por Francisco Miguel Valada*
Texto escrito imediatamente após a entrevista do senhor ministro das Finanças à RTP.
Texto sem alusão a doutrinas, sem floreados, sem menção aos pareceres ignorados pelo poder político que os requereu, sem referência ao que neste momento se pode fazer para impedir a vigência do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 e sem recurso a referências científicas, para não assustar as pessoas.
O autor destas linhas não é adepto do texto panfletário, assume alguma inaptidão para este estilo, pede de antemão desculpa a quem se sentir incomodado e promete que evitará a todo o custo regressar a este formato, desaparecendo imediatamente no estudo e na reflexão, mal acabe de afixar este projecto de panfleto na sua página do feicebuque. Dito tudo isto, sem mais delongas, vamos ao que interessa.
Não farei qualquer juízo de valor relativamente ao Relatório do Orçamento do Estado para 2012 (OE2012), pois não sou nem político activo, nem comentador político. A propósito, o OE2012 poderá eventualmente ser lido aqui: http://bit.ly/qHuWuo. Muito menos aludirei publicamente a aspectos técnicos do OE2012, pois não sou sequer pretendente a perito em matéria económico-financeira.
Concentrar-me-ei no carácter de perenidade deste documento, obtido através da sua dimensão escrita. Ao contrário daquilo que sucede quando falamos, aquilo que escrevemos fica. Aquilo que se diz levará o vento, mas aquilo que se escreve permanece.
Ao realizarmos o acto de escrever, assumimos uma opção muito clara: ou adoptamos a ortografia determinada pelo Estado, ou escolhemos uma grafia pessoal (intransmissível ou nem por isso), ou elegemos uma grafia correspondente a um grupo etário, a um estrato social, et caetera e por aí fora.
Contudo, quando o Estado escreve, deve adoptar uma ortografia.
Em Portugal, quem manda na ortografia é o Estado.
A minha leitura do OE2012 leva-me a apelar ao seu definitivo e claro CHUMBO por parte dos deputados à Assembleia da República. A aprovação deste OE2012 será efectivamente um ponto de viragem: constituirá a descredibilização completa e categórica quer da Língua Portuguesa, quer, em última análise, da própria capacidade de expressão escrita do Estado português.
O OE2012, entregue em formato digital à senhora presidente da Assembleia da República, baseia-se numa GRAVE MENTIRA: nele se afirma logo no verso da folha de rosto que foi “escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico”.
Não me demorarei na inexacta denominação “novo acordo ortográfico”, plasmada num documento com o selo do Ministério das Finanças, que deveria respeitar as designações oficiais: “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990” é o nome da coisa.
Não entrarei em pormenores relativos:
1 – à simultaneidade de mão inábil no Ministério das Finanças e de promoção do produto usado («A adoção [sic] do Acordo Ortográfico, constituirá uma oportunidade para colocar a Língua Portuguesa no centro da agenda política, tanto interna como externamente», ver pp. 148-9);
2 – à incrível frase «igualmente importante é a reavaliação do Plano Nacional de Leitura, peça chave na articulação entre a linguagem falada e a linguagem escrita», que demonstra o completo desconhecimento quer do significado lato ou estrito de “literacia”, quer (mais grave) dos objectivos do PNL;
3 – à violação intencional do disposto na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, que “determina a aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (…), a partir de 1 de Janeiro de 2012, ao Governo” (recordo que o OE2012 é datado de Outubro de 2011)
4 – à completa descredibilização do conversor Lince, promovido pela Resolução supra.
Centrar-me-ei no essencial: na inconcebível redacção deste documento, que, tal como recente texto de um dos co-autores do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (parece incrível, mas é verdade e está aqui: http://bit.ly/qSgegO), não é nem carne, nem peixe, nem norma de 45, nem a coisa de 90: é uma espécie de amálgama de coisa nenhuma.
O Estado que pretende tornar obrigatória a adopção do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 dá magníficos exemplos de português “correcto” a todos os seus subordinados.
Para não maçar os leitores, vou dar apenas dez exemplos, aleatórios tal como o próprio Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990:
EXEMPLO 1
caráter acomodatício – Página 9
carácter universal e extraordinário – Página 30
EXEMPLO 2
setor bancário a nível europeu – Página 107
sector dos transportes ferroviários – Página 85
EXEMPLO 3
(excepto receita de privatizações) – Página 99
Títulos exceto ações – Página 96
Acções e outras participações – Página 157
EXEMPLO 4
Aquisição líquida de activos financeiros – Página 99
ativos e passivos financeiros – Página 157
EXEMPLO 5
pela interacção dos seguintes factores – Página 76
da interação dos seguintes fatores desfavoráveis – Página 70
EXEMPLO 6
DESPESA EFECTIVA – Página 69
despesa efetiva – Página 69
Permita-se-me um aparte: na mesma página… Curioso…
EXEMPLO 7
Habitação e serviços colectivos – Página 79
Habitação e serviços coletivos – Página 189
EXEMPLO 8
Protecção do meio ambiente e conservação da natureza – Página 189
proteção do meio ambiente e conservação da natureza – Página 189
Permita-se-me outro aparte: na mesma página… Curioso…
EXEMPLO 9
os contratos efetivamente celebrados – Página 134
começará a ser efectivamente paga nesse ano – Página 75
EXEMPLO 10
duas ópticas de contabilização – Página 53
numa ótica de contabilidade nacional – Página 53
Permita-se-me um terceiro aparte. Não, não vou repetir. Já escrevi o aparte duas vezes. Acho que já se percebeu…
Se fosse deputado à Assembleia da República, votaria contra este OE2012, considerando a sua medíocre redacção.
Se fosse funcionário público, recusar-me-ia a adoptar uma ortografia imposta por um Estado que não sabe escrever.
Um Estado que não sabe escrever não pode impor uma ortografia aos seus cidadãos.
Este OE2012 é a antecâmara do Desastre.
Um Estado que não sabe escrever não deve “colocar a Língua Portuguesa no centro da agenda política”. Deve, isso sim, aprendê-la.
Não cumprir o disposto na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 é a única resposta que se deve dar a um Estado que não sabe escrever.
Haja vergonha.
Não havendo vergonha, haja decência!
Bruxelas, Reino dos Belgas, 17.10.2011
Texto copiado daqui, com autorização do autor.
*Francisco Miguel Valada nasceu no Porto em 1972. É licenciado em Tradução pela ESTG do Instituto Politécnico de Leiria e pós-graduado em Interpretação de Conferência pela Universidade do Minho. Foi professor assistente na ESTG do Instituto Politécnico de Leiria. É Intérprete de Conferência de língua portuguesa, tendo exercido durante três anos como intérprete residente da cabina portuguesa do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no Luxemburgo. Exerce actualmente em regime de profissão liberal, domiciliado em Bruxelas. É autor do livro Demanda, Deriva, Desastre –os três dês do Acordo Ortográfico, publicado pela Textiverso.
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