Giraldo

Marvão. autor desconhecido

“O pérfido galego Ibn Arrik, senhor de Coimbra – o maldito de Deus! – conhecia bem a valentia do cão do Giraldo. O pensamento constante deste era tomar à traição as cidades e os castelos, só com a sua gente: ele tinha os muçulmanos da fronteira sob o terror. Este cão avançava, sem ser apercebido, na noite chuvosa, escura, tenebrosa e, insensível ao vento e à neve, ia contra as cidades. Para isso levava escadas de madeira de grande comprimento, de modo que com elas subisse acima das muralhas da cidade que procurava surpreender; e quando a vigia muçulmana dormia, encostava as escadas à muralha e era o primeiro a subir ao castelo. E empolgando a vigia dizia-lhe: – Grita como tens por costume de noite que não há novidade! – E então os seus homens de armas subiam acima dos muros da cidade, davam na sua língua um grito imenso e execrando, penetravam na cidade, matavam quantos encontravam, despojavam-nos, e levavam todos os cativos e presa que estavam nela.”

(Ibn Sahib As-Salat citado por COELHO, 1989, pág. 304-305)

Nos meados do século XII o Gharb Al-Andalus vivia tempos conturbados. A ameaça do reino de Bortuqal era cada vez maior. Ibn Arrik Al-Bortuqali, Afonso Henriques, conseguira fazer descer a fronteira para o Vale do Tejo e transferira a sua base de operações para Coimbra, onde procurava granjear o apoio dos moçárabes e fazer no Alentejo uma guerra de desgaste com os seus cavaleiros-vilãos. Para além disso contava com o apoio dos temíveis Franj, ou cruzados, que mostraram toda a sua crueldade durante os massacres que levaram a cabo na conquista de Lisboa de 1147.

Do lado dos Muçulmanos a unidade era difícil de alcançar, já que os recém-chegados Almóadas enfrentavam bolsas de resistência Almorávida e de Reinos de Taifas que se recusavam a aceitar a sua soberania, obrigando a uma constante dispersão de forças para garantir a unidade territorial do Al-Andalus.

Também é verdade que os próprios reinos cristãos disputavam entre si os territórios conquistados ao Islão, o que os colocava frequentemente em guerra aberta uns com os outros.

A guerra entre cristãos e muçulmanos tinha assim contornos que iam muito para além do campo religioso e cultural, e que em termos estratégicos, ideológicos e mesmo espirituais dava origem a alianças aparentemente pouco lógicas, mas facilmente explicáveis, como a que uniu em determinado momento as cavalarias espirituais Muçulmana e Cristã, personificadas pelos Muridines de Ibn Qasi e os Templários de Ibn Arrik ou a que uniu os Almóadas de Abu Yaqub Yussul Al-Mansur ao Reino de Leão de Fernando “o Baboso”.

O Alentejo e a Extremadura Espanhola estavam no centro da disputa pelos territórios de fronteira, e neste contexto surge uma figura controversa e pouco conhecida, que foi determinante nos conflitos que ocorreram neste período, de nome Giraldo “o Sem Pavor”.

Marraquexe Kutubya

Marraquexe

Durante o período dos Reinos das Taifas aumenta a ameaça dos cristãos ao Andalus. Incapazes de suster o seu avanço, os príncipes dos vários reinos, liderados por Al-Mu’tamid Ibn Abbad, reúnem-se na conferência de Sevilha, na qual pedem auxílio a Yussuf Ibn Tachfin, chefe dos Almorávidas que recentemente tinham unificado Marrocos sob o seu poder.

Yussuf era um crítico do modo de vida dos príncipes das taifas, segundo ele mais preocupados em divertir-se que em lutar contra os inimigos do Islão.

“Libertar a Península dos cristãos tal foi o nosso único fim quando vimos que estavam quase a ser os seus donos e, por outro lado, quanta era a incúria dos príncipes muçulmanos, o seu pouco entusiasmo em fazer a guerra, as suas lutas intestinas e o seu gosto pelos prazeres. Cada um deles não tinha outra preocupação senão esvaziar as suas taças, escutar cantadeiras e divertir-se. Por pouco que eu viva saberei devolver aos muçulmanos todas as províncias que lhes tomaram os cristãos durante este período calamitoso. Para combater os nossos inimigos enchê-las-ei de cavaleiros e de peões que ignoram o repouso, que não sabem o que é viver na moleza, que não sonham senão em domar e treinar os seus cavalos, em cuidar das suas armas e em precipitar-se para o combate à primeira ordem” (COELHO, 1989, pág. 272)

Yussuf acede ao seu pedido e envia um poderoso exército que se junta às forças de Al-Mu’tamid, rei de Sevilha, Al-Mutawakkil, rei de Badajoz e Abdallah, rei de Granada, para além de tropas das taifas de Almeria e Málaga, que em 1086 derrota na batalha de Zalaca o exército cristão de Afonso VI de Leão e Castela, Sancho Ramirez de Aragão e D. Raimundo e D. Henrique, futuros condes da Galiza e Portucale, e incluindo também uma força enviada por Rodrigo Díaz de Vivar, o famoso El Cid, o “Campeador”. No seguimento da vitória Almorávida, Yussuf não regressa a Marrocos e destrona os reis das Taifas, unificando o Andalus sob a sua bandeira.

Alcazar de Sevilha

A Alcazar de Sevilha, capital Almorávida

No ano de 1094 o Gharb Al-Andalus estava todo em poder dos Almorávidas, que fixam a fronteira com os reinos Cristãos no Vale do Tejo. No entanto a ocupação Almorávida vem criar conflitos na sociedade multi-étnica e multi-cultural Andalusa, tradicionalmente tolerante e aberta, que vivia no respeito pelos direitos das várias comunidades. Iniciam-se revoltas no seio dos moçárabes e muladis, em resposta à intolerância do poder dos alfaquís.

“A vitoria dos Almorávidas trouxe para a Espanha Árabe, o triunfo dos alfaquís e uma nova época de intolerância religiosa. Isso desgostou grandemente a aristocracia hispano-árabe e as classes cultas, aquela desapossada dos seus bens e estas atingidas pela condenação sistemática das suas obras e pelo desaparecimento da liberdade intelectual.” (DOMINGUES, 2010, pág. 173)

A revolta de Ibn Qasi e do movimento Muridíno em Silves, e a consequente criação de um vasto território independente, abarcando todo o Algarve, Alentejo e parte da Extremadura Espanhola, foi sem dúvida a mais importante de todas.

Fortaleza da Arrifana

Vista da Ponta da Atalaia em Aljezur, local do Ribat de Ibn Qasi

Defensor do misticismo sufi e dos ideais da cavalaria espiritual, Ibn Qasi sela um pacto com Ibn Arrik, cujas ligações aos ideais da cavalaria espiritual são por demais conhecidos, concretamente aos Templários, que constituíam a principal força de ocupação dos territórios da “frente”. Ibn Qasi é inicialmente apoiado pelos Almóadas, uma nova dinastia berbere que entretanto conquistara Marrocos e disputa com os Amorávidas o domínio do Al-Andalus, mas acaba por ser assassinado por estes. O reinado de Ibn Qasi vigorou entre 1144 e 1151.

Sobre a importância do pacto entre Ibn Qasi e Ibn Arrik escreveria Adalberto Alves “O pacto simbólico que então faz com D. Afonso Henriques sela o ideal sinárquico que une a cavalaria templária à cavalaria islâmica muridínica, afinal uma convergente cavalaria espiritual. É esse arco voltaico de natureza iniciática que liberta a sinergia donde Portugal virá a brotar”. (ALVES, 2007, pág. 75)

Garcia Domingues também se refere não só ao pacto entre Ibn Qasi e Ibn Arrik contra os Almóadas, como também aquele que anteriormente Al-Mu’tamid celebrara com o seu sogro Afonso VI de Castela contra os Almorávidas, ambos selados após pedidos de auxílio feitos aos Norte-Africanos, afirmando “Desta forma se vê, que a alma destes últimos muçulmanos se dividia já entre os deveres de uma fé confusa e discutida, embora ainda cheia de energias e o sentimento de uma solidariedade peninsular que se iria afirmando.” (DOMINGUES, 2010, pág. 219)

Castelo dos Mouros

Castelo de Sintra

A partir de 1157 iniciam-se as grandes ofensivas do Almóada Abu Yaqub Yussuf Al-Mansur, Almançor, “o Vitorioso”, que reconquista algumas praças perdidas pelos Almorávidas após a sua derrota na batalha de Ourique de 1137, sendo apenas travado em Tomar pelos Templários de Gualdim Pais no ano de 1190. A fronteira não mais subiria acima do Vale do Tejo.

Gualdim Pais, cavaleiro Templário regressado da Palestina no ano de 1157, é ordenado Grão-Mestre da Ordem, então sediada em Soure. Em 1160 funda o Castelo de Tomar, para onde transfere a sua sede, e posteriormente os de Almourol, Pombal, Monsanto e Idanha.

Conforme já foi referido, o próprio Afonso Henriques assume-se como um Irmão Templário. No documento de doação do Castelo de Soure à Ordem afirma “…in vestre fraternitate sum frater”. O próprio selo de Afonso Henriques tem referências atribuídas à sua confissão Templária, como a Cruz dos Templários e a decomposição da palavra “Portugal” nas suas três sílabas, resultando na frase “por tu gal” ou “por tuo graal”.

Mas o maior indício da confissão Templária de Afonso Henriques é sem dúvida o carácter nobre dos seus actos. “A verdade é que o primeiro rei de Portugal, se bem que grande conquistador de terras muçulmanas, foi simultaneamente um inegável protector dos direitos das minorias mouras (…) Talvez a essa tolerância do primeiro rei não seja alheio o facto de ter havido de mulher moura um filho bastardo (…) A aliança entre Ibn Qasi e Afonso Henriques só pode, assim, entender-se, em todo o seu verdadeiro alcance, com recurso às ideias sufis daquele e aos ideais templários deste. Tal pacto não pode ser levado à conta de mero oportunismo.” (ALVES, 2007, pág. 74)

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Coimbra

Do lado de Bortuqal, é inegável a importância que a batalha de Ourique teve. Dois anos depois, Afonso Henriques transfere a sua base de operações para Coimbra, reforçando consideravelmente o seu poder e posicionando-se de forma mais eficaz para a conquista do Sul. Com esta transferência do poder de Guimarães para Coimbra, Afonso Henriques “mata vários coelhos”, ao afastar-se da nobreza do Norte, libertando-se do espartilho que constituía politica e ideologicamente, e estabelecendo novos laços com os moçárabes (1), granjeando apoios nas áreas conquistadas, selando pactos de amizade com os cavaleiros-vilãos e abrindo a mentalidade vigente na sociedade portuguesa, ao incorporar os valores culturais e científicos do Sul, muito mais avançados e desenvolvidos.

Para além disso, Afonso Henriques percebe que o impasse em que os territórios da zona de fronteira se encontram, com conquistas e derrotas de lado a lado, como por exemplo em Évora e Beja em 1159, exige um novo tipo de guerra, os chamados “fossados” ou incursões rápidas, emboscadas e razias para desgaste e destruição de víveres.

Apocalipse do Lorvão

Trabalhos agrícolas. Ilustração do manuscrito Apocalipse do Lorvão (1189)

Os “cavaleiros-vilãos”, ou lavradores livres, eram cavaleiros designados pelos concelhos para combater nas hostes do rei, devendo para isso ter posses suficientes para possuir cavalo, armas e ter um determinado rendimento, já que normalmente eram donos de terras. Não recebiam qualquer pagamento, mas ficavam isentos de determinados impostos. Nos concelhos são os homens-bons e nas cortes representam a classe popular, estando assim entre a nobreza e o povo. Muitos dos cavaleiros-vilãos eram moçárabes e estavam muito familiarizados com os “fossados” ou incursões no território inimigo.

É neste contexto que surge em 1162 Giraldo “O Sem Pavor”, também conhecido como “o Campeador Português”.

As origens de Giraldo não são bem conhecidas, mas tudo indica que seria um moçárabe, provavelmente natural de Santarém. O seu conhecimento das terras do Gharb Al-Andalus e das suas cidades, dos costumes e língua Árabe, bem como o facto de ser referenciado pelos cronistas muçulmanos da época, caso do historiador Almóada Ibn Sahib As-Salat, nas suas crónicas inflamadas, como um traidor e um renegado, indiciam que terá crescido no seio da sociedade islâmica.

Giraldo agia por conta própria, com o seu exército de bandoleiros, atacando as praças muçulmanas pela calada da noite, e entregando-as posteriormente a Ibn Arrik, fosse a troco de um pagamento, fosse no âmbito de uma relação de vassalagem.

Monsaraz

Monsaraz. autor desconhecido

Outra explicação sobre a origem de Giraldo, não corroborada pelas fontes da época, é a que era um nobre cristão caído em desgraça por um crime cometido e exilado em terras islâmicas. “A ele se juntavam todos os proscritos e malfeitores que passavam a integrar a sua mesnada, e como mantinha tréguas com os muçulmanos dedicavam-se a razias em território cristão, sendo por isso apodados de ladrões.” (PEREIRA, 2008, pág. 26) O facto de as forças de Ibn Arrik começarem a actuar próximo da sua área teria como consequência que começasse a lutar pelos cristãos, para obter o seu perdão.

No ano de 1162 um grupo de cavaleiros cristãos ao serviço do rei de Bortuqal, comandados por Fernando Gonçalves filho do alcaide de Coimbra, efectua uma incursão pelo baixo Alentejo e toma a cidade de Beja durante a noite. Durante a sua passagem por Santarém terão engrossado as suas hostes com vários cavaleiros-vilãos, e pensa-se que Giraldo estivesse entre eles. A ocupação de Beja ocorre desde o mês de Novembro até Abril do ano seguinte, após o que foi arrasada, incendiada e abandonada.

Em 1165 Giraldo leva a cabo a sua mais notória conquista, a da cidade de Évora, que entrega ao rei de Portugal e lhe terá valido a nomeação de alcaide da cidade. A esta versão “oficial” dos acontecimentos os cronistas Árabes da época apresentam uma outra, bastante mais prática e plausível _ a que Giraldo vendeu a cidade a Ibn Arrik, o aliás faria com as suas conquistas posteriores. Entre 1165 e 1167 seguem-se Trujillo, Cáceres, Montanchez, Lobón, Monsaraz, Moura, Serpa, Alconchel e Juromenha, onde, nesta última, estabelece o seu quartel-general.

Planta

Área de actuação de Giraldo

No ano de 1169 Giraldo cerca Badajoz e pede ajuda a Afonso Henriques, que conquista a cidade. Ao saber desta situação, Fernando II, o Baboso, rei de Leão, a coberto de uma aliança que mantinha com os mouros de Badajoz, cerca a cidade. No combate que se segue as forças de Afonso Henriques são atacadas em duas frentes. Pelos Leoneses do lado de fora das muralhas e pelos Almóadas que ainda resistiam na alcáçova. Os portugueses são obrigados a retirar. Durante a fuga, o rei de Portugal parte a perna no ferrolho da porta da cidade, perde os sentidos e é transportado pelos seus para um lugar próximo chamado Caia.

“Os cavaleiros de Fernando, o Baboso, foram em sua perseguição e levaram-no cativo e em ferros à presença dele, mas ele deu-lhe a liberdade, a pedido dos cristãos, e permitiu que voltasse à sua capital Coimbra, vencido e humilhado; e nunca mais pode montar a cavalo – Deus o amaldiçoe e lance ao fogo do inferno! – Quanto a Giraldo, o pérfido galego, voltou ao seu lugar forte; e por fim deu Deus a vantagem ao príncipe dos crentes, como se dirá no lugar competente.” (Ibn Sahib As-Salat citado por COELHO, 1989, pág. 307)

Alcáçova de Badajoz

Alcáçova de Badajoz. autor desconhecido

Afonso Henriques fica cativo durante vários meses. “A Portugal regressou um soberano cansado e envelhecido, doente e incapaz. Nunca mais montou a cavalo.” (PEREIRA, 2008, pág. 57) Entrega o comando das operações militares do reino ao seu filho Sancho e a responsabilidade de defesa da fronteira Sul aos Templários.

Fernando II de Leão devolve Badajoz aos Almóadas e recupera as praças da actual Extremadura espanhola. Afinal a grande ameaça da expansão do Reino de Leão para Sul eram os portugueses. “A posse portuguesa de Badajoz e um hipotético senhorio de Geraldo aí implantado significavam para os leoneses o encerramento da sua via natural de expansão. A única disponível.” (PEREIRA, 2008, pág. 59)

Quanto a Giraldo volta para Juromenha e, sem o apoio de Afonso Henriques, inicia uma guerra por conta própria, passando a governar de forma independente o seu território na zona do Guadiana. Obcecado com a conquista de Badajoz, começa a fazer razias insistentes no campo que a circunda, destruindo colheitas, roubando gabo e privando a cidade do necessário abastecimento de víveres. Apoiado por bandos de cavaleiros-vilãos de Santarém, monta um cerco à cidade, impedindo o seu abastecimento pelo exterior.

Castelo de Juromenha

Juromenha, capital de Geraldo, o “sem pavor”. autor desconhecido

Para ajudar Badajoz os Almóadas enviam em Maio de 1170 uma caravana de 5.000 burros com mantimentos, protegida por tropas Berberes e Andaluzas. Giraldo monta uma emboscada no Vale de Matamouros. As tropas muçulmanas são desbaratadas e os mantimentos saqueados.

“Chegado este comboio e gente perto de Badajoz, o maldito Giraldo, com a sua gente, formada de moçárabes e moradores de Santarém, saiu-lhes ao encontro e, depois de um combate que durou uma grande parte do dia, desbaratou os muçulmanos, matou e cativou muitos deles e tomou toda a carga que traziam.” (Ibn Sahib As-Salat citado por COELHO, 1989, pág. 307)

O ano de 1171 é um ano de reveses para Giraldo. Abu Yaqub Yussuf organiza um exército comandado por Abu Saíd Uthman para pacificar o Guadiana. O exército junta-se a tropas de Fernando II de Leão e expulsa os bandoleiros dos arredores de Badajoz, perseguindo-os até Juromenha, que cercam e destroem. O mesmo exército reconquista o Castelo de Lobón. Nas duas situações os Almóadas procuram capturar Giraldo, mas este ou consegue fugir ou não se encontra presente. Ibn Sahib As-Salat descreve assim o evento:

“Desse lugar onde se encontrara com o soberano cristão, o Cide Magnífico foi com as suas tropas contra o castelo de Juromenha que cercou e tomou, obrigando Giraldo, infiel e maldito, a fugir dele: depois de que o arrasou.” (Ibn Sahib As-Salat citado por COELHO, 1989, pág. 308)

Castelo de Juromenha

Castelo de Juromenha. autor desconhecido

No ano seguinte Giraldo participa na sua última acção militar em colaboração com os portugueses, tomando de assalto a cidade de Beja. Do lado português o exército é comandado pelo infante Sancho, dada a invalidez de Afonso Henriques. A cidade é tomada pela calada da noite e mantida em poder dos portugueses durante alguns meses, após o que é destruída e abandonada.

O ano de 1173 fica marcado por ofensivas de grande vulto por parte dos exércitos Almóadas que, apesar de conseguirem substanciais saques nos territórios cristãos, não alteram os limites das fronteiras existentes. Apesar disso, tanto Castelhanos como Portugueses estabelecem acordos de paz com Sevilha. O acordo de paz de 5 anos celebrado por Afonso Henriques permite aos portugueses organizar o seu território de fronteira, consolidar o povoamento e conceder cartas de foral às principais cidades. Permite também promover a trasladação das relíquias de S. Vicente, de Sagres para Lisboa.

“Suspensa a ofensiva militar, assumidas outras prioridades políticas, não havia mais lugar para Geraldo Sem Pavor. Era necessário garantir o estrito cumprimento do pacto com o Islão (…) Na ausência de projectos bélicos, extinguem-se as fontes de rendimento, a subsistência, os meios de manutenção do seu grupo armado, de um modo de vida. A própria legitimidade enquanto chefe de guerra fica posta em causa. Perdidos os castelos, a alternativa encontra-se da outra banda, na terra dos Infiéis que antes tinha fustigado.” (PEREIRA, 2008, pág. 68-69)

Morabito

Morabito no Vale do Draa

Giraldo regressa às origens. Com um grupo de companheiros dirige-se a Sevilha, converte-se ao Islão e coloca-se ao serviço dos muçulmanos.

Três anos depois Abu Yaqub Yusuf Al-Mansur regressa a Marraquexe e leva consigo Giraldo e os cerca de 350 bandoleiros que o acompanhavam, a quem confia o governo de Tarudant, capital do Suss. O papel de Giraldo será o de pacificar a tribo dos Sanhaja, rival do poder Almóada.

O desfecho da história de Giraldo conhece várias versões, todas elas com um denominador comum _ a sua execução devido a uma carta que terá escrito a Ibn Arrik propondo-lhe uma operação militar portuguesa no Suss marroquino.

De acordo com o Códice Albaidac, Yusuf enviou Giraldo (Guerando como era conhecido pelos muçulmanos) para a região do Draa, onde foi executado. Escreveu Yussuf ao governador do Draa: “Quando vos enviarmos Guerando e os seus partidários, reparti estes pelas tribos e a ele matai-o porque nós temos carta dele que mostra a sua traição.” (COELHO, 1989, pág. 310)

De acordo com o Anónimo de Madrid e Copenhaga, Giraldo foi detido e colocado numa prisão em Sijilmassa, no Tafilalt marroquino. “Pensou ele, todavia, em fugir da prisão e embarcar em algum porto, mas descobriu-se o seu projecto e foi posto à morte, cortando-lhe a cabeça para acabar com os seus manejos.” (MIRANDA, 1917, obra citada)

Notas:

(1) Os moçárabes, termo que vem do árabe musta’rib, ou arabizado, eram os cristãos que viviam no Al-Andalus. Eram comunidades arabizadas, no sentido em que falavam o árabe e adoptaram os costumes árabes, mas mantiveram a religião cristã, tolerada pelas autoridades. Tinham as suas igrejas e os seus bispos participavam inclusivamente nos concílios da Igreja Católica Romana. Várias cidades tinham importantes comunidades moçárabes, como por exemplo, Coimbra, Santarém ou Faro

Bibliografia:

ALVES, Adalberto. “Portugal e o Islão Iniciático”. Ésquilo edições e multimédia, Lda. Lisboa, 2007

COELHO, António Borges. “Portugal na Espanha Árabe”. Editorial Caminho. Lisboa, 1989

DOMINGUES, José Garcia. “História Luso-Árabe”. Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves. Faro, 2010

MIRANDA, Ambrosio Huici. “El Anónimo de Madrid y Copenhague”. Instituto General y Técnico de Valencia, 1917

PEREIRA, Armando de Sousa. “Geraldo Sem Pavor _ Um guerreiro de fronteira entre cristãos e muçulmanos – c. 1162-1176”. Fronteira do Caos Editores, Lda. Porto, 2008

Comments

  1. Essa de “mudar a capital para Coimbra” não bate com a História, Frederico, já Henrique de Borgonha o fizera.
    Guimarães foi capital de Portugal na tarde de 24 de junho de 1128. talvez o único dia em que seguramente Afonso Henriques por lá esteve. O resto são lendas e muito más narrativas.

  2. Frederico Mendes Paula says:

    É verdade João José. Coimbra foi a primeira capital de Portugal. Aquilo que pretendi dizer foi que desde 1128 (após a batalha de S. Mamede) Afonso Henriques assume-se como rei, ao declarar em Guimarães o condado portucalense como reino independente. Em1139, ano em que é aclamado rei pela nobreza, e que corresponde na verdade à fundação de Portugal, a sua corte encontra-se em Coimbra, cidade que será em 1143 a primeira capital do país.

  3. rui esteves says:

    Muito interessante como é habitual.
    Intriga-me a designação do reino de BORTUGAL.
    Nunca vi, antes, este nome.
    O que quer dizer com Bortugal ?

  4. Frederico Mendes Paula says:

    BORTUQAL é a forma arabizada de designar PORTUGAL, tendo em conta que no alfabeto Árabe não existem as consoantes P e G, as quais são geralmente substituídas pelo B e Q (ou pelo “ghain”, consoante que se transcreve com GH e que tem o valor fonético do R gutural). Esta designação BORTUQAL surge em textos de vários arabistas e poderá correspoder à transcrição da palavra escrita em caracteres Árabes. Digo poderá, porque em Arabe também não existe a vogal O (apenas existem o A, I e U), e para além disso as vogais não são escritas. Significa que os caracteres Árabes “alif”, A, “ya”, I e “uau”, U são de facto consoantes e não vogais. A vocalização dos textos Arabes foi introduzida posteriormente à criação do alfabeto, para que os crentes pudessem ler correctamente O Corão. Voltando a BORTUQAL ou BORTUGHAL, a palavra surge nos textos Árabes antigos escrita assim برتقال com as consoantes BRTQAL. Actualmente escreve-se برتغال ou BRTGHAL, mas que de facto deve pronunciar-se BURTUGHAL. Na Darija Marroquina (dialecto Arabe de Marrocos) o nome continua e pronunciar-se BURTUQAL.

  5. xico says:

    Serviço público.
    Já agora podia ampliar o serviço público com a denominação das localidades que aparecem nas imagens?
    Bem haja.

  6. Afonso Jorge says:

    Grato pelo artigo.

  7. Maria de Fátima Bizarro says:

    Serviço público, disse Xico. E do melhor, acrescento eu. Muito obrigada!

  8. Frederico Mendes Paula says:

    Caro Xico
    Presumo que a denominação das localidades significa a indicação dos seus nomes Arabes nos tempos do Gharb Al-Andalus. Devo dizer que, para que essa denominação tenha uma base credível e consistente, deverá ser realizada sob a forma de estudo toponímico, que, como pode imaginar, implica um trabalho de pesquisa que não pode fazer-se sem recurso à consulta de documentos e outro tipo de material de apoio. De qualquer maneira, e sem querer ser pretencioso, deixo aqui o link de um outro post meu que avança um pouco sobre o tema da toponímia de origem Arabe (e não só), ficando também o compromisso de um post para breve sobre esse assunto. Cumprimentos
    http://aventar.eu/2011/02/12/influencias-da-lingua-arabe-no-portugues/

  9. insulas ocidentaes. says:

    Bem fundamentado,e o mais importante,de leitura fácil,que raramemte se disponibiliza,a ser interessante,despertar curiosidade,interesse;
    cumpr.

  10. insulas ocidentaes. says:

    P.s.(raramente).

  11. Fiquei intrigado por não teres assumido no teu texto uma sequência cronológica.
    Há algum motivo que te tenha levado a esse procedimento?

    • Frederico Mendes Paula says:

      Caro António. Penso que te referes ao facto de que após a segunda imagem haver um retorno cronológico. A explicação tem a ver com a própria forma como os textos são apresentados no blog, ou seja, através de um excerto inicial, seguido de uma “quebra”, sendo apenas lidos na sua totalidade quando o texto é aberto.
      Nos meus posts tento tirar partido dessa situação, colocando no início um pequeno texto que sintetiza o que adiante será apresentado. Não sei se fui claro.

  12. António Rei says:

    Uma pequena correção: Martim Afonso “Chichorro” foi filho de Afonso III e de uma filha do alcaide muçulmano de Faro. Não foi filho de Afonso Henriques. Abraço.

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