A impossível subordinação

opera6-300x202.jpg

1. A ideia

É quase evidente, é quase uma verdade que grita, o facto dos pequenos serem educados pelos adultos como se pertencessem a eles, como se fossem da sua propriedade, até uma coisa, diria eu. Uma coisa que deve ser estruturada conforme as formas de pensar e agir dos adultos. Um dever, o estruturar, o comportamento infantil à maneira que o adulto entende o mundo. Tenho observado ao longo dos meus anos de trabalho de campo, o facto da subordinação, por sim ou por não, dos mais novos aos adultos, no lar ou nas instituições às quais são enviados para aprenderem a teoria da cultura do seu grupo social. Uma subordinação definida por mim já há alguns anos, como a sujeição sem alternativas ao que o adulto pretende retirar do mais novo. Até ao ponto de existirem adultos que escrevem o que deve ser feito para organizar o processo de subordinação que estruture a personalidade, como deve ser feito esse processo e quando deve acontecer.

Tenho lido no Alcorão dos muçulmanos, no Catecismo de Igreja Católica Romana, no Código Canónico da mesma instituição, que a infância é todo o ser humano que nasce, cresce e começa a entender o mundo aos sete anos (Cânon 95 do Código referido, mais tarde transferido para o Direito Civil no Século XIX). Como se a aritmética fosse parte da reprodução da infância. Como se a contabilidade dos dias, meses e anos, fossem parte da educação ou um objetivo definido para moldar as emoções e a inteligência dos mais novos. O que não tenho observado com frequência, é o entendimento do adulto que orienta a geração seguinte pelos textos acima referidos, que esse adulto parece não conhecer; ou, se conhece, quer virar as costas a esse saber. Saber que impôs, na infância do adulto de hoje, um comportamento pesado e duro de hierarquias a serem respeitadas por sim ou por não, sem explicações. Porque estava essa hierarquia dentro da interação social, do convívio do seu grupo, dentro do seu contexto histórico. Penso que há uma contradição permanente entre o que adulto sabe desde a sua infância e o que deve fazer na época da sua suposta maturidade. Maturidade que defino como o entendimento das alternativas económicas perante recursos que dão ou não mais-valia para lucrar. Contradição que sintetizo assim: o adulto em criança, aprende na base do ensino da teoria religiosa do seu grupo social que deve ignorar a seguir no intuito de concorrer com o seu próximo. Esta contradição é entre as emoções solidárias e os deveres concorrenciais que permite um conforto na corrida entre os indivíduos do seu grupo. Um conforto definido como ser o melhor e mais habilitado, com maiores posses e alternativas do que o seu próximo. A contradição da qual parte a transferência de saberes, é entre amar e bater, comportamento esperado dos mais velhos. Mas, ai da criança que bata para ganhar! É punida. O adulto é definido como um ser concorrencial que manipula recursos; a criança é definida como a entidade aritmética que deve fazer o que o seu adulto diz.

2. A contradição

Definida assim, penso que devemos avançar para a base do comportamento. Aí há também duas alternativas: o ensino da teoria religiosa na catequese dos cristãos ou nos mandalas das escolas corânicas dos muçulmanos. As culturas cristãs, especialmente a Romana, dedica parte da atividade dos adultos a transferir a ideia da igualdade entre todos e de amor ao outro, definido como próximo ou irmão filho de uma mesma divindade criadora do ser. As escolas muçulmanas orientam para a aprendizagem decorada do texto sagrado, conforme o qual devem sempre agir de forma homogénea durante a sua vida toda. Para todas as crianças, o caminho fica traçado e não pode nem deve desviar-se do mesmo sob pena de exclusão do grupo social. Ainda que essa ideia seja manipulada mais tarde para obter os objetivos de vida que a sociedade globalizada manda: acumular bens de forma individual e em luta aberta com os outros e assim se ter uma vida sossegada e tenra…para si próprio. Eventualmente, tenra para os seus ou com os seus. As crianças são abafadas, assustadas por esta contradição. o amor é aprendido porque é ensinado, mas observa o adulto debater, bater, concorrer sem nenhuma gentileza carinhosa com o próximo durante os seus dias aritméticos da infância. Eis porque os pequenos se debatem entre eles qual é o pai mais forte do que o outro, um debate sempre presente, como tenho observado nos meus variados trabalhos de campo. O adulto não entra no mundo da criança para o entender e ensinar a perceber que há outros seres humanos que merecem a simpatia e a gentileza que os mais novos são capazes de dar. A criança observa a luta dos adultos sem ouvir da parte deles uma explicação dos motivos dessa luta. A criança precisa dessa explicação para se estruturar como ser humano coerente e lutador na sua vida adulta, não apenas, na sua vida infantil. A agressividade é um sentimento existente na raça humana, necessária de ser entendida pelos pequenos para aprender a usar as suas próprias armas intelectuais e físicas quando for preciso defender a sua auto estima, sua maneira de ser, sua família. O adulto tem o dever de entrar no mundo do mais pequeno para, desde os seus conceitos ainda não desenvolvidos, esse novo ser saiba que o mundo não é uma canto de paz e harmonia. Dever, digo, por causa do seu maior de idade estar a par da heterogénea forma da interação social. Dever, digo, porque esse adulto é um experto ou um perito nos debates, nas amizades e nas zangas dos seus pares. A criança luta por emotividade, o adulto luta com racionalidade. Racionalidade transferida embrulhada na emotividade da época aritmética que define a infância. Infância que aceita e acolhe o que o adulto faz se este, com calma e carinho, sabe fazer avançar para dentro dos seus interesses, a geração dos pequenos, ou a esse pequeno que vive em casa com adultos que até aparecem gastos do trabalho do dia e desejam silêncio. Silêncio que podem conseguir apenas se o seu interesse pessoal é considerado e, a partir desse interesse, ficar abstraído no seu próprio objetivo de vida. Se, com a criança, se faz um ritual para estruturar o seu tempo, com o saber permanente do mais novo de que é assim, para ser feito, enquanto sente paz e sossego por causa do ritual ser respeitado dia após dia. O que estrutura a criança, é a reiteração de uma forma de vida apoiada pelo adulto capaz de dizer onde é que está e para onde é que vai e por quanto tempo. O imaginário infantil desenvolve-se enquanto fica calmo dentro do seu mundo pessoal, por causa de haver calma dentro do seu lar. Calma possível enquanto o centro das atenções é esse ser e não a doença do adulto, a raiva entre esses adultos, a luta entre eles, ou a distância que ganham da geração que se educa ao observar aos adultos e entender que o mundo não está composto por seres humanos iguais, bem como pela diferença entre todos eles, ou em saber, ou comportamento, ou posses.

3. Saber religioso

A religião, seja ela qual for, é uma teoria que defina a interação entre os seres. É a teoria da cultura ou a forma de materializar as ideias que surgem da vida em sociedade. O comportamento naturalmente agressivo dos seres humanos que batem para ganhar, está regulamentado por eles próprios em teses de subordinação sucessiva. A primeira subordinação é para a Divindade que fez o mundo e deu a vida. A seguir, a subordinação aos ministros que gerem essas teses e definem uma cadeia de deveres entre pessoas, sejam judeus ou cristãos, gerem com os denominados dez mandamentos. Entre muçulmanos, a partir dos numerosos artigos do livro do Profeta Mohamed, artigos aceites à risca. As duas teses, a judaica cristã e a muçulmana, regulamentam o convívio, mandam respeitar as relações contraídas, obrigam a descansar, definem a propriedade da terra e os seus recursos, ditam as leis do comércio ou troca entre pessoas, avaliam igualdades ou desigualdades entre pessoas e bens. Nesta teorias, os bens em frente das pessoas, especialmente se esses bens são básicos para reproduzir o grupo. Entre os cristãos romanos, todas estas definições estão contidas no supra referido Catecismo. Catecismo que contém 2865 artigos escritos em 603 páginas. Trata, principalmente, de incutir a ideia da existência de uma divindade que garante a relação social solidária entre pessoas de diferente estrato social e de defender-se de qualquer outra ideia que não seja a que esse livro define. Não é por acaso que delimita e exclui pensamentos denominados totalitários, como as ideias comunistas, socialistas e algumas das denominadas capitalistas por serem ateias, é dizer, por definirem um agir social que não considera a Divindade como centro e motor de toda ação, na base de uma pretendida defessa da dignidade humana e de um pretendido bem comum que considera a greve como uma atividade pecaminosa pela rebeldia que implica à autoridade patronal, o facto dos trabalhadores não concordarem com os proprietários naturais dos bens. Naturais, por adquirição, herança, criação ou produção dos mesmos. Estas ideias são, saibam ou não, praticadas pelas pessoas, apesar de se definirem como entidades humanas desligadas da divindade e das práticas rituais. Sem darem por isso, as pessoas da cultura Ocidental vivem o que o Catecismo diz. Os muçulmanos são mais explícitos e agem pelo livro, citado para todos os seus atos e trocas. O respeito entre muçulmanos nasce do acreditar que cada indivíduo está a agir dentro de um saber compartilhado com outros. Os grupos sociais cristãos romanos, normalmente viram as costas ao saber criado no Ocidente, a letra escrita desse saber que acabam por conhecer na base de formas orais de entender os mandamentos dedilhados nos artigos do livro que define o convívio.

Este desdenhar a base do saber social, acaba por ser a contradição incutida no comportamento das pessoas. Se há monogamia, se há respeito pelos bens do outro, se há dias de repouso, se existe distância entre o meu e o teu -falta de cobiça -, se há comportamento ritual, se as pessoas tentam entender a seu trabalho e, para além do mais, trabalham pelo dinheiro ou pelo prazer de trabalhar, a raiz destas ideias reside neste livro sagrado dos ocidentais que acabam por desconhecer e agirem, às tantas, contra si próprios ao procurarem lazer e lucro de forma simples, direta e fácil. Sem jamais reconhecer que o seu saber, o seu entender, nasce da ideia bíblica explicada catequese ou, simplesmente, agidas no quotidiano. A contradição na transferência de ideias entre adulto e criança nasce do facto de desconhecer o fundamentalismo das teses religiosas. Os ocidentais aceitam ou rejeitam seres humanos, conforme as ideias que eles possam ter. Até o ponto de se dizer: tu não acreditas em Deus, mas Ele acredita em ti, não tens alternativa. É assim que começa o texto que comento: O homem é capaz de Deus. Ideia contra a qual muitos indivíduos que procuram maximizar  seus bens para serem ricos, rejeitam, mas que acabam por aceitar por causa de se estar perante um texto que delimita o afazer social para a sua conveniência, por causa de estruturar o processo de conduta social. O Ocidente passa a ser um povo fundamentalista que acaba por não conhecer a base escrita do seu comportamento, ainda que esse comportamento exista nas leis civis e de comércio que orientam o saber social. Uma forma triste de confundir um sentimento denominado e igreja, com um saber que as define. E que é transferido para os mais novos. Mais novos que acabam por não entenderem essa contradição fatal dos seus adultos: “Queira Deus…mas, deixa-me em paz que estou cansado”

O leitor sabe e tem a palavra. A minha, vai ficando por estas linhas, sem deixar de dizer que, nos dias em que vivemos, fala-se de ataques terroristas de fundamentalistas islâmicos sem definir o fundamentalismo terrorista dos que possuem a tecnologia que mata e escraviza, as armas nucleares e a falta de investimento financeiro para incrementar o lucro e sejamos capazes de ter trabalho, comer, pagar as nossas dívidas, guardando parte de esse lucro para nos divertir. Eis porque existe uma subordinação impossível da criança ao adulto. Procurada racionalmente pelo mais velhos, desentendida emotivamente pelo novo ser em formação contraditória.

Comments

  1. Raul Iturra says:

    Escrevi este texto faz um ano. Tem estado em espera desde o verão pasado para ser publicado. Agora que vejo que foi, ainda há outro pendente. Um livro mio apareceu no Brasil esta semana, estou a acabar outro. Ainda falta por publicar Passos Coelho e a NOssa Senhora de Fátima. Mal esteja publicado, vou començar a enviar textos e reintegrarme ao Aventar, por causa da simpatia que sinto por Ricardo Santos Pinto e a distância ganha com quem sempre me anda a acusar de mentiroso.
    Escrebi este texto com prazer. Era para Aventar, desiludido pela não publicação dos textos enviados e de um livro que enviei, parei. Quabdo puder ver Passos Coelho, retomo meu sítio.
    Cumprimenta a todos
    Raúl Iturra lautaro@netcabo.pt

  2. Li algures uma frase que o autor atribuía ao Corão e que reza mais ou menos assim:

    “Não procures que o teu filho siga os teus passos; segue antes tu os seus, pois dele é o futuro”

    Bonito.

  3. patriotaeliberal says:

    Raul Iturra,

    Prepare-se para que o ministro o “acuse” de “eduquês”….

    E também que a “Mena” Mónica o alcunhe de “filho de Rosseau”….

  4. Um rico texto. Desenovela desde a altura de olhares, como mais além das suas próprias potencialidades, uma criança fica sujeita iirremediàvelmente à circunstância de responder à necessidade dos adultos e projectos relacionados às suas conveniências, Adultos, que à sua vez despejam sobre ela comportamentos suportados numa estrutura já estabelecida e conformada, carregada de uma codificação já feita ao longo dos séculos e capaz de situar os comportamentos desde esse fundo escuro do sedimentoso pouso humano, com todas as suas deformações e contradições. Muitas vezes assaltam-me as palavras de Torga “pedras conjugadas do moinho cruel que me tritutra” nos mais diversos contextos, também neste da “subordinação impossível da criança ao adulto”.

  5. maria celeste ramos says:

    Interessante este tema da subordinação (e mesmo domesticação) da criança pelo adulto, começando por seus pais – esta semana estive com vizinha que tinha uma bela criança de 3 anos de olhos azuis de mar e muito vivos, fardado do colégio e engravatado e a morrer de calor (6ª foi um dia de calor insuportável e inesperado para a data) – e como adoro crianças e gatos e cães, brinquei com a criança – foi a sorte dela por alguns momentos e “não ralharam comigo” e não conseguiu, a criança, fazer ou dizer um único disparate – Acho os adultos bastante insuportávies e que têm um padrão de educação tão rígido tal que dizem constantemente onde vais, não faças isso, não digas isso +++ etc – não crescem como são e não desabrocham completamente, mas como os adultos imperativos que querem que sejm – e tantos que crescem mal só por serem “contidos numa forma tantas vezes rígida sem que a criança até aprenda por si que não fez lá muito bem isto ou aquilo” – Não é deixar que se torne selvagem mas creio que não se nasce selvagem porque somos o nosso genoma e o “ambiente” que tem mais influência de acordo com o “ambiente que se tem” – e vejo crianças infelizes – e vejo quase todos os dias (porque há muitas crianças desde babés a universitários no meu bairro) pais que gritam e mesmo que dão sopapos a quem nem precebe porque levou um sopaponem sabe sequer o que é um sopapo – o que não quer dizer que não encontre, igualmente aqui, crianças admiráveis (aqui há creches e colégios infantis) e nota-se a sua felicidade e alegria com os pais que os “deixaram crescer como flores delicadas” – educar assim é como podar um belo arbusto e fazer dele uma sebe talhada – que entretanto com o tempo dá ramos fora do contexto +++ etc

  6. maria celeste ramos says:

    PS- não domestiquei o meu gatinho – não faz um único disparate – é “uma pessoa” – deixei-o crescer livre e auto-regulou-se a crescer – quando alguém diz que tem os cortinados aranhados e desfeitos ou os maples arranhados – fico admirada – pois que nada disso sucede – apenas em pequenino adorava trepar às prateleiras das estantes – e até lhe achava graça – agora não o faz até porque já é tão grande que nem tenta – e já não dorme onde “pensei” que seria o lugar próprio – agora dorme onde quer e nem sei por onde anda – e sabe onde pode dormir – só adora subir ao parapeito de uma janela que tenho sempre aberta – reviro-lhe os olhos e nem falo – não é preciso – salta logo, pois sabe que não deve ter tal tentação num 5º andar – adora olhar a RUA – um gato gosta de estar à janela pelo que quando o chamo e não me responde já sei onde está – está a outra janela que está sempre fechada mas com abertura por onde gosto de sentir e ouvir o vento e a chuva, e lá está ele a cheirar o ar e como não cabe, fica-se a sentir o ar e olhar não sei para onde, não cabe e não pode cai, mas adora olhar nem sei para onde – e olha – ou deita-se mesmo em posição de esfinge depois de ter visto não sei o quê – ele é que sabe

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading