Acordo Ortográfico: a gaguez de Francisco José Viegas

Esta entrevista a Francisco José Viegas (FJV) sobre o Acordo Ortográfico (AO) é um amontoado de gaguez, de indefinições e de disparates. Depois de ter ouvido atentamente, limito-me a aglomerar, também eu, alguns comentários, tentando gaguejar menos, definir melhor e evitar o disparate.

Francisco José Viegas começa por confessar que há coisas no AO de que gosta e outras de que não gosta, o que é irrelevante, porque a discussão sobre este assunto só faz sentido a partir do momento em que não se fale de gosto.

Depois, e após relembrar que o AO está a ser discutido há vinte anos, afirma que foi discutido à última da hora, o que é muito semelhante a um paradoxo. Sobre este arremesso alegadamente tardio, aproveita para ironizar acerca de uma tendência lusa para esperar até ao último momento e contestar uma medida há muito anunciada. FJV revela, assim, um profundo esquecimento acerca dos vários pareceres dados por especialistas.

Aproveitando a deixa de FJV, e analisando um outro tique português, a verdade é que, nas questões ligadas às Ciências Humanas e Sociais, há uma tendência do poder e da opinião pública para desprezar repetidamente os contributos dos especialistas nas matérias. Assim tem sido com a Educação, com o desprezo a que são votados avisos e contributos dos professores, e assim tem sido com a questão do Acordo Ortográfico, em que os muitos pareceres emitidos por linguistas foram ignorados e  considerados manifestações de mera caturrice.

Ainda a propósito desses mesmos pareceres, como é possível afirmar que não houve iniciativas com peso suficiente? Talvez FJV queira, antes, referir-se à falta de visibilidade desses mesmos contributos, sempre desprezados, quando não silenciados. Para os mais esquecidos, volto a lembrar que todos os pareceres sobre o AO estão nesta página do professor António Emiliano.

Mais à frente, afirma que a ortografia “é uma coisa artificial, provavelmente” e que, por isso, podemos mudá-la. Em primeiro lugar, o advérbio de modo indica uma estranha dúvida. Depois, cai numa argumentação tão vaga que torna aceitável qualquer alteração ortográfica. O que merece aqui destaque, no entanto, é o facto de considerar a grafia como sendo uma coisa “artificial”, o que nos levaria a uma discussão filosófica sobre o natural e o artificial na actividade humana. Se é certo que a língua (falada e/ou escrita) é uma convenção, não passa a convenção a integrar o modo como percepcionamos o mundo, o que inclui, entre muitas coisas, a aprendizagem da língua ou a decifração de enunciados? Sem querer aprofundar a questão, as regras ortográficas transformam-se numa segunda natureza que por ser segunda não deixa de ser natureza. Artificial passa a ser, então, qualquer modificação leviana do sistema ortográfico.

Mantendo-se na senda do disparate, ainda afirma que, no período experimental, até 2015, poderão ser introduzidos aperfeiçoamentos, o que demonstra o amadorismo e a leviandade com que os responsáveis políticos gerem as respectivas áreas, uma vez que modificações na ortografia têm influência no Ensino, na Comunicação Social ou na actividade editorial. Seja como for, FJV parece, implicitamente, reconhecer que o processo nasceu torto e, para isso, existe um ditado muito antigo. No estado em que estamos, o único aperfeiçoamento possível é, no curto prazo, o regresso ao acordo de 1945.

Já me alonguei mais do que desejaria, mas não posso deixar passar em claro a confusão final em que o Secretário de Estado da Cultura tropeça, misturando liberdade artística e liberdade individual, ao terminar com uma confusa apoteose da ortografia privada, um mundo anárquico em que cada um possa escrever como lhe der na gana. Ora, a verdade é que as regras ortográficas ou outras existem, também, para ser ignoradas ou desrespeitadas ou contrariadas por escritores e artistas. Resta-nos o consolo de saber que desrespeitar essas regras não implica sanções “graves”.

Comments

  1. É gastar tempo a mais com as opiniões de Francisco José Viegas; hoje escreverá uma coisa, amanhã desmentela-se no Parlamento.
    Desde que “profissionalizou” como “político”, FJV fez tábua rasa de muito o que dizia crer e acreditar. Fez naufragar num lago de nojo os textos em que louvava o Douro e o vale do Tua, os mesmos textos (em português “antigo) que dedicava ao avô em 1988 ou, mais recentemente, na revista Ler.

    Homens de “palavra” a discutir a língua? – Desperdício de energia.

  2. António Fernando Nabais says:

    Seja como for, é importante dizer que o Secretário de estado vai nu 🙂

  3. Silvério Coutinho says:

    O Expresso cita um “esclarecimento” da “Secretaria de Estado da Cultura” a propósito das declarações de FJV.
    Mas qual Secretaria de Estado da Cultura? Este governo não tem! Na sua orgânica não existe qualquer Secretaria de Estado da Cultura!
    Basta ir ao site do governo ver.
    Aldrabões!
    SC

  4. Sim, sim, você é que o “despiu”! Até ao osso!…
    E foi “cruelzinho”, hein!… Ao ponto de lhe chegar no pêlo pela gaguez que no fundo tem a ver com a maneira sinuosa como ele se exprime… E olhe, parabéns pelo afinco com que tem defendido o “desacordo”, com verdadeira inflexibilidade, muito trabalho e saber de especialista…
    Aprecio e sigo com interesse as suas opiniões noutras matérias, com as quais normalmente concordo. Gosto também do estilo da sua escrita. Não obstante, esta sua absoluta intransigência em relação do “AO” é mesmo aquela “nota negativa” que, para mim, seu leitor atento, não lhe fica nada bem!… :p

  5. António Fernando Nabais says:

    #6
    Luís, não me considero um especialista e posso garantir-lhe que a inflexibilidade não é sequer um traço da minha personalidade. Se leu a série de textos que, há pouco tempo, dediquei ao AO, se lhe parecem justos os factos ou argumentos que aí juntei, como é possível, então, não ser intransigentemente contra o AO? E não me venha com a necessidade de refrescar a ortografia, por amor da santa!

  6. Vá lá, não seja modesto!… Como dei a entender, tenho apreciado a sua tenacidade! Nem sequer argumento, para não gaguejar e por não ter “bagagem” para tal. A minha opinião é muito mais “gnóstica” que técnica… (“modéstias” à parte…).

  7. marai celeste ramos says:

    Quem ´”é” FJV ???
    Terá sido o publicitário da TV estilo vendedor de enciclopédias e de outros livros que nunca leu já que se tivesse lido diria outras cisas ou, melhor ainda, não diria coisa nenhuma ??’
    E se no início da sua carreira política parecia fora de água, opostamente, o ministro da saúde que de tão encolhido até parecia que me falava, hoje pelo contrário falou tanto e tiu-se tanto com a história dos medicamentos que não há para quem deles mais precisa e riu tanto – nova postura de “estado” – descontraíu – está quase ministro

  8. Benedito Madaleno Mendes says:

    Xô, portuga!
    Segundo o “Estadão”, o secretário de Cultura de Portugal, um certo Viegas, deseja efetuar novas alterações na reforma ortográfica. Pronto: estragaram meu dia! Estou puto da vida com esse noia… Se eu tropico nesse fulano numa esquina, faço o enfadado ver com quantos palavrões se manda um sujeito pra UTI! Já penso em viajar até Lisboa só para ministrar-lhe uma sova de vara de marmelo. Ele que prepare a cacunda!
    O gajo, não tendo mais o que fazer, deseja mostrar serviço aos seus patrícios e resolve mexer com nossa veneranda língua, outra vez. O Brasil precisa dar um basta nessa palhaçada. Acadêmicos tupiniquins e lusitanos já firmaram um acordo que em nada beneficiou a nossa pátria. Tiraram o charme do “voo”: o circunflexo foi despejado sem motivo justo; nossa “ideia”está sem a aura do acento agudo; a “linguiça”, sem a identidade do trema, virou um enguiço e o “para” já não sabe se deve parar mesmo ou se é para dar alguma coisa a alguém! Algumas palavras perderam a magia do hífen e assim por diante. Ora, gentil leitor, quem essa gente pensa que é para ficar espinafrando o nosso vernáculo? O idioma falado no País não é um manequim de porta de loja pra mudar de roupa conforme as conveniências do momento ou o chilique de um escriba qualquer d’além-mar! Por lá, Camões e Pessoa devem estar se revirando no túmulo e por cá, Assis que nos livre de mais essa!
    Tantas mudanças ortográficas em nada ajudam a cultura do País e só prejudicam o aprendizado dos nossos alunos. Coitadinho do estudante! Na sala de aula é obrigado a conviver com um dinossauro, o Almeida-Rex Garret e aí, mal começa a se acostumar com os segredos da gramática, aparece um burocrata, lá do fundo das masmorras de “Dona Maria, a Louca” que, num surto de “estrelismo”, quer mudar a nossa escrita! O MEC precisa abrir os olhos e proteger nossas escolas antes que seja tarde e o país inteiro se torne analfabeto funcional! O caso é grave! Está faltando “Semancol” para o secretário de Cultura do “país das sardinhas”! Se nas farmácias da península ibérica o remédio está em falta, o Brasil poderá exportar. Temos esse medicamento em comprimido, injeção e, para o caso específico desse secretário aparecido, há quem diga que já existe em tamanho Extra G, o “Semancol” supositório!
    Chega de mexer com nossa língua. O português falado no Brasil é mágico porque tem cores do tupi guarani, que bandoleiros navegantes esfolaram ao chegar neste rincão. Nosso dicionário enfeita-se com o canto dos povos negros que a gente de ultramar escravizou por estas bandas e fez sangrar a golpes de chicote. A “Flor do Lácio”, que também desabrochou no maior país da América Latina, é sonora, deslumbrante e faceira! Cabe a ela determinar seu próprio ritmo. Naturalmente…
    Estou com tanta raiva desse tal de Viegas que, se dependesse só de mim, chamava o embaixador brasileiro de volta e expulsava o lusitano do consulado. Não contente com isso, impedia a entrada de todo Joaquim em nosso território e declarava “estado de Guerra”! Portugal que nos esqueça. Dom Pedro I já declarou independência em 1822, lembram-se?
    Mexer com a nossa língua é mexer com a nossa Pátria! Portugal anda muito engraçadinho. Xô!

  9. António says:

    Sobre o “regresso” ao acordo de 1945… cof cof…

    Qual o decreto-lei que revogou a vigência da sua utilização?

    Cof cof cof…

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  2. […] a ser acusado de racismo. Felizmente, vem aí um Acordo Ortográfico que, garantem os crentes, vai homogeneizar a língua portuguesa. partilhar:Facebook Esta entrada foi publicada em acordo ortográfico, com […]

  3. […] pelos apressados defensores do AO é o que não tem importância nenhuma mexer na ortografia, dislate repetido recentemente pelo Secretário de Estado da Cultura, com o argumento de que é um objecto […]

  4. […] António Emiliano é linguista e Francisco José Viegas é político. O primeiro está habituado a fazer perguntas, porque isso faz parte da sua actividade. O segundo está habituado a não responder a perguntas ou a explicar que o que disse não foi bem compreendido, uma vez que isso é inerente à sua actividade. […]

  5. […] José Viegas repete a ideia de que não houve oposição ao alegado acordo desde 1990. Embora noutro texto já tenha chamado a atenção para a aparente falta de atenção de Viegas, aqui fica, mais uma […]

  6. […] Secretário de Estado da Cultura, aquele mesmo que, sobre o AO90, disse umas canavilhices, gaguejou umas coisas e, uma vez saído do governo, chamou boçais e patetas a quem o tinha criticado. FJV deverá […]

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