprodutiva, a partir da garantia que o pecado proporciona.

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* Publicado in Arxiu d’Etnografia de Catalunya, nº.6, 1988. (Traduzido do castelhano por Filipe Reis).

  1 – O presente texto foi apresentado como conferência nas I Jornadas sobre Viticultura da Concha Mediterrânea, realizadas em Março de 1986. A revisão e preparação do texto para edição foi feita por Dolors Comas d’Argemir.

  2 – No Chile estudei o comportamento de camponeses que tinham passado do sistema de trabalho latifundiário para o de cooperativas de reforma agrária na região do Valle Central; este estudo foi realizado por uma equipa interdisciplinar do Centro de Estudos Agrários e Camponeses da Universidade Católica do Chile, onde era docente e investigador. Na Galiza, vivi durante mais de um ano numa paróquia rural, província de Pontevedra, onde estudei o comportamento de pequenos proprietários numa perspectiva histórico-etnográfica, como investigador e docente do Departamento de Antropologia Social do Trinity Hall (Universidade de Cambridge, Inglaterra). Em Portugal, estudei o problema da racionalidade reprodutiva numa aldeia de uma freguesia da Beira Alta, como investigador do Instituto Gulbenkian de Ciências e do Departamento de Antropologia Social do I.S.C.T.E. Neste caso, o estudo etnográfico de dois anos levou-me a  colocar  um forte acento na pesquisa genealógica de arquivo, assim como Direito Canónico e nas práticas religiosas, enquanto orientadores da racionalidade reprodutiva. Algumas ideias que desenvolvo baseiam-se também nas observações que realizei em contextos urbanos e rurais da Escócia, enquanto estudante da Universidade de Edimburgo, país onde as ideias religiosas têm uma grande importância na sistematização da realidade.

3 – Denomino categorias etico-económicas a estes cargos, onde normalmente é pouco relevante conhecer a individualidade de quem os ocupa como o rei, conde, duque, morgado, ou onde os requisitos do ofício definem a capacidade necessária para desempenhá-los, como no caso do bispo, patrucio, hereu, cabezoleiro, e, talvez, capelães. Apesar destes cargos possuírem uma elevada funcionalidade pragmática na organização do trabalho numa sociedade do Antigo Regime, seja nas ideias ou no quotidiano (e por isso gostaria de chamá-los office), são concebidos como inerentes ao sagrado na sociedade e na família, como algo permanente que fundamente a conduta e não como resultado das relações sociais. Rei, conde, duque, bispo, padre, capellán (capelão, em português) são cargos bem conhecidos na concepção da sociedade antiga. Alguns adquirem sentido em contexto mais locais. É o caso do patrucio, herdeiro da maior parte dos bens de uma casa, que é como na Galiza se designa o primogénito (Iturra, 1980), da mesma forma que o erederue basco e o hereu catalão. Cabezoleiro era quem cobrava os foros em nome dos senhores, na Galiza. Morgado era, no Portugal do Antigo Regime, o varão primogénito que herdava, de forma única, universal  e exclusiva, o património de um proprietário de terras dedicadas à produção agrícola e que haviam sido declaradas fora de toda a possibilidade de venda pelo rei. Reguengo é a terra que está fora do comércio e que pertence ao rei em Portugal, enquanto rei e não enquanto indivíduo.

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