Todos contra a Barragem 0,1% – Depoimentos sobre o Douro e o Tua. 1 – Francisco José Viegas


Publicarei a partir de hoje alguns textos sobre o Douro e o Tua. Os seus autores serão aqueles que eu escolher e todos aqueles que o quiserem ser. Basta enviarem-nos textos pessoais sobre o magnífico património cultural e paisagístico que em breve Portugal deixará de ter. Ilustres ou não, de Esquerda, de Direita ou sem ideologia, uma coisa unirá todos eles: a oposição à construção de uma Barragem que irá garantir apenas 0,1% da energia produzida em Portugal em troca de muitos milhões a pagar pelos mesmos de sempre. Estão todos convidados.
Para começar, o depoimento sentido de Francisco José Viegas, actual Secretário de Estado da Cultura e desde sempre um feroz opositor da construção da Barragem do Tua. Natural do Pocinho, no Douro, terra de comboios e de vistas magníficas, Viegas cresceu a ver o Douro tal como ele é. E quantas vezes não o terá descido de comboio ou de barco. Não admira, por isso, que o Douro e o Tua sejam dois dos seus lugares de eleição – e daí este depoimento tão sentido, tão humano, tão verdadeiro. Tão corajoso.
Viegas fala com o coração e sente-se que por ali as lágrimas espreitam, numa torrente que se prevê mais forte e arrebatadora do que o Douro antes da construção das Barragens. Neste texto, Viegas é uma espécie de Cachão da Valeira. É isso, um Cachão da Valeira cujas águas poderosas ultrapassam as margens e vão inundar a terra portuguesa. A nossa alma.
Sorridente, lá no céu, o Barão de Forrester, precocemente desaparecido no Cachão da Valeira, aplaude Viegas e proclama: «Este é o homem certo para defender o nosso Douro. Com ele, estamos seguros.» As pedras rumorejam, as árvores ciciam e aprendem a soletrar um nome. V-i-e-g-a-s!
A rubrica «Todos contra a Barragem 0,1%» não podia começar melhor. Eis o texto de Francisco José Viegas:
«Havia um tempo em que, por estas colinas (sobretudo acompanhando o derradeiro fio de água do Tua, a caminho do Douro), descia um comboio vagaroso e pobre, sujo, com as madeiras ressequidas a desfazerem-se, os varandis das carruagens enferrujados, os tectos corroídos pelo tempo. Chovia lá dentro. Os vidros, em muitas composições, tinham sido quebrados – ou, pura e simplesmente, quebraram-se com o tempo, o uso, a idade. Nos carris, o comboio chiava até encontrar as primeiras vinhas do Douro, relembrando ainda a última paisagem do planalto.

Quando o crepúsculo se despedia em Bragança, partia o derradeiro comboio que chegava ao Tua já noite alta, a tempo do transbordo para a linha do Douro, na direcção de Barca D’Alva. O percurso que desenhara no mapa, de Bragança a Macedo de Cavaleiros, Mirandela, Cachão e Tua, só era conhecido por esse traçado ronceiro, lento, demorado (…) entre uma paisagem de oliveiras, azinheiras e falésias caindo sobre o que restava do rio. (…) O caso da linha do Tua evoca tragédias recentes; mais do que «tragédias», no entanto, evoca o isolamento da região.

Nada disto interessa em Lisboa, tirando excepções muito localizadas. A indústria do asfalto que tomou conta do País, acompanhada pela indústria da camionagem, pela indústria das portagens e pela indústria do esquecimento, não tem a ver com as velhas linhas férreas que desenharam a geografaia de um país onde os carris acompanhavam rios, fronteiras de província, planaltos áridos e solitários – e uma enumeração caótica de designações fora de moda. Ao longo dos anos, destruindo metódica e paulatinamente os comboios, desprezando as populações que os utilizavam e beneficiando os intersses da camionagem e dos combustíveis, o Estado preparou este cenário contra o qual há, hoje, pouco a fazer.

Uns, mais conformados, recordam; outros, menos conformados, resistem e combatem o quase inevitável fim destas linhas perdidas. Um resto de dignidade e de memória devia fazer-nos correr até onde o último comboio regional ainda corre – para o defender. O País – o Estado, os empresários, a indústria – dá o assunto como encerrado e abre auto-estradas, suja a paisagem, promove o grande progresso (…).
Por isso, defender o último comboio regional, seja onde for, é combater este país abjecto que destruiu a nossa paisagem, a nossa memória e a geografia do tempo».

(Sobre o desprezo e o esquecimento que afasta tanto património, do coração dos que sabem ser aquele um Reino de cores e silêncio tranquilos.)

Francisco José Viegas, in Revista Ler Maio de 2010
Para ver a crónica no seu contexto, ler o post «A opinião de Francisco José Viegas» sobre a Barragem do Tua»
Texto transcrito a partir do blogue Palavras Tecidas (Blogue das Bibliotecas do Agrupamento de Escolas Dr. Ginestal Machado)

Comments

  1. Carlos II says:

    Todos menos o Faroleiro das Berlengas. Esse já disse que é a favor.

  2. Faroleiro da Berlenga says:

    E mantenho!!! Viva o Progresso em harmonia com a natureza e a energia limpa, Abaixo o nuclear.

  3. Orlando Sousa says:

    ‎Não sei se quer textos originais ou de outros autores. Tomo a liberdade de enviar este do Miguel Torga.

    “Os rios são nas paisagens como as imagens nos poemas: clarificam-lhes o sentido profundo. Espelham-nas e sintetizam-lhes o destino: permanecer em perpétuo movimento.”

    Miguel Torga, Diário VII, 1954

  4. O faroleiro e a “harmonia com a natureza” não conhece os 35 km de extensão de natureza que vão ficar em desarmonia. Sem utilidade outra que não entregar a ÁGUA da albufeira a privados.

    Se quer energia, pense em medidas eficientes para a sua poupança. Ou então terá uma explicação lógica para a Dinamarca gastar metade da energia por unidade de PIB produzida. Deve ser do clima.

  5. Sugiro todo o romance do autor Bragançano Manuel Cardoso, “Um tiro na Bruma”.
    http://www.fnac.pt/UM-TIRO-NA-BRUMA-CARDOSO-MANUEL/a173579
    A acção está centrada em Macedo de Cavaleiros nas primeiras décadas do século XX, o fio da história é um assassinato e a busca do culpado.
    É descrita de forma deliciosa a vida daquela pequena Vila transmontana (naquele tempo) e contém deliciosos relatos de viagens pela linha do Tua, que era então um expoente de modernidade e civilização. Um dos protagonistas torna-se maquinista.
    Após uma época de progresso, os personagens vivem atormentados pela instabilidade dos primeiros anos da República, as guerras e a epidemia de gripe espanhola. Os habitantes recorrem ao Dr Amadeu (personagem baseado num antepassado do autor), que é um dos protagonistas e pelos seus olhos temos contacto com toda a realidade social daquela vila. Num desabafo desse personagem a sociedade é apresentada como “um mundo onde tudo se desfazia e onde a autoridade parecia abandonar o terreiro a passos acelerados”; um país “a ir ao fundo! O povo quer nadar e não consegue! Quer comer e não tem o quê!”; um personagem, Amadeu, que se sentia ir abaixo pela “situação política, o caos do país, a voragem de uma guerra civil que não tardaria a abocanhar todos os esforços para fazer de Portugal um país com nível, de Trás-os-Montes um canto com progresso”.

    • Ricardo Santos Pinto says:

      Obrigado. Se conseguir um excerto do livro em que seja descrito o Douro e o Tua, agradeço muito.

  6. Ricardo Santos Pinto says:

    Obrigado pela sugestão, Orlando. Originais e de outros autores – quero os dois.

  7. Luís Teixeira Neves says:

    Aquele poema do Camilo Pessanha… o Violoncelo… não sei porquê, mas sempre imaginei que aquele rio, há um rio onde se despedaçam barcos, era o Tua… e a ponte, o arco por cima, a velha ponte, hoje arruinada, de Abreiro. Certo, Camilo Pessanha conheceu o rio e a linha e, nesta, muitas viagens começaram e terminaram no apeadeiro de Latadas.

    Em Um Tiro na Bruma o Manuel Cardoso dá bastante atenção à linha e a toda uma série de acontecimentos ocorridos na linha ou em torno dela. Li o romance já há algum tempo e não me recordo de ele prestar igual atenção ao rio embora ele se dedique a descrever um episódio da Monarquia do Norte ocorrido em Mirandela que não o ignora.

  8. Faroleiro da Berlenga says:

    Respondendo ao Dário dos comboios devo dizer que o ideal seria não consumir energia nenhuma pois assim não seriam necessárias barragens nem centrais térmicas ou nucleares nem geradores aeólicos nem paineis solares nem nada disso que é tudo tão inestético e antinatural. Mas a verdade é que “toda a gente” quer energia em maior quantidade e mais barata sem abdicar de nada, e isso é uma utopia. Mesmo na Dinamarca.

  9. João Vieira says:

    “toda a gente” quer tudo a troco de nada. o pior é que não há almoços grátis. ou também ainda não se deu conta?

  10. O sr. das Berlengas ’tá a ser irrealista. Quer levar a conversa para onde?

  11. Faroleiro da Berlenga says:

    Bom caro Dário a conversa é como as cerejas. Mas explicando melhor: Portugal tem um forte incremento da procura de energia elétrica dadas as circunstâncias que são do conhecimento geral relacionadas com o estilo de vida actual onde no mínimo por exemplo quase ninguém se preocupa em desligar um simples carregador da tomada quando não está ser utilizado ou desligar o sand by dos equipamentos. Por isso ou se exploram os recursos hidricos até ao limite máximo (uma vez que a eólica não é resposta adequada dado só produzir quando existe vento e a energia não ser acumulável) ou se constroem centrais térmicas ou pior ainda nucleares. Resumindo ninguém quer prescindir do seu conforto e como tal terá que se dar resposta às necessidades de alguma forma com custos inerentes. As barragens tem vantagens ecológicas significativas sobre as outras formas de produzir electricidade e como já existem poucos cursos de água com potencial hídrico chegou agora a vez do rio Tua. Como conheço relativamente bem o projeto não me choca nada que o mesmo seja concretizado pois para desperdício já bastou Foz Côa onde se deitarm ao lixo 25 milhões de euros por causa de uns rabiscos numas pedras que agora ninguém vai visitar e que ficariam muito melhor num museu. Aliás no próprio rio Douro existem 5 barragens e ninguém as contesta pois toda gente reconhece o seu valor para a nossa indepedência energética. E quando se diz que a barragem do Tua só contribuirá com 0.1 % da energia produzida é bom que saiba que essa energia irá iluminar uma qualquer vila ou subúrbio deste país onde existem para além da iluminação máquinas de lavar, microondas, televisões, leitores de blu-ray, robots de cozinha, aquecedores, computadores e periféricos, ventoinhas, telemóveis, frigorificos, placas vitrocerâmicas, secadores de cabelo etc etc. Concluindo: são necessárias mais barragens quer seja no Tua quer seja no Tâmega (se houvesse condições). Para terminar a Dinamarca dado geográficamente não ter condições para se construirem barragens tem um número significativo de centrais térmicas a carvão com toda a poluição que tal opção implica. Como bem diz acima o João Vieira não existem almoços grátis.

  12. O Faroleiro vive, certamente na Berlenga;
    no que concerne matérias energéticas… está deslocado. Ou saberia que a energia eólica é, como o é já, “acumulável”, dado que, na imensa maioria dos casos, os parques eólicos debitam corrente que alimentam directamente a bombagem de água para a cota alta das barragens.
    E as barragens que já existem… são já mais que suficientes para que essa bombagem seja feita.
    E vem falar de conforto ou a perda dele num país que consome o dobro da energia por unidade de PIB da Dinamarca. Quer isto dizer: é possível optimizar o uso da energia, produzindo mais com muito menos. Como a Dinamarca, nós também temos centrais a carvão e a gás. Mas o sr. prefere ver 35 km de rio Tua naufragado… para?

  13. Faroleiro da Berlenga says:

    Pois meu caro infelizmente essa é mesmo a única utilidade da eólica: fornecer energia para bombear água para as barragens na cota baixa e isso não tem quase nenhuma utilidade prática em termos de necessidades de consumo. E que preço que nós pagamos na factura da EDP por isso!!! Agora inverter as tendências de consumos cada vez mais elevados requereria uma alteração profunda nas mentalidades e nos comportamentos perdulários das populações que só talvez “a nossa senhora de fátima” seria capaz de realizar. Infelizmente não existem preocupações ecológicas quase nenhumas e gasta-se como se não existisse amanhã. E se não se produzir cá tem que se importar. Eu realmente não acredito que os portugueses se consciencializem da realidade energética do país e economizem energia como os dinamarqueses e como tal prefiro ver uma bela albufeira no Tua a ver mais uma central térmica a lançar toneladas de fumos poluidores na atmosfera (ou até mesmo uma central nuclear como em tempos se falou).
    Realmente tenho pena que a bela linha do Tua desapareça mas na verdade foi a falta de falta de procura por parte das populações e a falta de vontade de investir da CP (ou de capital ) que conduziram a esse triste fim. Para mim a barragem é neste caso um mal menor. E por aqui me fico pois penso que não era este o propósito deste tópico.

  14. João Vieira says:

    O não haver almoços grátis quer dizer exactamente isto: a energia não é infinita, para a produzir são necessários recursos. Quando já não houver mais rios onde fazer barragens (e está quase, pois se se constroem barragens que produzem 0,1% da nossa energia!), como é? Fazemos uma central eléctrica em casa de quem?
    E quem vai pagar essa electricidade? No limite, se tivermos alocados todos os recursos para produzir electricidade, que recursos sobram para produzir riqueza?
    Só há uma saída, que deveria ser tão mais óbvia quanto mais pobres somos: a escassez tem de ser (MUITO!) bem gerida. Se gastamos o dobro da energia por unidade de PIB em comparação com um país desenvolvido, devemos incentivar este desperdício vergonhoso (construindo mais barragens) ou penalizar fortemente este esbanjamento (aumentando o preço desde já para moderar o consumo)?
    Claro que toda a gente vai escolher a primeira opção. Assim tem sido o nosso país nas últimas décadas (ou séculos, quem sabe…). Por isso é que caminhamos alegremente para o buraco e ainda poucos acordaram para a realidade: um dia está a bater-nos à porta e vai doer ainda mais.
    Mas só vamos perceber que todas as barragens, auto-estradas, o crédito fácil e subsídios para tudo e todos vão ter de ser pagos por alguém. Tal como o desperdício estúpido de energia que obriga a que se contruam barragens caríssimas, que alguém pagará na conta da luz, que se destruam rios e terras de cultivo, que alguém pagará de outra forma. Mas desde que haja dinheiro para queimar e energia para despediçar está tudo bem, não está?

  15. Quantas barragens vão ser necessárias para saciar o apetite dos investidores em alojamentos turísticos a construir nas margens das albufeiras?

    Antero Leite

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