Ressurreição

Na sequência de algumas crónicas sobre as minhas vivências na guerra colonial da Guiné, publicadas no Aventar e no Estrolábio, recebi um mail de um amigo que não vejo há quarenta e cinco anos. Por mero acaso, este amigo, o alferes Ruca, leu os meus textos e enviou-me esse mail dizendo: você é que é o médico da minha companhia, o Adão Cruz?! Vou mandar-lhe uma foto em que estamos os dois à porta de uma Dornier. Com efeito lá estávamos, a entrar ou a sair, não me lembro bem, da avionetaO Ruca era um alferes da Companhia que veio substituir a nossa, a 1547. Por artes que já expliquei noutros artigos, obrigaram-me a ficar mais algum tempo no mato, e, portanto nesta nova Companhia onde conheci o Ruca e outros. Não tenho qualquer dificuldade em fazer amigos, amigos a sério, seja em que situação for.

Soube, através de um nativo que costumava escrever-me, o Abibe Tal, alguns anos depois de regressar, que o alferes Ruca tinha perdido uma perna. Quando recebi o mail, respondi-lhe com um caloroso abraço de nostalgia e saudade.

Um dia, ao abrir a minha caixa de correio electrónico, dei com uma afectuosa resposta ao comentário do Ruca, vinda do amigo Daniel Carvalho, o capitão Daniel Carvalho. Imediatamente o contactei através do seu e-mail:

Caro Daniel Carvalho

Lembro-me muito bem de si. Eu era o médico da 1547 do capitão Vasconcelos, que o meu amigo veio substituir. Depois da Companhia ir embora ainda fiquei cerca de dois meses na companhia do capitão Torre do Vale, que está nessa fotografia (a foto do artigo que eu havia publicado e que ele havia visto).

Um grande abraço

Adão cruz

Ontem, dia 31 de Março de 2012, recebo do amigo Daniel Carvalho o seguinte mail:

Caro doutor Adão

Muito obrigado pela sua simpática e pronta resposta, que me deu muita satisfaçção e agradavelmente me surpreendeu, na medida em que eu tinha encontrado na net o seguinte comentário numa das fotografias colocadas pelo “Zeca do Rock”(alferes José das Dores):

Navio Uige, 7-05-1966>Saída do Cais da Rocha do Conde Óbidos – Lisboa

Da dta: Alf José das Dores>Alf Sap Fernando Gaspar

Alf Médico Gomes Pedro, Assistente do Prof Dr Jácome Delfim

[Com boina] Alf Médico Adão Pinho da Cruz [falecido]

© Foto Alf José das Dores

Cruzes, canhoto… felizmente, contrariamente ao que aquele comentário me tinha levado a crer, o nosso doutor Adão continua vivo e oxalá que assim continue por longos e saudáveis anos.

Gostei muito de rever a foto do seu “homónimo” Adão Doutor que, em Bigene, eu cheguei a conhecer e que o meu amigo refere numa das suas interessantes crónicas divulgadas na Net. Era um lindo bébé. Voltou a ter notícias dele ao longo desses 45 (!) anos entretanto decorridos?

Um grande abraço

Daniel Andrade de Carvalho

(Falecido)!!!

Soube-me porreiramente esta ressurreição!

E para terminar, deixo-vos com a bela história do “Adão Doutor”, que o Daniel Carvalho agradavelmente recordou:

Adão doutor

Quando cheguei à Guiné, uma das primeiras preocupações que tive foi começar a conhecer as pessoas e os costumes. Para além de ser uma tarefa aliciante, era a melhor forma de me libertar do medo da guerra e da perspectiva pouco animadora de um regresso encaixotado.

Conhecer um povo, ainda que pequeno, originário de quarenta grupos étnicos diferentes, fragmentado e encurralado física e psicologicamente em zonas estanques, por imposição de uma violenta guerra de guerrilha, não era fácil, e a desvirtuação constituía um perigo possível. Tentei iniciar a penetração neste novo mundo através da abertura que a minha missão de médico facultava e facilitava. Com o tempo as janelas foram-se abrindo, e hoje revejo com alguma saudade o imenso painel de mil cores, esse mar de sensações e vivências que nenhuma memória pode esquecer.

As mulheres de Bigene e não só de Bigene pariam no mesmo local onde defecavam, uma pequena cerca de esteiras nas traseiras da tabanca, longe da vista das pessoas e sobretudo dos homens, como se o acto de parir fosse indigno e imprudente, obrigando ao mais submisso recato. Como se não bastasse, uns dias antes da data prevista para o parto atulhavam a vagina com bosta de vaca, a qual sofria pútridas fermentações que exalavam um cheiro nauseabundo. Os tétanos, quer da mãe quer do recém-nascido eram graves e frequentes, soube eu mais tarde.

Neste primeiro contacto fiquei boquiaberto e decidi actuar. Não seria difícil imaginar a resistência destas pessoas a qualquer tipo de reforma dos costumes, se não fosse tido em conta um facto importante. Ao contrário do que se diz e do que se pensa, os negros, sejam eles homens ou mulheres, são muito espertos, nada ficando a dever aos brancos e superando-os em muitas coisas, dentro da mesma escala de cultura. Estou disposto a comprová-lo através de exemplos sérios nascidos da minha experiência.

Só assim foi possível a rápida aceitação e compreensão dos esclarecimentos que fiz na tabanca, acerca de higiene e infecções, acerca do papel da mãe, da dignidade do parto e das vantagens de este ser efectuado na nossa enfermaria, ainda que modesta e minúscula.

Não demorou muito tempo a aparecer a primeira parturiente. Era uma linda mulher grávida de termo que não falava nada que se percebesse. Não sou capaz de precisar, nesta altura, a etnia, mas lembro-me que nem os outros negros entendiam o seu dialecto. Mas o seu sorriso, apesar das dores, era tão aberto e confiante que não precisávamos de melhor forma de comunicação e entendimento. Até os olhos do meu enfermeiro Pimentinha, electricista de profissão, brilharam de entusiasmo, entusiasmo que o levou a ler de fio a pavio a minha sebenta de obstetrícia, e a transformar-se em pouco tempo num habilidoso parteiro e carinhoso puericultor.

Nas minhas mãos um pouco trémulas eu segurava o fruto do primeiro parto que assisti na Guiné. Era um belo rapazinho, que apesar da pobreza alimentar daquela gente, nasceu bem nutrido e de uma cor rosa-marfim. Os negros nascem brancos, como se sabe. Uma deliciosa ironia anti-racista da natureza.

Embora as nossas dificuldades logísticas e económicas fossem grandes, lá consegui oferecer-lhe o alimento, sob a forma de leite condensado, único possível, indispensável aos primeiros tempos de aleitamento, pois a mãe parecia ter esgotado todas as reservas das suas entranhas ao gerá-lo de maneira tão eutrófica e perfeita.

Uma semana após o nascimento, vem ter comigo o Chefe de Posto e diz-me sorridente: “doutor, vou dar-lhe uma linda notícia, que a mim, pessoalmente, me enterneceu. A mãe daquele catraio…aquele primeiro parto que o doutor fez, lembra-se? A mãe veio registá-lo há dias, oficialmente, com o nome de “Adão Doutor”.

Comments

  1. Caro Adão, conhece aquele “engolir em seco” quando algo nos perturba? Pois é, foi exactamente isso: engoli em seco para conter uma lagrimita teimosa e quase nem respirei enquanto li…
    Graças a si o meu dia começa em pleno! 🙂

  2. Valdemar says:

    Página do Facebook sobre a Guerra Colonial Portuguesa: https://www.facebook.com/pages/GUERRA-COLONIAL-PORTUGUESA-1961-1974/102512929796720

  3. maria celeste ramos says:

    Que bonito – o meu oaís tem “adãos” – espero que tenha descendentes que compemsem a existência de “ângelos”

  4. maria celeste ramos says:

    Perdão pelos erros de ortografia – esqueço sempre olhar o que escrevo – desculpai e não estive na guiné mas fiz a guerra de angola de 1963 aqui, e também ninguém sabe como foi, excepto os que a fizeram – mas sempre houve ressurreição – que lindo em 5ª feira-santa – que espero fique sempre na nossa memória porque sem ela não há nada – não chegam os livros

  5. adão cruz says:

    Um abraço a todos

  6. Zeca says:

    Um grande abraço desde Campinas,SP, Brasil, onde resido! Quem colocou o “falecido” na legenda da foto não fui eu, foi o administrador desse blog da Guiné. Ainda bem que a informação dele estava errada. (José das Dores/Zeca)

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