Carta do Canadá: Cinquenta anos depois

Participei da greve nacional de estudantes universitários,  começada em  Lisboa em 24 de Março de 1962,   lado a lado com  largos milhares de outros estudantes. A greve foi consequência da proibição, pelo governo de Salazar, das celebrações do Dia do Estudante. O aparato policial foi impressionante a cercar a Cidade Universitária. Perante o facto, Marcelo Caetano, então Reitor da Universidade Clássica de Lisboa, falou aos milhares de estudantes concentrados frente às Faculdades de Letras e Direito: verificava que, lamentavelmente, de novo o poder executivo pisava o poder legislativo e,visto isso, estavam todos  os estudantes convidados a jantar no restaurante Castanheira de Moura, ao Lumiar.  Ordeiramente, muitos estudantes dirigiram-se ao restaurante e, quando ali chegaram, foram violentamente espancados pela polícia de choque. Estava aberta a guerra entre academia e regime, que rapidamente alastrou a outras universidades do país. Como seria de esperar, surgiram líderes: Eurico Figueiredo, Jorge Sampaio, Victor Wengorovius, Joaquim Mestre, José Medeiros Ferreira e outros. O Prof. Lindley Cintra, por ser solidário com os estudantes, foi barbamente espancado mas não desistiu. Foi então que se ouviram as vozes de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Alegre. Nasceram as baladas de protesto.  A repressão foi brutal: foi a hora de (triste) glória do capitão Maltez e de polícias de uma aterradora boçalidade. Dali a poucos meses, muitos daqueles jovens eram mobilizados para a guerra de Angola e colocados nas linhas da frente, depois de umas recrutas que ficaram célebres pelo abuso e brutalidade. Teve então lugar uma emigração a salto, que foi uma verdadeira hemorragia para o país, pois o regime só tinha para oferecer a guerra em África ou a penúria em território europeu.

Um ano antes, quando rebentou a guerra em Angola, um nutrido grupo de membros da Casa dos Estudantes do Império, de que fui a sócia 450, apareceu numa manifestação (de voluntários à força) em apoio a Salazar, e foi espancado com requintes de brutalidade pela GNR a cavalo porque resolveu acompanhar a palavra de ordem orquestrada pelos mentores do regime: Angola é Nossa. Ficámos a perceber que Angola não era nossa, era “deles”. E passámos a chamar à GNR a cavalo a “fracção imprópria”. Nos meses que se seguiram, ondas de estudantes ultramarinos rumaram ao exílio e radicalizaram a sua posição,o que redundou em perda para Portugal e para as colónias.
Julgou-se, ingenuamente, que a revolução de 1974 traria o bom senso elementar de educar as forças policiais,  apelando à inteligência e ao facto de serem os seus elementos pessoas do Povo, tornando-os de exemplar civismo e fazendo deles pessoas compreendendo cada situação, de modo a saberem que a mão pesada é para criminosos e terroristas, a exemplo do  que se passa em  países civilizados. Enganámo-nos.
No consulado de Cavaco Silva, o nunca por demais louvado Dias Loureiro, esse varão impoluto, que era então  ministro da Administraçáo Interna, mandou a polícia de choque espancar emigrantes idos de países da Europa e do Canadá, por se terem manifestado em frente do Ministério da Justiça pelo facto de todas as suas poupanças terem sido roubadas pela Caixa Económica Faialense, cujos dirigentes eram barões do PSD.
Volta e meia, em bairros problemáticos, as forças policiais carregam forte e feio sobre pessoas que desesperam de encontrar trabalho, escola, dignidade.
E agora, no  Porto, no problemático bairro da Fontinha, de novo foi a brutalidade cega da polícia sobre um grupo que ocupou um imóvel abandonado e o transformou num espaço onde os moradores podiam ler, ver filmes, pintar, fazer teatro, cantar, aprender a ler e escrever, um espaço de generosidade e solidariedade. Um grupo como devia haver às centenas pelo país,  sobretudo nesta hora de incerteza e escassez, que congregava as pessoas pelo saber, o conhecimnto, e não pela violência. Depois de baterem à farta, as chamadas forças da ordem partiram portas e janelas, destruíram tudoo que encontraram naquele espaço, numa raiva irracional.
Resumindo: para mal de todos, polícia incluida, a boçalidade continua.  Provavelmente porque é uma emanação de quem tutela. E porque quem tutela tenta não sentir medo promovendo a violência.

Comments

  1. maria celeste ramos says:

    Pois é – também fui grevista e na contingência de ser “despedida” da FP já que fui trabalhadora-estudante – Sim a greve iniciada por Direito e Agronomia propagou-se a todas a universiadae de Lisboa bem como a todo o pais como um ratilho – estudantes a que aderiram trabalhadores, se é que me lembro bem – Mas se surgiram liders, e quie continuaram mais tarde a sê-lo como o caso de Jorge Sampaio, a par deles apareceram muitos “oportunas” – Porém, curiosamente, os grandes intelectuais deste país só falam do Maio 68 e, a maioria, que nem têm a ver com tal greve, fala do que nem sabe e muito menos viveu – Pedantes e desmemoriados e que lêm a “história” em “brasilês”, certamente – Se passaram 50 anos, adicionando a idade que teríamos de 18/19 anos, fazendo contas, terão hoje, os que ainda estão vivos, já pelo menos 68 anos, que é uma bela idade e belo tempo de coragem – Não sabia, como está aqui escrito, onde estava o grande Dias Loureiro – a esse e outros como ele porque foram bastantes, desejo que a vida tenha corrido bem, mesmo tendo passado o que se passou – Esses “dias loureiros” que são os que deviam durante “uns tempos” passar nas grades, que se lixem – São os vermes que sempre cada sociedade tem e que como as minhocas (bem necessárias à fertilidade da terra) têm vidas subterrâneas que aviltam e desertificam os valores mais básicos da sociedade – mas que não vencem, porque o Homem sempre foi maior do que um verme

  2. Estrórdinário!
    Nasce tudo em Lisboa até as baladas, o Zeca, o Adriano…
    Só há uma explicação, tem de ser da água…

  3. Jonh says:

    que bonito lirismo: «espaço onde os moradores podiam ler, ver filmes, pintar, fazer teatro, cantar, aprender a ler e escrever, um espaço de generosidade e solidariedade» ahahahahaha esta desculpe é de gargalhar, suponho que nunca tenha lá estado…

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