Os professores, por José Luís Peixoto

Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança.

O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.

O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva. O trabalho dos professores é a generosidade.

Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais de ontem. O acto que praticam é igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. O conhecimento que enche as páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência daquilo que os professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os professores recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.

Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança. Vemo-los a dar forma e sentido à esperança de crianças e de jovens, aceitamos essa evidência, mas falhamos perceber que são também eles que mantêm viva a esperança de que todos necessitamos para existir, para respirar, para estarmos vivos. Ai da sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está vivo. Mesmo que ainda respire, já morreu.

Envergonhem-se aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se aqueles que dizem que não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são maiores é quando o esforço para ultrapassá-las deve ser mais intenso. Sabemos que estamos aqui, o sangue atravessa-nos o corpo. Nascemos num dia em que quase nos pareceu ter nascido o mundo inteiro. Temos a graça de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o entendimento do que significa estar aqui, nesta posição. Em anos de aulas teóricas, aulas práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo, sumários escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar. Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos facilmente à conclusão que, como nas aulas de matemática ou de filosofia, não há problemas que disponham de uma única solução. Da mesma maneira, não há fatalidades que não possam ser questionadas. É ao fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.

Recusar a educação é recusar o desenvolvimento.

Se nos conseguirem convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que aquele que encontrámos, o erro não será tanto daqueles que forem capazes de nos roubar uma aspiração tão fundamental, o erro primeiro será nosso por termos deixado que nos roubem a capacidade de sonhar, a ambição, metade da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos avós. Mas espero que não, acredito que não, não esquecemos a lição que aprendemos e que continuamos a aprender todos os dias com os professores. Tenho esperança.

Artigo de José Luís Peixoto, publicado na revista Visão de 13 de Outubro de 2011

Comments

  1. E o que fazer quando um Estado portador de um infimo sentido de responsabilidade e uma incompetência maior do que todos os umbigos de todos os ministros juntos é o primeiro, por razões economicistas a desprezar os professores? Simplesmente ralhamos com esse Estado, ou também temos o direito de dar-lhe um ou dois tabefes?

  2. MAGRIÇO says:

    O José Luís Peixoto traçou o perfil do professor ideal. Infelizmente na prática esse tipo de professor está em minoria. Muitos enveredaram pelo ensino não porque tivessem vocação mas como única saída profissional, por uma questão legítima de sobrevivência. Não se critica essa opção – até porque não há capacidade dos gestores da coisa pública para prever as necessidades do mercado de trabalho para poder controlar excessos de licenciados em determinadas áreas – mas convenhamos que não é a melhor forma de selecção para quem tem a árdua e ingrata tarefa de formar as gerações futuras. Como resultado, assistimos por vezes a confrangedoras manifestações de falta de conhecimentos por parte de professores, até das matérias que lecionam. Para o confirmar, basta assistirmos aos concursos televisivos que requerem alguma cultura.

  3. Acho que opinar sobre o relativo conhecimento dos professores através de um argumento televisivo é muitoooooooooo redutor. Certamente que você também terá a sua cultura e conhecimento e por ventura nunca concorreu a um concurso desses, mas pelas suas palavras presumo que se você lá fosse ganharia o concurso em questão! Há bons e maus em tudo amigo..generalizar é perigoso. A grande fatia do corpo docente é realmente competente lhe garanto!

  4. MAGRIÇO says:

    Caro Ric:
    quem disse que a minha opinião se baseava simplesmente nos concursos televisivos? Essa é apenas uma forma quase quotidiana de se confirmar o que afirmo. E, garanto-lhe, estou perfeitamente habilitado a opinar sobre um assunto que conheço há muitos anos, tantos quanto dedico precisamente ao ensino da matemática. Se é um dos visados, não tinha a mínima intenção de melindrar quem quer que fosse: estava simplesmente a constatar um facto com que lido todos os dias. A propósito: a construção do seu último parágrafo está mais relacionada com o “brasileirês”! Cumprimentos.

  5. Sim, sim, sim, sem dúvida prof. Magriço! O professor ideal, o professor por vocação, o professor que transmite os seus conhecimentos bem mais com a alma do que com a voz, esse, infelizmente, é espécie em extinção! Há que ser-se altruista para ensinar, há que ser-se paciente, firme e carinhos ao mesmo tempo, há que saber-se viver o que se sabe ensinar, há que amar-se o que se ensina e quem se ensina! E quando assim é, aluno e professor aprendem um com o outro, ensinam-se um ao outro. Um professor assim, não só é um verdadeiro professor como é também um pilar de orientação para o aluno, o ser humano do futuro.

    Ser professor é como ser cozinheiro (é só uma comparação divertida e não tem qualquer sentido pejorativo da minha parte!): quem sabe fazer crepes, fá-los finos, requintados, macios e apaladados; quem não sabe, fá-los grossos, brutos, rugosos e insonsos!

  6. MAGRIÇO says:

    Cara Isabel, não sou professor de carreira, lecciono, por convite, numa instituição privada e não tenho pretensões de ser o professor ideal – já me dou por muito satisfeito se conseguir transmitir com algum sucesso o pouco que sei – mas diariamente sou confrontado com situações que não deveriam acontecer. Como digo no meu primeiro comentário, não critico quem se vê obrigado a enveredar por uma carreira para que não tem vocação, mas o sistema que os empurra para isso. E gostei da sua analogia com a culinária.
    Cumprimentos.

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