O embuste miraculoso

Eram tempos em que andava ainda pela igreja, preocupado com a salvação da alma que era preciso manter mais pura que virgem adolescente e, por isso, me acagaçava todo perante um deus punitivo que castigava sem dó e sem piedade qualquer cedência pecaminosa aos inimigos da alma nomeadamente a carne, cujas tentações era preciso conter com ladainhas, jejuns e padre-nossos a toda a hora. Tinha então por companheiro de dúvidas cristãmente metafísicas, o Lenine, já um tanto espigadote, transformado no herói da miudagem menos dada a crendices que o padreco e a cambada de catequistas marianas mais ou menos fogosas, nos enfiavam com uma catrefada de pecados como merecedores de punição eterna nas labaredas infernais. O Lenine desempenhava de vez em quando as funções de sacristão acidental, ora abanando o turíbulo na sacristia, ora levantando os paramentos do abade nos rituais da missa ou do terço ao Santíssimo Sacramento. E quando o padre repenicava mais prolongadamente um sonoro e cantado Amen, o Lenine acrescentava de forma mais ou menos audível: doins. Amen…doins. Para desespero do abade e gáudio daquele bando de incréus precocemente acorrentados àqueles rituais absurdos. E um belo dia, passe o chavão costumeiro, no meio de uma avé-maria maquinalmente recitada, o Lenine lá ia balbuciando: “Avé Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres…” Parou bruscamente e como que em êxtase, verdadeiramente deliciado, repetia: “Entre as mulheres… entre as mulheres… entre as mulheres…”, perante o olhar furibundo do reverendo a exigir-lhe que continuasse . Então, o Lenine saiu-se com esta: “Ó sr. abade, deixe-me ficar só mais um bocadinho… entre as mulheres…” E só saiu “do meio delas” perante a desaustinada investida fradesca, já de careca mais roxa que fígado dado a excessos de vinho de missa. Saiu para não mais voltar. Em plena glória. Com o aplauso e a admiração generalizada de todos os outros cristãos púberes e até do pai, esse sim, o Lenine, alcunha que o rapaz revolucionariamente herdara do progenitor.

Anos passaram, muitos anos passaram. Do Lenine não tive mais notícias depois que o pai foi preso pela PIDE e o rapaz emigrou para fugir à tropa ou para escapar ao destino do pai. Ficaram-me o gesto e a ladainha repetitiva. E por falar em ladainha repetitiva, recuperei esta história pré-adolescente que aqui vos deixo, ao ouvir o PSD local a fazer de oposição. Como assim? Será que há oposição política em Barcelos?, perguntar-me-ão. Há. Aparece de quando em quando, sem se saber como nem porquê, mas aparece. Dizem-me que se trata de uma reincarnação política de Fernando Reis – embalsamado! O certo é que andam por aí. Numa missão salvadora. Do concelho, afirmam. Ora, uma missão salvadora exige conhecimentos, princípios, valores. Sobre política, vida social, trabalho, educação. E quando alguns jornalistas, porventura mais curiosos, interpelaram as eminências do Partido sobre estas questões genéricas, ouviram sonoramente e em uníssono: “– Embuste.” Foi o espanto geral. Ora, o carácter oracular da resposta espicaçou a curiosidade, agora num plano mais concreto, mais específico. “– E que ousais dizer, excelências, por exemplo, sobre as questões do Teatro Gil Vicente e da frente ribeirinha?”, questionaram. “– Embuste”, bradaram então. “– Safa! E o contrato da água?” “– Embuste”, rugiram. “– E o aterro sanitário, os centros escolares, as parcerias?”. “– Embuste”, grunhiram. Não era possível! Aquilo não dizia nada! Experimentaram então novas formas de abordagem. Perguntaram: “– Excelências, que horas são?” “– Embuste”, gritaram. Nova tentativa, agora de forma mais doce. “– Senhores doutores, de quem é que gostais mais? Do papá ou da mamã?” “– Embuste”, regougaram. “– Só mais uma questão, excelências: Quantos são dois mais dois?” “– Embuste”, uivaram. Com mágoa se reconheceu que, afinal, a oposição não tinha ideia nenhuma. Possuía apenas uma palavra, uma só, que repetia incessantemente sem a compreender.

E aconteceu então algo até hoje nunca visto por estas bandas e que ninguém consegue explicar racionalmente. Que entrou no domínio do miraculoso. O eng.º Marinho deu um passo no caminho da beatificação que precede a santidade. Deixou de ser considerado um santo homem e passou a ser visto como um homem santo. E o poder foi, reverente o contrito, a pé, numa peregrinação à Franqueira. Agradecer as graças concedidas. Ele há coisas!…

P.S.Acabo de ouvir Passos Coelho a assumir publicamente duas coisas: primeiro, a de que se trata de um refinado aldrabão. Depois, que se trata de um gatuno. Igualmente refinado. Acaba de fazer um roubo aos trabalhadores portugueses. Mais. Aos trabalhadores, aos reformados, aos pensionistas. E, como acontece em relação a qualquer assalto, é legítimo o direito de defesa. E aqui, todos os meios podem e devem ser utilizados. Vamos a isso.

Luís Manuel Cunha in Jornal de Barcelos de 19 de Outubro de 2011.

Comments

  1. Carlos Jorge Ivo da Silva says:

    Explendido BLOG. Obrigado pelo seu trabalho. Bem haja Cumprimentos Ivo da Silva

  2. Ana Ivo da Silva says:

    Simplesmente ADOREI!!!!!

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