Contra o Acordo Ortográfico: um texto inconsistente

O AO90 terá sido elaborado por especialistas reputados. O facto de se ser um especialista numa matéria aumenta as responsabilidades e é legítimo exigir que um enunciado produzido por um especialista seja consistente e coerente.

O AO90 é, no entanto, ao contrário do que seria de esperar, uma acumulação incoerente de enunciados, o que é, portanto, inadmissível. Limitar-me-ei a dar alguns exemplos.

Na Base II, defende-se que o ‘h’ inicial se mantém por “força da etimologia”. O mesmo argumento é utilizado, na Base V, para manter o emprego de e, i, o e u em sílaba átona, ou seja, e exemplificando: apesar de corresponder ao som “i”, continuaremos a escrever “ameaça” com ‘e’.

É certo que a manutenção destas regras não afecta a desejada uniformização ortográfica, mas quando se trata de eliminar as chamadas consoantes mudas, na Base IV, o critério passa a ser o da pronúncia. Que aconteceu ao critério etimológico que serviu para que o “h” inicial não desaparecesse?

Ainda no que se refere à Base IV, é possível descobrir uma outra inconsistência já apontada por diversos críticos do AO90: o facto de se basear a grafia das palavras na pronúncia. Se é certo que isso, em muitos casos, tem como consequência uma aproximação entre Portugal e o Brasil (é o caso de “ação”, por exemplo), dá origem, por outro lado, a diferenças que não existiam (“receção”, em Portugal, e “recepção”, no Brasil).

Há, ainda, que ter em conta que estas consoantes foram mantidas no Acordo Ortográfico de 1945, uma vez que se considerou que, mesmo não sendo pronunciadas, tinham valor diacrítico, ou seja, serviam para “abrir” o timbre da vogal anterior. Um texto científico consistente que faz um corte com o passado estaria obrigado a explicar o que mudou para que essas consoantes devessem, afinal, ser suprimidas. Nada disso acontece.

Vejamos, agora, as razões apontadas para manter, eliminar ou deixar ao critério de cada um a utilização de alguns acentos gráficos.

Na Base VIII, 3º, defende-se a manutenção do acento gráfico em “pôr”, “para a distinguir da preposição por.”, evitando a homografia.

Na Base IX, 6º, a), mantém-se o acento em “pôde”, para que não haja confusão com “pode”. Na alínea seguinte, deixa-se ao critério de cada um acentuar “dêmos” (primeira pessoa do plural do presente do conjuntivo), para que se distinga de “demos” (primeira pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo).

Mais abaixo (Base IX, 9º), declara-se a extinção do acento gráfico em “pára”, sem que se aponte uma razão para isso, embora seja óbvio que daí nasce um par de palavras homógrafas.

Na Nota explicativa, 5.3., defende-se a necessidade de manter os acentos gráficos em palavras como “fábrica” ou “análise”, para evitar a multiplicação de casos de homografia, mesmo reconhecendo que seria fácil distinguir as palavras no contexto sintáctico. Mais abaixo, em 5.4.1., b), argumenta-se que não há problema em retirar o acento gráfico de “pára”, “porque, tratando-se de pares cujos elementos pertencem a classes gramaticais diferentes, o contexto sintáctico permite distinguir claramente tais homografias.”

Um texto sobre um tema destes só pode ser maçador, mas a verdade é que os casos apresentados não são filhos únicos de uma incoerência frequente num texto que, devido ao currículo dos seus autores, não pode ser incoerente. Um mergulho nas Bases XV e XVI (relativas ao uso do hífen) far-nos-ia correr perigo de afogamento na acumulação de incoerências.

Em conclusão, de um texto escrito e defendido por alguns especialistas esperar-se-ia consistência, argumentação clara e coerência. Nada disso acontece e nada disso vai sem consequências perniciosas.

Texto 2 de 8. Contra o Acordo Ortográfico

Comments

  1. Parabéns pelo contributo rigoroso (mas não austero) para a discussão sobre os erros grosseiros e as muitas inconsistências deste AO que nos querem impingir à força, e sob falsos pretextos.

  2. Meu caro, quando os especialistas deixaram o pobre robalo fora do dicionário da Língua Portuguesa da Academia de Ciências já nada me admira, mas tento adaptar-me ao acordo quanto mais não seja para não perder o comboio (que lá para os lados de Vila Real se deveria acentuar como combôio)

  3. António Fernando Nabais says:

    #2
    Caro Teófilo, curiosamente, os especialistas que fizeram o dito dicionário são os mesmos que fizeram o AO. Com a nula autoridade que tenho para dar conselhos, sempre lhe digo que não deve apanhar comboios que vão para sítios onde não queira estar.

  4. Carlos says:

    Cu-de-judas, com o AO passa a “cu de judas” ou a “cu do judas”?

  5. Caro Fernando Nabais,
    mesmo não gostando do AO, vou tentando adaptar-me não vá o diabo tecê-las e ele tornar-se na nova língua palopiana (passe o neologismo), só é pena que se gaste tanto dinheiro que tanta falta faz para outras coisas bem mais úteis em coisas destas que em vez de harmonizar confundem e escavacam uma língua que já tem variedade que chega e sobra para confundir o mais prendado.

  6. Lina L says:

    Um pedido de esclarecimento: a petição a exigir a revogação do AO (http://www.peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=P2011N18406) pode vir a ser mais bem-sucedida no seu propósito do que o ILC? Pelo que entendi (depois de uma rápida sondagem pelos meus contactos) muitos contestários do AO optam por subscrever a petição online, e não pelo ILC, o qual exige o fornecimentos de dados que alguns disseram não estar dispostos a fornecer (ou a obter…). Obrigada.

  7. António Fernando Nabais says:

    #6
    Lina, tomei a liberdade de deixar a sua dúvida no facebook da ILCAO: http://www.facebook.com/ILCAO90

  8. Lina says:

    Obrigada pela atenção. Não deveria é ter seguido o link e lido aqueles “esclarecimentos”, que em nada ajudam ao movimento (e mais não digo porque a causa que representa me é demasiado cara). Não fosse o meu empenho na luta contra este AO, não perderia mais um segundo sequer a tentar convencer os que já assinaram outras coisas a juntarem-se para assim reunir o máximo de impressos para enviar à organização.

  9. António Fernando Nabais says:

    #8
    Se leu os meus comentários, terá percebido que também não gostei do tom utilizado. De qualquer modo, descontando isso, os argumentos apresentados fazem sentido: não há que ter medo de divulgar dados, porque todos os dias os cedemos, e não há que hesitar diante de qualquer incómodo, face ao disparate que é o AO90.

  10. Lina says:

    Sim, entendido. E deixei também claro na minha resposta que não ia deixar de fazer o que estou a fazer só porque li coisas de que não gostei. De qualquer modo, continuarei a seguir, e a divulgar, os seus textos, onde esmiuça, de modo claro (e não acintoso), as várias inconsistências e erros grosseiros deste AO.

  11. Eduardo Caldeira says:

    Caro Fernando Nabais,
    A aproximação entre Brasil e Portugal pode dar-se de várias formas:
    1. O Brasil aproxima-se de Portugal;
    2. Portugal aproxima-se do Brasil;
    3. Ambos os países se aproximam mútuamente (está bem, mutuamente, peço desculpa) ou;
    4. Qualquer outra forma de aproximação que vise um interesse em concreto.

    Entre outras, sou completamente leigo em questões linguísticas mas a incoerência que refere, de facto (não sei se o referiu de fato), deixa-me atónito. Por muito eruditos que sejam os autores, não são donos de uma língua, nem mesmo por despacho. Se o Brasil quiser optar pela língua brasileira, óptimo, e não ótimo. Continuaremos a conseguir comunicar, em directo ou diferido, como o fazemos com os chineses ou os russos e não em direto como agora se pretende.
    No Alentejo, onde nasci, direto (lê-se dirêto) quer dizer uma coisa direita, recta.
    Existe, por acaso, um acordo ortográfico entre Inglaterra e os Estados Unidos, ou a Nova Zelândia?
    Não percebo a necessidade de fazer acordos ortográficos com o Brasil, quando não os fazemos com a Espanha, com Inglaterra ou mesmo com a República Checa. Porque não fazemos antes um Acordo Ortográfico com Portugal?
    Se a bitola para a nossa língua vai ser o infortunado brasileiro que não teve oportunidade de se cultivar, porque não o infortunado timorense ou o alentejano?
    Não sei quem são os autores do AO mas a erudição linguística não é condição suficiente. Falta-lhes respeito, que é outro tipo de erudição. Uma nação é também a sua língua.
    Cumprimentos.

Trackbacks

  1. […] Já se sabe que haverá algumas almas que se lembrarão de que já existiam palavras homógrafas antes do AO90, como se a existência prévia de obstáculos fosse razão suficiente para se criem mais obstáculos. Entretanto, e não por razões sentimentais, os autores do AO90 obrigam a manter o acento em ‘pôr’ ou em ‘pôde’. […]

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