Contra o Acordo Ortográfico: as chamadas consoantes mudas

Uma das questões mais polémicas do AO90 está relacionada com a Base IV, em que se propõe a eliminação das chamadas consoantes mudas c e p nas sequências interiores cç, ct, pc, pç e pt, o que deverá acontecer sempre que, segundo o Acordo, essas consoantes não sejam proferidas “nas pronúncias cultas da língua” ou “numa pronúncia culta da língua”, para citar o texto.

Mesmo fazendo de conta que é possível identificar as várias pronúncias cultas da língua, a verdade é que mais do que um especialista tem defendido que as chamadas consoantes mudas têm, em contextos bem definidos, uma função diacrítica, isto é, desempenham relativamente à vogal que as antecede uma função semelhante à de um acento gráfico, para além de a sua existência derivar da etimologia.

No Acordo de 1945, de que foi relator o professor Rebelo Gonçalves, optou-se por manter estas mesmas consoantes “após as vogais a, e e o, nos casos em que não é invariável o seu valor fonético e ocorrem em seu favor outras razões, como a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas e a possibilidade de, num dos dois países, exercerem influência no timbre das referidas vogais.” (sublinhados meus) Para se propor a alteração desta regra, era importante explicar o que mudou desde 1945, para que fizesse sentido suprimir as mesmas consoantes. A tradição ortográfica que, por exemplo, serviu para manter o ‘h’ inicial não faz sentido aqui? As ligações à lusofonia são suficientes para apagar a relação do Português com as línguas românicas? Será que as chamadas consoantes mudas já não exercem influência no timbre das vogais que as antecedem?

Num estudo publicado na revista Diacrítica, Francisco Miguel Valada analisou os efeitos que o AO90 tem sobre as palavras terminadas em ‘–acção’, nos casos em que perdem o c que não é pronunciado. Tentarei, aqui, resumir o artigo, tentando não desvirtuar o seu conteúdo.

Assim, antes do AO90, existiam 3052 palavras terminadas em ‘-ação’. Nestes casos, o ‘a’ que antecede o ‘ç’ lê-se fechado, à excepção de 9 palavras, como, por exemplo, inflação, que se lê com o ‘a’ aberto. Por outro lado, são 45 as palavras terminadas em ‘-acção’ em que o ‘c’ não se pronuncia. Neste grupo, o ‘a’ pronuncia-se sempre aberto, sem uma única excepção, como é o caso de “acção”.

Por imposição do AO90, o segundo grupo de 45 palavras passa a integrar o primeiro e o Português passará a ter 3097 palavras terminadas em ‘-ação’, sendo que o novo grupo continuará a manter, em princípio, o ‘a’ aberto. Deste modo, passamos de nove excepções em 3052 palavras para 54 em 3097, o que constitui um aumento exponencial, com tudo o que isso significa de aumento de dificuldades para a aprendizagem da língua, mesmo sem realizar um outro estudo que deverá analisar se estamos a lidar com palavras muito ou pouco utilizadas. Fica evidente, no caso em apreço, a influência da consoante na “abertura” da pronúncia da vogal que a antecede. A crítica feita por Francisco Miguel Valada a este problema é lapidar: “Considerando que um instrumento ortográfico tem a função de criar regras e não de aumentar nem criar excepções a regras, sublinhamos que a supressão diacrítica nos exemplos por nós apreciados leva ao aumento das excepções a uma regra (Regra 2) e à eliminação de uma regra sem excepções (Regra 1).”

Note-se que se torna necessário, ainda, estudar os efeitos do AO90 nas palavras em que os grupos intermédios ct, pc, pç e pt ficam reduzidos à segunda consoante. Francisco Miguel Valada está a debruçar-se sobre o assunto, mas parece-me provável que se chegue à conclusão de que o valor diacrítico se mantém. Seja como for, o estudo aqui referido e outros similares deveriam ter feito parte do processo de discussão do AO90.

Alguns defensores do AO90 negam a hipótese de que a ortografia possa contribuir para o fechamento de muitas vogais, problema que afecta o Português Europeu há vários anos. A verdade é que esse risco é real, graças, entre outras razões, à analogia. Imagine o leitor como será difícil a um aprendiz da língua portuguesa perceber que, sendo “criação” uma das 3043 palavras que se pronunciam com o ‘a’ fechado, há 54 palavras como “reação” que terão de ser pronunciadas com o ‘a’ aberto. Para além disso, na Nota Explicativa reconhece-se, afinal, que a escrita pode influenciar a oralidade, como se pode confirmar em 5.3., b), em que se defende a manutenção de determinados acentos:

 “Em favor da manutenção dos acentos gráficos nestes casos, ponderaram-se, pois, essencialmente as seguintes razões:

 (…)

 b) Eventual influência da língua escrita sobre a língua oral [sublinhado meu], com a possibilidade de, sem acentos gráficos, se intensificar a tendência para a paroxitonia, ou seja, deslocação do acento tónico da antepenúltima para a penúltima sílaba, lugar mais frequente de colocação do acento tónico em português;”

Embora os outros grupos não estejam, ainda, estudados, como é possível afirmar que a supressão do ‘c’ em “corrector” não dará origem a uma mais que provável alteração timbre da vogal, mesmo aceitando que o contexto possa resolver o problema do significado?

Mesmo não tendo valor científico, fui testemunha recente de uma hesitação de leitura no caso do timbre do ‘a’ inicial da palavra “atores”. Uma análise cuidada da aplicação de um acordo deveria, aliás, ter incluído estudos com o apoio de um laboratório fonético.

No livro de Francisco Miguel Valada já várias vezes citado, é dado o exemplo da supressão do acento circunflexo no topónimo “Castêlo da Maia”. Alguém duvida de que o desaparecimento daquele acento está a provocar a progressiva homonímia com “castelo”?

Ainda a propósito desta cruzada acordista que tenta impor a ideia de que a escrita deve corresponder a uma espécie de transcrição fonética, leia-se este magnífico exercício humorístico.

Em conclusão, as chamadas consoantes mudas, para além de constituírem uma referência etimológica, são, de uma maneira geral, fundamentais para indicar o timbre das vogais que as precedem. A sua eliminação é um dos maiores erros do AO90.

Texto 5 de 8. Contra o Acordo Ortográfico

Comments

  1. marai celeste ramos says:

    acordar o acordo é mais uma anormalidade e aberração nacional e fatal – e há muitos países envolvidos nesta aventura de que só o brasil quer quer quer beneficiar pois que nem PORTUGUÊS percebe – o brasil que fique lá quietinho e não xateie mais – governem-se ou querem mais “emigrantes” para fazer e ensinar a fazer ? E se aqui sempre foi a “rampa de lançamento” dos alguns valores que t~em sobretude literatura e música que mais querem ?’
    São tantos e tão bns e não se governam sozinhos ?? Juntem-se aos XINESES – convidem-nos

  2. Zuruspa says:

    Ó “marai”, esse comentário (tal como o do outro artigo) foi escrito com que Acordo Ortográfico?
    Para criticar é preciso, antes de tudo, NÃO DAR ERROS!

    Mesmo aceitando que o contexto possa resolver o problema do significado, como ler “Eis o corretor corretor”?

  3. Bone says:

    Ontem, o meu filho de 12 anos perguntou-me “o que é o têto?” Estava a ler legendas num programa de televisão e aparecia a palavra “tecto” escrita de acordo com a nova grafia, teto. Até a mim me apetece perguntar, o que é o têto?

  4. Bando de portuga etnocêntrico. Basta ler os comentários para ver como cuida-se bem da língua É de se supor que seja assim em um país onde não existe movimento estudantil, social ou qualquer efervescência democrática. Onde o catolicismo moralista convive com a hipocrisia dos plutocratas. Provavelmente nessas universidades europeus de 3 anos e produção acadêmica burocratizada, estéril e adversa a crítica não se discute a história do seu país para além do conceitos nacionalistas medievais e ignorantes.. Vocês saberiam quantos portugueses vieram aqui trabalhar em nossas padarias e foram bem aceitos pois o país recebe bem os imigrantes.
    E mais…aqui no Brasil estão todos se lixando para o acordo ortográfico pois leis não tem força sobre a língua.
    Não teve quando fomos colônia Não teve quando fomos reino unido. não teve quando fomos capital do império. Não teve quando fomos o Império do sul. Não terá agora que somos a maior democracia direta do mundo.

  5. E mais….creio que vocês que fazem o aventar deveriam estar mais preocupados com esse etnocentrismo fascista de seus comentadores e produtores ou mudar o título do blog. Isso aqui esta cada dia tão fascista, racista e etnocêntrico quanto os universitários de Lisboa.

  6. Pedro says:

    Caro Thiago, discordo do Acordo, mas concordo consigo. A oposição ao acordo não tem de envolver a oposição ao Brasil, que apenas revela um misto de complexos de superioridade e inferioridade. E a língua é algo vivo que não deve evoluir de uma maneira ou de outra por causa de um lei.

  7. Tito Lívio Santos Mota says:

    acusar o Brasil da responsabilidade do AO90 é chauvinismo de meia tigela.
    Continuamos a ignorar o Brasil em questões de língua como o fizemos em 1911 quando lhe quisemos impor uma reforma sem que fossem tidos ou achados.
    Recusaram, claro e acabaram por fazer a própria reforma 30 anos mais tarde.
    O que deveríamos é agradecer ao Brasil o ter consentido sentar à mesa das negociações para resolvermos este problema que dura há um século.
    O AO90 é uma imundice?
    É !!!!
    Mas nem os brasileiros nem os portugueses têm culpa disso.
    Voltou-se a cometer o erro de 1911, o duma reforma a martelo.
    Mas em 1911, ao menos esta foi feita por especialistas da língua que incluía poetas, escritores, linguistas, jornalistas, oradores, etc. Mas nenhum académico.
    Ora o AO90 é uma imundice porque nenhum destes corpos foi chamado para debater ou opinar, mas apenas os académicos (das Academias e não das universidades, entenda-se).

    Ficou um acordo “académico” para uso “académico” mas que não tem nada a ver com a língua portuguesa.
    Os brasileiros acham que é burrice e os portugueses que é “abrasileirado”.
    O que ele é, é “academizado” (perdoem o neologismo).

    E se a SPA e a sua homóloga brasileira se reunissem para fazer uma contra-proposta, com a participação de quem lida e percebe da língua, em todos os ramos e nos 8 países?

    Seria talvez a melhor maneira de acabar com polémicas.

    Tito Lívio Santos Mota
    PS: totalmente justificada a crítica às vogais que se tornam surdas por ausência das consoantes ditas “mudas”.

  8. Agradeço penhorado e de chapéu amarfanhado na mão o Brasil ter-se dignado a discutir em 1943-45 a grafia do idioma de Portugal depois da desfaçatez de 1911 [vénia]. Portugal mudou-a (à grafia do seu idioma) em 1945 em voluntário acordo com o Brasil. Redimiu-se [outra vénia; curvada]. O que Portugal nunca ditou foi a grafia de 45 ao Brasil. O Brasil fez como quis.
    Ponho-me de joelhos?

  9. Fiquei maravilhado ao ler os comentários de um tal Thiago. São absolutamente esclarecedores relativamente aos seus conhecimentos linguísticos:

    “Bando de portuga etnocêntrico”
    “para ver como cuida-se bem da língua”
    “nessas universidades europeus”
    “foram bem aceitos”
    “pois leis não tem força sobre a língua”

    Quem opina sobre a Língua (com maiúscula, Thiago) não pode dar-se ao luxo de cometer estes erros vulgares.

  10. Aqui no Brasil, o Movimento Acordar Melhor, liderado pelo Prof. Ernani Pimentel, propõe que o texto oficial do Acordo Ortográfico seja revisto, e, junto com ele, o Vocabulário Ortográfico publicado pela ABL.

    Creio que especialistas dos países envolvidos deveriam trabalhar juntos. Entretanto, a ABL não contou nem mesmo com a Academia Brasileira de Filologia e da Associação Brasileira de Linguística, do mesmo modo que não teve a participação da Academia das Ciências de Lisboa e da Associação Portuguesa de Linguística.

  11. Estou iniciando uma pesquisa para TCC – Trabalho de Conclusão de Curso, sobre as desvantagens do acordo e tive a felicidade, graças ao “guru” google, de descobrir esta excelente página. Gostaria apenas de acrescentar que mesmo entre os brasileiros refratários ao tal acordo (como eu), não há a impressão de que se está desejando “abrasileirar” a língua ou impor espécie de “colonialismo ao contrário”. Deste lado do mundo ninguém tem a impressão de que está impondo nada a ninguém. Ao contrário… a impressão é de que alguém do além (políticos, acadêmicos, intelectuais ou sei lá quem) resolveu impor essa esquisitice a todos nós, de ambos os lados do oceano. Por favor, amigos de Portugal, não pensem que estamos nos jactando por impor algo a vocês. Ninguém tem esta impressão por aqui. Acreditem…. somos vítimas dos mesmos algozes.

    • António Fernando Nabais says:

      Caro Omar, é evidente que o acordo foi imposto por um conjunto de gente desonesta, portuguesa e brasileira. Esse é o grande problema. Pelo meio, é claro que há afirmações infelizes, filhas de preconceitos. Essas afirmações são produzidas por brasileiros e por portugueses. De resto, tem toda a razão: somos vítimas dos mesmos algozes. Terei todo o gosto em fornecer-lhe “links” e outras referências acerca do debate sobre este tema, em Portugal.

  12. Fernando, que bom que você concorda. Para os brasileiros refratários ao “aborto” ortográfico é uma tristeza dupla ver essa esquisitice aprovada e passar a impressão (equivocada, repito), de que nos jactamos com algum tipo de “imposição”. Nunca imaginaria ler português europeu sem a beleza erudita das consoantes mudas, da mesma forma que nunca conseguiria escrever “cinqüenta” sem o nosso brasileiríssimo trema. Vamos manter as diferenças! E vencer as divergências! Grande abraço!

  13. Pequeno adendo, relendo o que escrevi na primeira mensagem: aqui não se tem a impressão de “imposição” ou de “abrasileiramento” SEQUER entre os que são a favor ! Fico duplamente triste por ter percebido que os amigos portugueses passaram a ter essa visão! Mesmo entre os mais apaixonados defensores, acreditem, nunca o Brasil quis mostrar para o seu pai que já é um “homenzinho” e que agora manda na casa. O respeito e o amor ao pai são eternos, mesmo quando se fica adulto!

  14. Queira ter a bonade de ler:
    http://www.veraveritas.eu/2012/04/porque-sou-favoravel-ao-acordo.html?m=1
    Essas questões são lá respondidas

  15. um mito urbano é dizer que o ‘c’ e o ‘p’ antes da consoante abria as vogais como em “acto”; contraexemplos: vogal aberta: corar, padeiro, oblação, pregar; abrimos a vogal e não existe nenhum ‘c’ nem nenhum ‘p’ | actual, actualidade, exactidão, tactear; antes do AO, colocávamos o ‘c’ e nunca abríamos a vogal.

    Há exemplos para todos os gostos!

  16. João Pedro says:

    Sou brasileiro! Não concordo com tal Acordo! É mais uma imposição do que uma uniformidade. Somos (lusófonos) culturalmente distintos, temos maneiras de expressar variadas, regionalismos, etc. Quanto à supressão das consoantes mudas, acho burrice mudar a forma do falar, legitimamente construído e mantido pelas diferentes regiões do mundo, até porque a maioria delas são articuladas. Amo as variação que existe entre as consoantes vibráveis brasileiras e as surdas portuguesas. Acho que, em vez de suprimir, deveria-se aumentar a facultatividade. Assim, poderíamos experimentar de um encontro mais forte do léxico. A exemplo, ‘teto’ e ‘tecto’, lato sensu, poderíamos desfrutar de um português mais completo e dinamicamente vasto, eliminando dúvidas na ortografia. Pois bem, sou a favor da língua ser facultativa para alcançar a uniformidade.

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  2. […] De facção! Exactamente: [faˈsɐ̃ũ̯] e não [fɐˈsɐ̃ũ̯]. A diferença é gritante, como bem sabemos. Felizmente, a imprensa de referência em ortografia portuguesa europeia não engana. […]

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