À memória de Manuel Buíça e Alfredo Costa

Lisboa, lambida na suavidade do seu sol de Inverno, só tinha olhos para as vitrinas, onde se mostravam os bustos dos assassinos reais craionados ou em fotografia.

Uns comerciantes arvoravam-nos por simpatia, outros pelo reclame que constituíam esses quadro, pois centenas de pessoas paravam a contemplá-los. Havia quem os afixasse por imitação. Não apareciam as manifestações de saudade para com o Rei nessas exibições: o seu rosto e o do seu filho apenas se podiam ver através dos vidros das urnas fúnebres. (…)

Por fim deixara-se livre a entrada no necrotério e a multidão era tanta que se tornara necessário, a fim de evitar as brutalidades dos empurrões, encharcá-la com agulhetas do serviço. Era assim às primeiras horas e as autoridades estavam tranquilas, diante das manifestações, não vendo o advento da República em cada uma dessas curiosidades de convictos ou de aderentes. A exaltação pela memória dos matadores tinha um ar de alucinação colectiva em certas camadas; as mulheres repeliam esse culto e choravam pelos assassinados; rezavam. (…)

Buíça estava de olhos abertos, a pupila numa expressão irritada; as barbas empastadas e das duas feridas, esgarçadas na cabeça e na face direita, ressumava um sangue anegrado. Parecia mais crescido, e daquele desalinho de sua roupa, da camisa suja, ressaída dos cós, do casaco aberto, a deixar ver o peito alvíssimo, sob a alastrada pelagem loura, quase ruiva, vinha a evocação da sua revolta de humilde. como dos seus olhos vítreos toda a expressão da sua cólera. Era, mais do que um republicano, um rebelde contrário às fórmulas e às grandezas, roçando as teorias abstractas, mas açalacado por inveterados ódios impulsionantes de raiva fremente. (…)

Alfredo da Costa cerrava fortemente os olhos, as pestanas estavam coladas com sangue. A espadeirada que lhe gilvazara a cabeça, desde a fronte até ao nariz, pregara-lhe aquela imobilidade, selara-lhe a morte e, na sua violência, gravara-lhe a expressão horrível. (…)

Em volta, o povo, após os tumultos da entrada, fazia os seus comentários, baixinho, como se estivesse numa igreja. Moscas verde-negras voejavam e iam passear-se sobre os rostos dos regicidas, num lento deslizar, alçando as patitas em carícias interesseiras às feridas apodrecidas. Depois voavam, para de novo procurarem os cadáveres, continuarem as sua tarefa, sob aquela luz tristonha, desde a aurora ao decair da tarde de Fevereiro.

Desabelhava-se gente de todos os bairros; as mulheres quase não apareciam. O bando era composto por homens e rapazes que faltava ao trabalho, para irem ver, para satisfazerem curiosidades inquietas, diante dos olhos vítreos e fulminadores do Buíça e da prega funda, junto da ferida aberta da testa do Costa, contemplados durante horas, na atmosfera do necrotério, onde errava o cheiro da gangrena e do fénico.

Rocha Martins, O Regicídio

fotografia Paulo Abrantes

Comments

  1. A História pode encerrar muitos ensinamentos, para quem a tentar compreender.
    Talvez hoje mesmo, no rescaldo de décadas de avanço e aparente prosperidade, pode-se estar a fermentar crispação social do tipo que dá origem à violência e instabilidade que caracterizou a primeira república.

  2. Menshevik says:

    Post repugnante.
    (e ainda vêm falar em…… “valores”!!!)

  3. O Costa e o Buiça .. aparecem de vez em quando.. infelizmente — não passam dos paus mandados.. aqueles que os mandaram.. assobiaram para o ar e lá continuaram a usufruir de todas as regalias e mais algumas… enfim .. de revolução em revolução até ao desastre final..

    QUEM BENEFICIA COM ISSO ,, pensem bem…

    são sempre os mesmos

  4. Um menchevique repugnado está mesmo a precisar de aprender um bocadinho de História da Rússia…

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  2. […] está mal contada, o João José Cardoso pensa o contrário, O José Magalhães pede um rei, o João José Cardoso recorda os regicidas, O Ricardo Santos Pinto atira-se à política de betão do plano nacional de […]

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