O Titanic de Lourenço Marques


Bem perto da Praça Mac-Mahon, na Rua Consiglieri Pedroso em Lourenço Marques, existia a Papelaria Spanos. Era ali onde os meus pais tinham a assinatura de revistas como Tintim, Pisca-Pisca e os Almanaques Disney, pelos quais eu e o Miguel tanto ansiávamos. Para nossa casa também seguia uma publicação francesa, a Historia, dirigida por Christian Melchior-Bonnet, da Librairie Jules Tallandier. Nela escreviam André Castelot, Christine Garnier, Paul Morand, Alain Decaux, Marcel Brion, Jaques Chastenet, Paul Carell, entre muitos outros nomes da Academia Francesa, da política e da literatura europeia de então.

Houve um número que de imediato me chamou a atenção. A imagem da capa era impressionante e mostrava os momentos finais do naufrágio do Titanic. Exigi que o meu pai lesse o que ali vinha escrito em francês e nos meus oito ou nove anos de então, já ouvira algo acerca da tragédia que para muitos ainda não era coisa assim tão longínqua, ocorrida pouco antes do nascimento da nossa avó Irlanda. Com atenção segui a narrativa, desde a partida do navio, até ao momento da fatal colisão com o iceberg. Para sempre retive um trecho marcante, em que o autor relatava o testemunho de sobreviventes que garantiram a manifestação de episódios de miséria moral que o desespero impôs como norma. Remos esmagando crânios de náufragos que lutavam por um lugar no bote, ou aquela mulher que usou o anel cravejado de pedraria para desferir um knock-out em alguém que mergulhado na água gélida, tentava fugir à morte que afinal chegaria dentro de momentos.

Já não me recordo de quantos desenhos fiz acerca do Titanic. Se nalguns papéis o navio surgia novinho em folha, navegando a todo o vapor e soltando espessa fumarada pelas altaneiras chaminés, noutros a tragédia estava ali, apresentada como banda desenhada ou em pequenos instantâneos de episódios que por regra, mais ou menos seguiam aquilo que previamente escutara. Pelos vistos, da antiga Rua Princesa Patrícia nº 1208 da desaparecida Lourenço Marques, sobreviveu qualquer coisa. No montão de papéis de infância – um dos tesouros-ninharia que sobreviveram ao vendaval de 1974 -, descobri dois desenhos guardados pela nossa mãe. Um deles, precisamente o que abre este post, é meu e o outro, a publicar amanhã, do meu irmão Miguel então com uns seis anos de idade.

Longe ainda estava a voz de Céline Dion e as americanadas fantasias com diamantes azuis, rapazes maravilha sob a forma de um De Caprio-cara-de-pizza e uns tantos relatos verídicos, entremeados com algum sexo sugerido ou transpirado por uma então ainda inexistente Kate Winslet. A RTP anunciava para “dentro de poucos anos” a abertura da sua sucursal em Moçambique e os videos eram ainda coisa própria de sonhos à Júlio Verne. Livros, revistas, os filmes Made in Hollywood e a nossa bonecada, faziam o pleno do sonho.

Os lápis de cor e a esferográfica do Miguel, os meus guaches e a tinta da China, chegaram perfeitamente para nos manter viva esta memória que agora cumpre cem anos.

Estávamos em 1968, noutro mundo. Aqui está o meu Titanic, um sobrevivente de outro naufrágio.

Comments

  1. Gajo Republicano Laico e Mação... says:

    olha o chateau blanche é retornado e quarentão ou quiçá cin quent atão…
    Tintins Historia…(que deu a revista nos mesmos moldes em luz y tanas) ó Château vendido ao imperialismo franco-belga

    viva Leopoldo II e o corte de manitas a preto que nã paga imposto…

  2. Gajo Republicano Laico e Mação... says:

    Estávamos em 1968, logo o gaijo tamém estava 7 anos em 68

    dá pelo menos 50 e picos (e um pelo menos) logo este ainda é daqueles que tem reforma do estado associal…8 ou 9 anos

    dá 1959-2012= -53 anos para a miséria….absoluta ô kuase…

    é só fazere as con tásse….

  3. Nuno Castelo-Branco says:

    Caro Gajo, não se precipite. Não sou “retornado” a coisa alguma. Nasci lá, os meus pais lá nasceram, assim como a minha avó e a bisavó. Os meus trisavós chegaram a Moçambique em 1885. Tenho tios-avós, primos e primas, avós, bisavós e trisavós lá enterrados. Em suma, nem sequer sou “europeu” e se quer mesmo ficar chateado ao estilo americano, diria ser afro-português. Que tal?
    Quanto à miséria do Estado associal, também não se rale, pois não conto receber um tusto. Enquanto tiver mãos, talvez não me perca e como não sou fã de luxos dispensáveis, vivo numa certa paz de espírito, com um carrito que este ano faz duas décadas, sem casa própria, sem cartões de crédito/viagens a Cuba-Brasil-Rep.Dominicana, coca, etc, etc. Está a ver?

  4. José Viegas says:

    Olá Nuno,

    Adorei ler o que escreveu. Papelaria Spanos, Tintim, Pisca-Pisca e os Almanaques Disney…que saudades…
    E adorei ainda mais a sua resposta aos 2 comentários dessa “coisa” que se intitula Gajo (acho que o nick assenta bem…),

    Um abraco de um Coca Cola ou Laurentino (como quiser),

    José Viegas

  5. Nuno Castelo-Branco says:

    Olá, José Viegas
    O que quer que lhe diga? As coisas são mesmo assim. Ainda há gente a emprenhar pelos ouvidos com as besteiras trauteadas pelo Cunhal e respectivos moleques. Nós nem sequer tínhamos casa própria e muito menos ainda sonhávamos em vir de férias à Metrópole. Não havia dinheiro para esse tipo de fantasias. Vida digna, tínhamos sim senhor. Boa educação na escola pública – incomparavelmente superior à de hoje -, uma plena consciência daquilo que havia a fazer em prol da integração dos negros que estavam francamente discriminados. era esse o Moçambique para o qual os Velhos Colonos nos preparavam, o tal “Brasil” que Salazar prometeu e não soube ou não quis fazer. francamente, um homem intelectualmente superior a Franco, não viu o que havia a fazer? Conhecedor da história deste país, nem sequer soube imitar D. João VI!

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