A homilia laranjinha: o país é uma casa ou uma família

Os párocos da igreja laranja vivem, naturalmente, tempos felizes, inebriados pelo odor do poder. Prontos para espalhar o evangelho, espelham tudo aquilo que os bispos lhes escrevem. Alguns, tentando ser mais criativos, entusiasmam-se com a boa nova e produzem comparações,  criam  metáforas, lançam imagens. Segundo estes iluminados, o povo percebe a austeridade, o povo aceita os cortes, o povo deseja o sacrifício, o povo é sereno.

 André Coelho Lima, vereador (da oposição) na Câmara Municipal de Guimarães, explica como é que costuma trocar por miúdos o discurso oficial da austeridade. “O país é como uma família. Se o pai for despedido, a família vai ter de apertar o cinto. Se eu quiser fugir a isso, tem de haver alguém que me ponha na ordem”, exemplifica. É assim que a população tem entendido as medidas de austeridade – como absolutamente necessárias.

É claro que a comparação e a metáfora envolvem riscos, sobretudo de entendimento, mas já se sabe que a paixão é inimiga da clareza. Se o país é como uma família, quem será o pai? O primeiro-ministro? E se o primeiro-ministro for despedido, o país vai ter de apertar o cinto? Mas não estamos a apertar o cinto sem o pai ter sido despedido? Ou terá sido o primeiro-ministro a despedir o pai, levando a família a apertar o cinto? E quem é aquele “eu” que desejaria fugir aos agentes de austeridade? O pai, o país, a família, o primeiro-ministro?

Diz, ainda, o mesmo André Coelho Lima, produtor e distribuidor de metáforas:

“As pessoas, mesmo as mais desinformadas, perceberam que a casa foi mal governada e que o país precisava desta volta drástica”, prossegue o autarca, sustentando que só isso ajuda a explicar “os índices [positivos] de popularidade do primeiro-ministro”.

O país era como uma família, mas, de repente, passou a ser casa. As pessoas, mesmo as mais desinformadas, serão, talvez, os inquilinos e, portanto, os cidadãos. Felizmente, os índices de popularidade do pai são positivos, o que torna a volta drástica automaticamente compreensível.

Luís Ramalho, presidente da Junta de Freguesia de Ermesinde, que acaba de inaugurar uma loja social na sua localidade onde se esperam os “novos pobres”, também recorre ao exemplo família para reflectir o estado do país. “Neste momento, Portugal está a pedir dinheiro para pagar a prestações. As medidas tomadas pela Administração são exactamente como lá em casa”, afirma, reconhecendo no entanto que “não é fácil explicar” porque “as pessoas não querem perceber”.

Com Luís Ramalho, voltamos a casa, uma casa com acabamentos especiais para os “novos pobres”, essa nova categoria social. De resto, o governo, depreende-se, está fazer como lá em casa: pede dinheiro para pagar a prestações, embora eu tivesse ouvido dizer que o problema do país estava no recurso excessivo ao crédito. Ao contrário do cónego André, o presbítero Ramalho encontra resistências de compreensão, não porque as pessoas não tenham capacidade de ver a mesma luz que o ilumina, mas porque pertencem à pior espécie de cegos.

Para outro autarca do Norte, de São Torcato, Guimarães, o rendimento disponível das famílias é muito menor: “Até pedem para pagar as sepulturas a prestações”. Mas Bruno Fernandes garante que a “seriedade do primeiro-ministro” e a “forma frontal como coloca as coisas faz sentir que este esforço vale a pena”.

Perto de Guimarães, graças à protecção de São Torcato e à intervenção divina do governo, até depois de mortos os cidadãos pagam a prestações. No meio da seca  austeritária, a seriedade do primeiro-ministro é orvalho matinal em erva ressequida de Verão. Mesmo morto e pobre, o esforço vale a pena.

Às situações difíceis das famílias em crise, Bruno Fernandes responde com o discurso da inevitabilidade: “Isto dói e machuca mas tem de ser, tem de ser”.

Bruno Fernandes, do alto da dignidade abacial, incita o rebanho a aceitar o sofrimento, balindo baixinho: a vida não só dói como machuca e será do sofrimento das famílias que Bruno Fernandes e os restantes irmãos laranja alcançarão o reino dos seus.

Ite, missa est.

Comments

  1. Zuruspa says:

    Pois, mas eu sou ateu, näo ligo a missas!

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