Hoje dá na net: A Cena do Ódio e FMI

Também porque hoje é dia, duas obras mestras da poesia portuguesa do século XX, quase gémeas nas duas pontas do século, e no meu gostar as máximas do seu tempo.
A Cena do Ódio de José de Almada Negreiros, genialmente teatralizada por Mário Viegas recriando a apresentação pública original.
Depois do corte o FMI de José Mário Branco, e os versos completos de ambos os poemas.

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A Cena do Ódio de José d’Almada Negreiros

A Álvaro de Campos a dedicação intensa de todos os meus avatares.

Foi escrito durante os três dias e as três noites que

durou a revolução de 14 de Maio de 1915

Ergo-Me Pederasta apupado d’imbecis,

Divinizo-Me Meretriz, ex-líbris do Pecado,

e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!

Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!

O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,

Inferno a arder o Meu Cantar!

Sou Vermêlho-Niagara dos sexos escancarados nos chicotes

dos cossácos!

Sou Pan-Demónio-Trifauce enfermiço de Gula!

Sou Génio de Zaratrusta em Taças de Maré-Alta!

Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol!

Ladram-Me a Vida por vivê-La

e só Me deram Uma!

Hão-de lati-La por sina!

Agora quero vivê-La!

Hei-de Poeta cantá-La em Gala sonora e dina

Hei-de Glória desanuviá-La!

Hei-de Guindaste içá-La Esfinge

da Vala pedestre onde Me querem rir!

Hei-de trovão-clarim levá-La Luz

às Almas-Noites do Jardim das Lágrimas!

Hei-de bombo rufá-La pompa de Pompeia

nos Funerais de Mim!

Hei-de Alfange-Mahoma

cantar Sodoma na Voz de Nero!

Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,

hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido…

Hei-d’ Átila, hei-de Nero, hei-de Eu,

cantar Atila, cantar Nero, cantar Eu!

Sou Narciso do Meu Ódio!

– O Meu ódio é Lanterna de Diógenes,

é cegueira de Diógenes,

é cegueira da Lanterna!

(O Meu Ódio tem tronos d’ Herodes,

histerismos de Cleópatra, perversões de Catarina!)

O Meu ódio é Dilúvio Universal sem Arcas de Noé, só

Dilúvio Universal!

e mais Universal ainda:

Sempre a crescer, sempre a subir…

até apagar o Sol!

Sou trono de Abandono, mal-fadado,

nas iras dos Bárbaros meus Avós.

Oiço ainda da Berlinda d’Eu ser sina

gemidos vencidos de fracos,

ruídos famintos de saque,

ais distantes de Maldição eterna em Voz antiga!

Sou ruínas rasas, inocentes

como as asas de rapinas afogadas.

Sou relíquias de mártires impotentes

sequestradas em antros do Vício.

Sou clausura de Santa professa,

Mãe exilada do Mal, Hóstia d’Angústia no Claustro,

freira demente e donzela,

virtude sozinha da cela

em penitência do sexo!

Sou rasto espezinhado d’Invasores

que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.

Sou a Raiva atávica dos Távoras,

o sangue bastardo de Nero,

o ódio do último instante

do Condenado inocente!

A podenga do Limbo mordeu raivosa

as pernas nuas da minh’Alma sem baptismo…

Ah! que eu sinto, claramente,

que nasci de uma praga de ciúmes!

Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a Alma dos Bórgias a

penar!

Tu, que te dizes Homem!

Tu, que te alfaiatas em modas

e fazes cartazes dos fatos que vestes

p’ra que se não vejam as nódoas de baixo!

Tu, qu’inventaste as Ciências e as Filosofias,

as Políticas, as Artes e as Leis,

e outros quebra-cabeças de sala

e outros dramas de grande espectáculo

Tu, que aperfeiçoas sabiamente a arte de matar.

Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperança

e o Caminho Marítimo da índia

e as duas Grandes Américas,

e que levaste a chatice a estas Terras

e que trouxeste de lá mais gente p’raqui

e qu’inda por cima cantaste estes Feitos…

Tu, qu’inventaste a chatice e o balão,

e que farto de te chateares no chão

te foste chatear no ar,

e qu’inda foste inventar submarinos

p’ra te chateares também por debaixo d’água,

Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas

e que nunca descobriste que eras bruto,

e que nunca inventaste a maneira de o não seres

Tu consegues ser cada vez mais besta

e a este progresso chamas Civilização!

Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos,

vai inchando a tua ambição-toiro

‘té que a barriga te rebente rã.

Serei Vitória um dia -Hegemonia de Mim!

e tu nem derrota, nem morto, nem nada.

O Século-dos-Séculos virá um dia

e a burguesia será escravatura

se for capaz de sair de Cavalgadura!

Hei-de, entretanto, gastar a garganta

a insultar-te, ó besta!

Hei-de morder-te a ponta do rabo

e por-te as mãos no chão, no seu lugar!

Ahi! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos!

Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade!

Ahi! Espelho-aleijão do Sentimento,

macaco-intruja do Alma-realejo!

Ahi! macrelle da Ignorância!

Silenceur do Génio-Tempestade!

Spleen da Indigestão!

Ahi! meia-tigela, travão das Ascensões!

Ahi! povo judeu dos Cristos mais que Cristo!

Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno

Ó ideal ricócó dos Mendes e Possidonios

Ó cofre d’indigentes

Cuja personalidade é a moral de todos!

Ó geral da mediocridade!

Ó claque ignóbil do Vulgar, protagonista do normal!

Ó Catitismo das lindezas d’estalo!

Ahi! lucro do fácil,

cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!

Ai! dique-impecilho do Canal da Luz!

Ó coito d’impotentes

a corar ao sol no riacho da Estupidez!

Ahi! Zero-barómetro da Convicção!

bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!

Ahi! Plebeísmo Aristocratizado no preço do panamá!

erudição de calça de xadrez!

competência de relógio d’oiro

e correntes com suores do Brasil,

e berloques de cornos de búfalo!

E eu vivo aqui desterrado e Job

da Vida-gémea d’Eu ser feliz!

E eu vivo aqui sepultado vivo

na Verdade de nunca ser Eu!

Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio,

órfão da Virgem do meu sentir.

E como queres que eu faça fortuna

se Deus, por escárnio, me deu Inteligência,

e não tenho sequer, irmãs bonitas

nem uma mãe que se venda para mim?

(Pesam quilos no Meu querer

as salas de espera de Mim.

Tu chegas sempre primeiro…

Eu volto sempre amanhã…

Agora vou esperar que morras.

Mas tu és tantos que não morres…

Vou deixar d’esp’rar que morras

– Vou deixar d’esp’rar por mim!)

Ah! que eu sinto, claramente, que nasci

de uma praga de ciúmes!

Eu sou as sete pragas sobre o Nilo

e a alma dos Bórgias a penar!

E tu, também, vieille-roche, castelo medieval

fechado por dentro das tuas ruínas!

Fiel epitáfio das crónicas aduladoras!

E tu também ó sangue azul antigo

que já nasceste co’a biografia feita!

Ó pajem loiro das cortesias-avozinhas!

Ó pergaminho amarelo-múmia

das grandes galas brancas das paradas

e das Vitórias dos torneios-lotarias

com donzelas-glórias!

Ó resto de cetros, fumo de cinzas!

Ó lavas frias do Vulcão pirotécnico

com chuvas d’oiros e cabeleiras prateadas!

Ó estilhacos heráldicos de Vitrais

despegados lentamente sobre o tanque do silêncio!

Ó Cedro secular

debruçado no muro da Quinta sobre a estrada

a estorvar o caminho da Mala-posta!

E vós também, ó Gentes de Pensamento,

ó Personalidades, ó Homens!

Artistas de todas as partes, cristãos sem pátria,

Cristos vencidos por serem só Um!

E vós, ó Génios da Expressão,

e vós também, ó Génios sem Voz!

ó além-infinito sem regressos, sem nostalgias,

Espectadores gratuitos do Drama-Imenso de Vós-Mesmos!

Profetas clandestinos

do Naufrágio de Vossos Destinos!

E vós também, teóricos-irmãos-gémeos

do meu sentir internacional!

Ó escravos da Independência!

Vós que não tendes prémios

por se ter passado a vez de os ganhardes,

e famintos e covardes

entreteis a fome em revoltas do Mau-Génio

no boémia da bomba e da pólvora!

E tu também, ó Beleza Canalha

Co’a sensibilidade manchada de vinho!

Ó lírio bravo da Floresta-Ardida

à meia-porta da tua Miséria!

Ó Fado da Má-Sina

com ilustrações a giz

e letra da Maldição!

Ó fera vadia das vielas açaimada na Lei!

Ó xale e lenço a resguardar a tísica!

Ó franzinas do fanico

co’a sífilis ao colo por essas esquinas!

Ó nu d’aluguer

na meia-luz dos cortinados corridos!

Ó oratório da meretriz a mendigar gorjetas

p’rá sua Senhora da Boa-Sorte!

Ó gentes tatuadas do calão!

carro vendado da Penitenciária!

E tu também, ó Humilde, ó Simples!

enjaulados na vossa ignorância!

Ó pé descalço a calejar o cérebro!

Ó músculos da saúde de ter fechada a casa de pensar!

Ó alguidar de açorda fria

na ceia-fadiga da dor-candeia!

Ó esteiras duras pra dormir e fazer filhos!

Ó carretas da Voz do Operário

com gente de preto a pé e filarmónica atrás!

Ó campas rasas, engrinaldadas,

com chapões de ferro e balões de vidro!

Ó bota rota de mendigo abandonada no pó do caminho!

Ó metamorfose-selvagem das feras da cidade!

Ó geração de bons ladrões crucificados na Estupidez!

Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos!

Ó pampilho das Lezírias inundadas de Cidade!

ó trouxa d’aba larga da minha lavadeira,

Ó rodopio azul da saia azul de Loures!

E vós varinas que sabeis a sal

as Naus da Fenícia ainda não voltaram?!

E vós também, ó moças da Província

que trazeis o verde dos campos

no vermelho das faces pintadas!

E tu também, ó mau gosto

co’a saia de baixo a ver-se

e a falta d’educação!

Ó oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos)

a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita!

Ó tédio do domingo com botas novas

e música n’Avenida!

Ó santa Virgindade

a garantir a falta de lindeza!

Ó bilhete postal ilustrado

com aparições de beijos ao lado!

E vós ó gentes que tendes patrões,

autómatos do dono a funcionar barato!

Ó criadas novas chegadas de fora p’ra todo o serviço!

Ó costureiras mirradas,

emaranhadas na vossa dor!

Ó reles caixeiros, pederastas do balcão,

a quem o patrão exige modos lisonjeiros

e maneiras agradáveis pròs fregueses!

Ó Arsenal fadista de ganga azul e coco socialista!

Ó saídas pôr-do-sol das Fábricas d’Agonia!

E vós também, ó toda a gente, que todos tendes patrões!

E vós também, nojentos da Política

que explorais eleitos o Patriotismo!

Macrots da Pátria que vos pariu ingénuos

e vos amortalha infames!

E vós também, pindéricos jornalistas

que fazeis cócegas e outras coisas

à opinião pública!

E tu também roberto fardado:

Futrica-te espantalho engalonado,

apoia-te das patas de barro,

Larga a espada de matar

e põe o penacho no rabo!

Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!

Espuma-te no chumbo da tua Valentia!

Agoniza-te Rilhafoles armado!

Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina,

da ciencia da matança!

Groom fardado da Negra,

pária da Velha!

Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera!

Despe-te da farda,

desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu

que ficas desempregado!

Acouraça-te de senso,

vomita de vez o morticínio,

enche o pote de raciocínio,

aprende a ler corações,

que há muito mais que fazer

do que fazer revoluções!

Ruína com tuas próprias peças-colossos

as tuas próprias peças colossais,

que de 42 a 1 é meio-caminho andado!

Rebusca no seres selvagem

no teu cofre do extermínio

o teu calibre máximo!

Põe de parte a guilhotina,

dá férias ao garrote!

Não dês língua aos teus canhões,

nem ecos às pistolas,

nem vozes às espingardas!

– São coisas fora de moda!

Põe-te a fazer uma bomba

que seja uma bomba tamanha

que tenha dez raios da Terra.

Põe-lhe dentro a Europa inteira,

os dois pólos e as Américas,

a Palestina, a Grécia, o mapa

e, por favor, Portugal!

Acaba de vez com este planeta,

faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!

(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!

e esta gente distraída em guerras!)

Eu creio na transmigração das almas

por isto de Eu viver aqui em Portugal.

Mas eu não me lembro o mal que fiz

durante o Meu avatar de burguês.

Oh! Se eu soubesse que o Inferno

não era como os padres mo diziam:

uma fornalha de nunca se morrer…

mas sim um Jardim da Europa

à beira-mar plantado…

Eu teria tido certamente mais juízo,

teria sido até o mártir São Sebastião!

E inda há quem faça propaganda disto:

a pátria onde Camões morreu de fome

e onde todos enchem a barriga de Camões!

Se ao menos isto tudo se passasse

numa Terra de mulheres bonitas!

Mas as mulheres portuguesas

são a minha impotência!

E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo,

meu desacreditado burguês apinocado

da rua dos bacalhoeiros do meu ódio

co’a Felicidade em casa a servir aos dias!

Tu tens em teu favor a glória fácil

igual à de outros tantos teus pedaços

que andam desajuntados neste Mundo,

desde a invenção do mau cheiro,

a estorvar o asseio geral.

Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio

que Deus perdeu de vista o Adão de barro

e com pena fez outro de bosta de boi

por lhe faltar o barro e a inspiração!

E enquanto este Adão dormia

os ratos roeram-lhe os miolos,

e das caganitas nasceu a Eva burguesa!

Tu arreganhas os dentes quando te falam d’Orpheu

e pões-te a rir, como os pretos, sem saber porquê.

E chamas-me doido a Mim

que sei e sinto o que Eu escrevi!

Tu que dizes que não percebes;

rir-te-has de não perceberes?

Olha Hugo! Olha Zola, Cervantes e Camões,

e outros que não são nada por te cantarem a ti!

Olha Nietzche! Wilde! Olha Rimbaub e Dowson!

Cesário, Antero e outros tantos mundos!

Beethoven, Wagner e outros tantos génios

que não fizeram nada,

que deixaram este mundo tal qual!

Olha os grandes o que são estragados por ti!

O teu máximo é ser besta e ter bigodes.

A questão é estar instalado.

Se te livras de burguês e sobes a talento, a génio,

a seres alguém,

o Bem que tu fizeres é um décimo de seres fera!

E de que serve o livro e a ciência

se a experiência da vida

é que faz compreender a ciência e o livro?

Antes não ter ciências!

Antes não ter livros!

Antes não ter Vida!

Eu queria cuspir-te a cara e os bigodes,

quando te vejo apalermado p’las esquinas

a dizeres piadas às meninas,

e a gostares das mulheres que não prestam

e a fazer-lhes a corte

e a apalpar-lhes o rabo,

esse tão cantado belo cu

que creio ser melhor o teu ideal

que a própria mulher do cu grande!

E casaste-te com Ela,

porque o teu ideal veio pegado a Ela,

e agora à brocha limpas a calva em pinga

à coca de cunhas p’ró Cunha examinador

do teu décimo nono filho

dezanove vezes parvo!

(É o caso mais exemplar de Constância e fidelidade

a tua história sexual co’a Felisberta,

desde o teu primogénito tanso

‘té ao décimo nono idiota.)

‘Té no matrimónio te maldigo, infame cobridor!

Espécie de verme das lamas dos pântanos

que de tanto se encharcar em gozos

o seu corpo se atrofiou

e o sexo elefantizado foi todo o seu corpo!

Em toda a parte tu és o admirador

e em toda a parte a tua ignorância

tem a cumplicidade da incompetência

dos que te falam ‘té dos lugares sagrados.

Sim! Eu sei que tu és juiz

e qu’inda ontem prometeste a tua amante,

despedindo-a num beijo de impotente,

a condenação dos réus que tivesses

se Ela faltasse à matinée da Boa-Hora!

Pulha! E és tu que do púlpito

d’essa barriga d’Água da Curia

dás a ensinança de trote

aos teus dezanove filhos?!

Cocheiros, contai: dezanove!!!

Zute! bruto-parvo-nada

que Me roubaste tudo:

‘té Me roubaste a Vida

e não Me deixaste nada!

nem Me deixaste a Morte!

Zute! poeira-pingo-micróbio

que gemes pequeníssimos gemidos gigantes

grávido de uma dor profeta colossal.

Zute! elefante-berloque parasita do não presta!

Zute! bugiganga-celulóide-bagatela!

Zute, besta!

Zute, bácoro!!

Zute, merda!!!

Em toda a parte o teu papel é admirar,

mas (caso inf’liz)

nunca acertas numa admiração feliz.

Lês os jornais e admiras tudo do princípio ao fim

e se por desgraça vem um dia sem jornais,

tens de ficar em casa nos chinelos

porque nesse dia, felizmente,

não tens opinião pra levares à rua.

Mas nos outros dias lá estás a discutir.

É que a Natureza é compensadora:

quem não tem dinheiro p’ra ir ao Coliseu

deve ter cá fora razões p’ra se rir.

Só te oiço dizer dos outros

a inveja de seres como eles.

Nem ao menos, pobre fadista,

a veleidade de seres mais bruto?

Até os teus desejos são avaros

como as tuas unhas sujas e ratadas.

Ó meu gordo pelintrão,

água-morna suja, broa do outro v’rao!

Os homens são na proporção dos seus desejos

e é por isso que eu tenho a Concepção do Infinito…

Não te cora ser grande o teu avô

e tu apenas o seu neto, e tu apenas o seu esperma?

Não te dói Adão mais que tu?

Não te envergonha o teres antes de ti

outros muito maiores que tu?

Jamais eu quereria vir a ser um dia

o que o maior de todos já o tivesse sido

eu quero sempre muito mais

e mais ainda muito pr’além-demais-Infinito…

Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco

que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo?

Em toda a parte o bicho se propaga,

em toda a parte o nada tem estalagem.

O meu suplício não é somente de seres meu patrício

ou o de ver-te meu semelhante,

tu, mesmo estrangeiro, és besta bastante.

Foi assim que te encontrei na Rússia

como vegetas aqui e por toda a parte,

e em todos os ofícios e em todas as idades.

Lá suportei-te muito! Lá falavas russo

e eu só sabia o francês.

Mas na França, em Paris – a grande capital,

apesar de fortificada,

foi assolada por esta espécie animal.

E andam p’los cafés como as pessoas

e vestem-se na moda como elas,

e de tal maneira domésticos

que até vão às mulheres

e até vão aos domésticos.

Felizmente que na minha pátria,

a minha verdadeira mãe, a minha santa Irlanda,

apenas vivi uns anos d’Infância,

apenas me acodem longinquamente

as festas ensuoradas do priest da minha aldeia,

apenas ressuscitam sumidamente

as asfixias da tísica-mater,

apenas soam como revoltas

as pistolas do suicídio de meu pai,

apenas sinto infantilmente

no leito de uma morta

o gelo de umas unhas verdes,

um frio que não é do Norte,

um beijo grande como a vida de um tísico a morrer.

Ó Deus! Tu que m’os levaste é que sabias

o ódio que eu lhes teria

se não tivessem ficado por ali!

Mas antes, mil vezes antes, aturar os burgueses da My

Ireland

que estes desta Terra

que parece a pátria deles!

Ó Horror! Os burgueses de Portugal

têm de pior que os outros

o serem portugueses!

A Terra vive desde que um dia

deixou de ser bola do ar

p’ra ser solar de burgueses.

Houve homens de talento, génios e imperadores.

Precisaram-se de ditadores,

que foram sempre os maiores.

Cansou-se o mundo a estudar

e os sábios morreram velhos

fartos de procurar remédios,

e nunca acharam o remédio de parar.

E inda eu hoje vivo no século XX

a ver desfilar burgueses

trezentas e sessenta e cinco vezes ao ano,

e a saber que um dia

são vinte e quatro horas de chatice

e cada hora sessenta minutos de tédio

e cada minuto sessenta segundos de spleen!

Ora bolas para os sábios e pensadores!

Ora bolas para todas as épocas e todas as idades!

Bolas pròs homens de todos os tempos,

e prà intrujice da Civilização e da Cultura!

Eu invejo-te a ti, ó coisa que não tens olhos de ver!

Eu queria como tu sentir a beleza de um almoço pontual

e a f’licidade de um jantar cedinho

co’as bestas da família.

Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam

porque são muitas mais que as boas

e enche-se o tempo mais!

Eu queria, como tu, sentir o bem-estar

que te dá a bestialidade!

Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher,

e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente!

Eu queria, como tu, não saber que os outros não valem nada

p’ra os poder admirar como tu!

Eu queria que a vida fosse tão divinal

como tu a supões, como tu a vives!

Eu invejo-te, ó pedaço de cortiça

a boiar à tona d’água, à mercê dos ventos,

sem nunca saber que fundo que é o Mar!

Olha para ti!

Se te não vês, concentra-te, procura-te!

Encontrarás primeiro o alfinete

que espetaste na dobra do casaco,

e depois não percas o sítio,

porque estás decerto ao pé do alfinete.

Espeta-te nele para não te perderes de novo,

e agora observa-te!

Não te escarneças! Acomoda-te em sentido!

Não te odeies ainda qu’inda agora começaste!

Enioa-te no teu nojo, mastodonte!

Indigesta-te na palha dessa tua civilização!

Desbesunta te dessa vermência!

Destapa a tua decência, o teu imoral pudor!

Albarda te em senso! Estriba-te em Ser!

Limpa-te do cancro amarelo e podre!

Do lazareto de seres burro!

Desatrela-te do cérebro-carroça!

Desata o nó-cego da vista!

Desilustra-te, descultiva-te, despole-te,

que mais vale ser animal que besta!

Deixa antes crescer os cornos que outros adornos da

Civilização!

Queria-te antes antropófago porque comias os teus

– talvez o mundo fosse Mundo

e não a retrete que é!

Ahi! excremento do Mal, avergonha-te

no infinitamente pequeno de ti com o teu papagaio:

Ele fala como tu e diz coisas que tu dizes

e se não sabe mais é por tua culpa, meu mandrião!

E tu, se não fossem os teus pais,

davas guinchos, meu saguim!

– Tu és o papagaio de teus pais!

Mas há mais, muito mais

que a tua ignorância-miopia te cega.

Empresto-te a minha Inteligência.

Vê agora e não desmaies ainda!

Então eu não tinha razão?

P’ra que me chamavas doido

quando eu m’enjoava de ti?

Ah! Já tens medo?!

Porque te rias da vida

e ias ensuorar as vrilhas nos fauteuils das revistas

co’as pernas fogo de vistas

das coristas de petróleo?

Porque davas palmas aos compéres e actorecos

pelintras e fantoches

antes do palco, no palco e depois do palco?

Ora dize-Me com franqueza:

Era por eles terem piada?

Então era por a não terem

Ah! Era p’ra tu teres piada, meu bruto?!

Porque mandaste de castigo os teus filhos p’r’ás Belas-Artes

quando ficaram mal na instrução primária?

Porque é que dizes a toda a gente que o teu filho idiota

estuda p’ra poeta?

Porque te casaste com a tua mulher

se dormes mais vezes co’a tua criada?

Porque bateste no teu filho quando a mestra

te contou as indecências na aula?

Não te lembras das que tu fizeste

com a própria mestra de moral?

Ou queres tu ser decente,

tu, que tens dezanove filhos?!

Porque choraste tanto quando te desonraram a filha?

Porque lhe quiseste matar o amante?

Não achas isto natural? Não achas isto interessante?

Porque não choraste também pelo amante?…

Deixa! Deixa! Eu não te quero morto com medo de ti-próprio!

Eu quero-te vivo, muito vivo, a sofrer!

Não te despetes do alfinete!

Eu abro a janela pra não cheirar mal!

Galopa a tua bestialidade

na memória que eu faço dos teus coices,

cavalga o teu insecticismo na tua sela de D. Duarte!

Arreia-te de Bom-Senso um segundo! peço-te de joelhos.

Encabresta-te de Humanidade

e eu passo-te uma zoologia para as mãos

p’ra te inscreveres na divisão dos Mamíferos.

Mas anda primeiro ao Jardim Zoológico!

Vem ver os chimpanzés! Acorpanzila-te neles se te ousas!

Sagra-te de cu-azul a ver se eles te querem!

Lá porque aprendeste a andar de mãos no ar

não quer dizer que sejas mais chimpanzé que eles!

Larga a cidade masturbadora, febril,

rabo decepado de lagartixa,

labirinto cego de toupeiras,

raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados,

anémicos, cancerosos e arseniados!

Larga a cidade!

Larga a infâmia das ruas e dos boulevards

esse vaivém cínico de bandidos mudos

esse mexer esponjoso de carne viva

Esse ser-lesma nojento e macabro

Esse S ziguezague de chicote auto-fustigante

Esse ar expirado e espiritista…

Esse Inferno de Dante por cantar

Esse ruído de sol prostituído, impotente e velho

Esse silêncio pneumónico

de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!

Larga a cidade e foge!

Larga a cidade!

Vence as lutas da família na vitória de a deixar.

Larga a casa, foge dela, larga tudo!

Nem te prendas com lágrimas, que lágrimas são cadeias!

Larga a casa e verás – vai-se-te o Pesadelo!

A família é lastro, deita-a fora e vais ao céu!

Mas larga tudo primeiro, ouviste?

Larga tudo!

– Os outros, os sentimentos, os instintos,

e larga-te a ti também, a ti principalmente!

Larga tudo e vai para o campo

e larga o campo também, larga tudo!

– Põe-te a nascer outra vez!

Não queiras ter pai nem mãe,

não queiras ter outros nem Inteligência!

A Inteligência é o meu cancro

eu sinto-A na cabeça com falta de ar!

A Inteligência é a febre da Humanidade

e ninguém a sabe regular!

E já há Inteligência a mais pode parar por aqui!

Depois põe-te a viver sem cabeça,

vê só o que os olhos virem,

cheira os cheiros da Terra

come o que a Terra der,

bebe dos rios e dos mares,

– põe-te na Natureza!

Ouve a Terra, escuta-A.

A Natureza à vontade só sabe rir e cantar!

Depois, põe-te a coca dos que nascem

e não os deixes nascer.

Vai depois pla noite nas sombras

e rouba a toda a gente a Inteligência

e raspa-lhos a cabeça por dentro

co’as tuas unhas e cacos de garrafa,

bem raspado, sem deixar nada,

e vai depois depressa muito depressa

sem que o sol te veja

deitar tudo no mar onde haja tubarões!

Larga tudo e a ti também!

Mas tu nem vives nem deixas viver os mais,

Crápula do Egoísmo, cartola d’espanta-pardais!

Mas hás-de pagar-Me a febre-rodopio

novelo emaranhado da minha dor!

Mas hás-de pagar-Me a febre-calafrio

abismo-descida de Eu não querer descer!

Hás-de pagar-Me o Absinto e a Morfina

Hei-de ser cigana da tua sina

Hei-de ser a bruxa do teu remorso

Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha

em águas fortes de Goya

e no cavalo de Tróia

e nos poemas de Poe!

Hei-de feiticeira a galope na vassoura

largar-te os meus lagartos e a Peçonha!

Hei-de Vara Magica encantar-te Arte de Ganir

Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra!

Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco

e depois na carne-viva deitar fel,

e depois na carne-viva semear vidros,

semear gumes,

lumes,

e tiros.

Hei-de gozar em ti as poses diabólicas

dos teatrais venenos trágicos do persa Zoroastro!

Hei-de rasgar-te as virilhas com forquilhas e croques,

e desfraldar-te nas canelas mirradas

o negro pendão dos piratas!

Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos!

Hei-de bóia do Destino ser em brasa

e tua náufrago das galés sem horizontes verdes!

E mais do que isto ainda, muito mais:

Hei-de ser a mulher que tu gostes,

hei-de ser Ela sem te dar atenção!

Ah! que eu sinto claramente que nasci

de uma praga de ciúmes.

Eu sou as sete pragas sobre o Nilo

e a Alma dos Bórgias a penar!…

de José Almada Negreiros

poeta sensacionista

e Narciso do Egipto

FMI – José Mário Branco 

Vou, vou-vos mostrar mais um pedaço da minha vida, um pedaço um pouco especial, trata-se de um texto que foi escrito, assim, de um só jorro, numa noite de Fevereiro de 79, e que talvez tenha um ou outro pormenor que já não é muito actual. Eu vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura, sem ter modificado nada, por isso vos peço que não se deixem distrair por esses pormenores que possam ser já não muito actuais e que isso não contribua para desviar a vossa atenção do que me parece ser o essencial neste texto.
Chama-se FMI.
Quer dizer: Fundo Monetário Internacional.
Não sei porque é que se riem, é uma organização democrática dos países todos, que se reúnem, como as pessoas, em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos, e no fim tomar as decisões que interessam a todos…
É o internacionalismo monetário!

FMI

Cachucho não é coisa que me traga a mim
Mais novidade do que lagostim
Nariz que reconhece o cheiro do pilim
Distingue bem o Mortimore do Meirim
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Há tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar por aí a dentro, analisar, e então
Do meu ‘attaché-case’ sai a solução!

FMI Não há graça que não faça o FMI
FMI O bombástico de plástico para si
FMI Não há força que retorça o FMI

Discreto e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a imagem ‘on the rocks’ do cancro do tabaco
Enfio uma gravata em cada fato-macaco
E meto o pessoal todo no mesmo saco
A produtividade, ora aí está, quer dizer
Não ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo o pé na casa, espanador na mão
É só desinfectar em superprodução!

FMI Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O heróico paranóico harakiri
FMI Panegírico pró lírico daqui

Palavras, palavras, palavras e não só
Palavras para si, palavras para dó
A contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois a criadagem lava o pé e limpa o pó
A produtividade, ora nem mais, celulazinhas cinzentas
Sempre atentas
E levas pela tromba se não te pões a pau
Um encontrão imediato do 3º grau!

FMI Não há lenha que detenha o FMI
FMI Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI …

Entretem-te filho, entretem-te,
não desfolhes em vão este malmequer que
bem-te-quer, mal-te-quer, vem-te-quer, ovomalte-quer-messe gigantesca,
vem-te bem, bem te vim,
vim na cozinha, vim na casa-de-banho,
vim-me no Politeama, vim-me no Águia D’ouro, vim-me em toda a parte,
vem-te filho, vem-te comer ao olho, vem-te comer à mão,
olha os pombinhos pneumáticos como te arrulham por esses cartazes fora,
olha a música no coração da Indira Gandhi,
olha o Moshe Dayan que te traz debaixo d’olho,
o respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho?
nós somos um povo de respeitinho muito lindo,
saímos à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas certas, né filho?

Consolida filho, consolida,
enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde.

Consolida filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo,
o teu trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos,
com’ò Astro, não é filho? O cabrão do astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças, vais dormir entretido, não é?
Pois claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar,
para ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta desestabilização filha-da-puta, não é filho?
Pois claro!

E estás aí a olhar para mim, estás aí a ver-me dar 33 voltinhas por minuto,
pagaste o teu bilhete,
pagaste o teu imposto de transacção
e estás a pensar lá com os teus zodíacos: “Este tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é?” né filho?

Pois não é verdade que tu és um herói desde que nasceste?
A ti não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote!
Meu Fernão Mendes Pinto de merda, né filho?
Onde está o teu Extremo Oriente, filho?
Aniki-bé-bé, aniki-bó-bó, tu és Sepúlveda, tu és Adamastor,
pois claro, tu sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é filho? Mal eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida!

Entretem-te filho, entretem-te!
Deixa-te de políticas que a tua política é o trabalho,
trabalhinho, porreirinho da Silva,
e salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para aqui a encher pneus com este paleio de sanzala em ritmo de pop-chula, não é filho?

A-one, a-two, a-one-two-three

FMI dida didadi dadi dadi da didi
FMI …

Camòniú sanòvabiche! Camóne beibi a ver se me comes!
Camóne Luís Vaz, amanda-lhe co’os decassílabos que eles já vão saber o que é meterem-se com uma nação de poetas!
E zás! enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares,
zás! enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal,
zás! enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro,
zás! enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros,
zás! enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer
e acabamos todos numa sardinhada ao integralismo Lusitano, a estender o braço, meio Rolão Preto, meio Steve McQueen,
ok boss, tudo ok, estamos numa porreira meu,
um tripe fenomenal, proibido voltar atrás, viva a liberdade, né filho?
Pois, irreversível, pois claro, irreversívelzinho,
pluralismo a dar com um pau,
nada será como dantes, agora todos se chateiam de outra maneira, né filho?
Olha que porra, deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá,
é assim mesmo, cada um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é?

Preocupações, crises políticas pá?
A culpa é dos partidos pá!
Esta merda dos partidos é que divide a malta pá,
pois pá, é só paleio pá, o pessoal não quer é trabalhar pá!
Razão tem o Jaime Neves pá!
(Olha deixaste cair as chaves do carro!)
Pois pá!
(Que é essa orelha de preto que tens no porta-chaves?)
É pá, deixa-te disso, não desestabilizes pá!
Eh, faz favor, mais uma bica e um pastel de nata.
Uma porra pá, um autêntico desastre o 25 de Abril,
esta confusão pá,
a malta estava sossegadinha, a bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa…
Tá bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carago,
mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah?
Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah?
Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah?
Meia dúzia de líricos, pá,
meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá,
isto é tudo a mesma carneirada!

Oh sr. guarda venha cá – á,
venha ver o que isto é – é,
o barulho que vai aqui – i,
o neto a bater na avó – ó,
deu-lhe um pontapé no cu, né filho?

Tu vais conversando, conversando,
que ao menos agora pode-se falar…
…ou já não se pode?
Ou já começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, ah?
Estás desiludido com as promessas de Abril, né?
As conquistas de Abril!
Eram só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho, né filho?
E tu fizeste como o avestruz, enfiaste a cabeça na areia, “não é nada comigo, não é nada comigo”, né?
E os da frente que se lixem…
E é por isso que a tua solução é não ver, é não ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada,
precisas de paz de consciência,
não andas aqui a brincar, né filho?
Precisas de ter razão,
precisas de atirar as culpas para cima de alguém
e atiras as culpas para os da frente,
para os do 25 de Abril,
para os do 28 de Setembro,
para os do 11 de Março,
para os do 25 de Novembro, para os do…
… que dia é hoje, hã?

FMI Dida didadi dadi dadi da didi
FMI …

Não há português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho?
“Todos temos culpas no cartório”, foi isso que te ensinaram, não é verdade?
Esta merda não anda porque a malta, pá, a malta não quer que esta merda ande. Tenho dito.
A culpa é de todos, a culpa não é de ninguém, não é isto verdade?
Quer-se dizer, há culpa de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular!
Somos todos muita bons no fundo, né?
Somos todos uma nação de pecadores e de vendidos, né?
Somos todos, ou anti-comunistas ou anti-fascistas,
estas coisas até já nem querem dizer nada, ismos para aqui, ismos para acolá,
as palavras é só bolinhas de sabão, parole parole parole
e o Zé é que se lixa,
cá o pintas é sempre mexilhão…

Eu quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol, pronto,
viva o Porto, viva o Benfica,
Lourosa! Lourosa!
Marrazes! Marrazes!
Fora o arbitro! gatuno! Qual gatuno, qual caralho!

Razão tinha o Tonico Bastos para se entreter, né filho?
Entretem-te, filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs
que o teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores,
entretem-te, que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais,
entretem-te, filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho,
entretem-te, que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar,
entretem-te, que o FMI trata da saúde ao Eanes,
entretém-te, filho,
e vai para a cama descansado
que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante,
enquanto tu adormeces a não pensar em nada,
milhares e milhares de tipos inteligentes e poderosos
com computadores, redes de policia secreta, telefones, carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá!
Podes estar descansado que o Teng Hsiao-Ping está a tratar da tua vida com o Jimmy Carter,
o Brejnev está a tratar de ti com o João Paulo II,
tudo corre bem,
a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais produzir amanhã nas tuas oito horas.
A ver quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário perde valor todos os dias,
ou de te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de S. Pedro de Muel
que se some nas areias em plena praia, ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou!

Vão-te convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, estás tu a ver? Que tens tu a ver com isso, não é filho?
Cada um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é?
Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer:
– votas à esquerda moderada nas sindicais,
– votas no centro moderado nas deputais,
– e votas na direita moderada nas presidenciais!
Que mais querem eles? que lhes ofereças a Europa no natal?!
Era o que faltava!

É assim mesmo, julgam que te levam de mercedes?
toma, para safado, safado e meio, né filho? nem para a frente nem para trás!
e eles que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso, né?
Claro! Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega.

Entretem-te meu anjinho, entretem-te,
que eles são inteligentes,
eles ajudam,
eles emprestam,
eles decidem por ti,
decidem tudo por ti:
– se hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia,
– se hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão,
descansa que eles tratam disso,
– se hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos ou se hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo!

Descansa, não penses em mais nada,
que até neste país de pelintras se acha normal haver mãos desempregadas e se acha inevitável haver terras por cultivar!

Descontrai baby, come on descontrai,
afinfa-lhe o Bruce Lee, afinfa-lhe a macrobiótica, o biorritmo, o horoscópio, dois ou três ovniologistas, um gigante da ilha de Páscoa
e uma Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas!

Piramiza filho, piramiza,
antes que os chatos fujam todos para o Egipto,
que assim é que tu te fazes um homenzinho
e até já pagas multa se não fores ao recenseamento.
Pois pá, isto é um país de analfabetos, pá!

Dá-lhe no Travolta,
dá-lhe no discossáunde,
dá-lhe no pop-chula,
pop-chula pop-chula,
yeah yeah, jo-ta-pi-men-ta-for-e-ver!

Quanto menos souberes a quantas andas melhor para ti!
Não te chega para o bife? – antes no talho do que na farmácia!
Não te chega para a farmácia? – antes na farmácia do que no tribunal!
Não te chega para o tribunal? – antes a multa do que a morte!
Não te chega para o cangalheiro? – antes para a cova do que para não sei quem que há-de vir,
cabrões de vindouros!

Hã? Sempre a merda do futuro! E eu que me quilhe!
Pois, pá!
Sempre a merda do futuro, a merda do futuro, e eu hã?
Que é que eu ando aqui a fazer?
Digam lá! e eu? José Mário Branco, 37 anos,
isto é que é uma porra!
anda aqui um gajo cheio de boas intenções,
a pregar aos peixinhos,
a arriscar o pêlo,
e depois?
É só porrada e mal-viver, é?
“O menino é mal criado”, “o menino é pequeno-burguês”, “o menino pertence a uma classe sem futuro histórico”…

Eu sou parvo ou quê?
Quero ser feliz, porra,
quero ser feliz agora,
que se foda o futuro,
que se foda o progresso,
mais vale só do que mal acompanhado!

Vá: mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa, filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!

Deixem-me em paz, porra,
deixem-me em paz e sossego,
não me emprenhem mais pelos ouvidos, caralho,
não há paciência, não há paciência,
deixem-me em paz caralho,
saiam daqui,
deixem-me sozinho só um minuto,
vão vender jornais e governos e greves e sindicatos e policias e generais para o raio que vos parta!

Deixem-me sozinho, filhos da puta,
deixem só um bocadinho,
deixem-me só para sempre,
tratem da vossa vida que eu trato da minha, pronto, já chega,
sossego porra, silêncio porra,
deixem-me só, deixem-me só, deixem-me só,
deixem-me morrer descansado.

Eu quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado,
eu quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto,
eu quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro e o Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa,
deixem-me só porra!
rua!
larguem-me!
desòpila o fígado,
arreda!
t’arrenego Satanás!
filhos da puta!

Eu quero morrer sozinho ouviram?
Eu quero morrer,
eu quero que se foda o FMI,
eu quero lá saber do FMI,
eu quero que o FMI se foda,
eu quero lá saber que o FMI me foda a mim,
eu vou mas é votar no Pinheiro de Azevedo se ele tornar a ir para o hospital, pronto, bardamerda o FMI,
o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões,
o FMI não existe,
o FMI nunca aterrou na Portela coisa nenhuma,
o FMI é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio,
rua!
desandem daqui para fora!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!
a culpa é vossa!

oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe…

(…)
Mãe, eu quero ficar sozinho…
Mãe, não quero pensar mais…
Mãe, eu quero morrer mãe.
Eu quero desnascer,
ir-me embora, sem sequer ter de me ir embora.
Mãe, por favor!
Tudo menos a casa em vez de mim,
útero maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar e me encontrar fugindo…
de quê mãe?

Diz, são coisas que se me perguntem?

Não pode haver razão para tanto sofrimento.

E se inventássemos o mar de volta?
E se inventássemos partir, para regressar?
Partir, e aí, nessa viajem, ressuscitar da morte às arrecuas que me deste.
Partida para ganhar,
partida de acordar, abrir os olhos,
numa ânsia colectiva de tudo fecundar,
terra, mar, mãe…

Lembrar como o mar nos ensinava a sonhar alto,
lembrar – nota a nota – o canto das sereias,
lembrar o “depois do adeus”,
e o frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal,
lembrar cada lágrima,
cada abraço,
cada morte,
cada traição,
partir aqui,
com a ciência toda do passado,
partir, aqui, para ficar…

Assim mesmo,
como entrevi um dia,
a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,
o azul dos operários da Lisnave a desfilar,
gritando ódio apenas ao vazio,
exército de amor e capacetes.

Assim mesmo, na Praça de Londres, o soldado lhes falou:
– Olá camaradas, somos trabalhadores, e eles não conseguiram fazer-nos esquecer; aqui está a minha arma para vos servir.

Assim mesmo,
por trás das colinas onde o verde está à espera,
se levantam antiquíssimos rumores,
as festas e os suores,
os bombos de Lavacolhos,
assim mesmo senti um dia,
a chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila,
o bater inexorável dos corações produtores, os tambores.
– De quem é o carvalhal?
– É nosso!

Assim te quero cantar, mar antigo a que regresso.
Neste cais está arrimado o barco-sonho em que voltei.
Neste cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila Morena.

Diz lá: valeu a pena a travessia? Valeu pois.

Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe.
No fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco.
Tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos,
o meu canto e a palavra.
O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram.
A minha arte é estar aqui convosco
e ser-vos alimento e companhia
na viagem para estar aqui
de vez.

Sou português,
pequeno-burguês de origem,
filho de professores primários,
artista de variedades,
compositor popular,
aprendiz de feiticeiro.
Faltam-me dentes.

Sou o Zé Mário Branco,
37 anos, do Porto,
muito mais vivo que morto.

Contai com isto de mim
para cantar e para o resto.

(versão enviada ao Daniel Oliveira pelo autor)

Comments

  1. J.V. says:

    Obrigado. É quase desnecessário dize-lo, mas a Cena do Ódio está cortada, continua aqui
    http://www.youtube.com/watch?v=VaC8UVHR5tI&feature=related
    MCumprimentos

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