Algumas questões sobre a fé e sobre a sua falta

Nos últimos tempos, talvez por isto, por aquilo, ou por muitas outras razões, têm vindo a lume, aqui no Aventar, vários textos que envolvem a fé, a crença religiosa, a sua ausência, o ateísmo.

Por coincidência – ou talvez não – a afluência a Fátima este ano terá batido alguns recordes, segundo ouço nas notícias.

Eu, que não sou crente, nunca compreendi muito bem a forma como crentes e não crentes se tratam mutuamente, um pouco como se uns tivessem acesso a uma verdade suprema que os outros desconhecem em absoluto, uns como se tivessem a superioridade da fé do seu lado e outros como se o que lhes desse superioridade fosse a razão, em ambos os casos com a convicção mais ou menos profunda de que os outros são obscurantistas e os próprios iluminados.

Aparentemente – não sou versado em teologia – tudo começa pela interpretação de um mistério: o nascimento do universo, da vida, da existência. O mistério, esse, é real e permanece.

Não me interessa discutir aqui a história da religiosidade ou das suas instituições. O crente não é obrigado a carregá-la às costas a todo o momento tal como eu, português, não tenho que responsabilizar-me pela história do esclavagismo, pelas dinastias monárquicas, pela primeira república, pela ascenção política de Salazar. O crente, tanto quanto sei, é desafiado a percorrer um caminho interior e essa experiência transmite-lhe formas interiores de conhecimento. Tratá-lo como um obscurantista revela apenas ignorância. Hoje, quando milhares de peregrinos a Fátima regressam a casa, eu, não crente, penso compreender muitas das dimensões interiores da peregrinação.

Quero lá saber, neste caso, se Fátima foi fundada sobre um embuste, se a instituição enriquece ou não com as contribuições voluntárias dos crentes. O que me interessa, a mim que gostaria de fazer uma peregrinação (caminhada) de muitos dias e várias pessoas a Fátima, a Santiago de Compostela, a Alcoutim ou Torre de Moncorvo (o destino não é, para mim, o fundamental), é a experiência em si, vivenciada de forma múltipla, o sacrifício, a dor, o cansaço, o pensamento, as revelações interiores, o usufruto do mundo, a contemplação, a comunhão, a partilha, a suplantação dos limites, o conhecimento de mim, das minhas forças, fraquezas e dúvidas, o conhecimento da minha capacidade de tolerância, de aceitação, de maravilha.

Por outro lado, também não compreendo a visão que alguns crentes manifestam sobre essa entidade a que chamam Deus, um pouco como se de uma super organização de informações se tratasse, como um notário de tudo, sempre atento a cada ser, cão, planta ou mosca, sempre sabendo cada passo que se dá, sempre atento às súplicas de cada um, às velinhas que acende, às promessas que faz, à forma como as cumpre. Sem querer cair em simplismos, aflige-me a ideia de um ser atento e preocupado, a ideia de um ser cheio de compreensão e compaixão pela humanidade, um ser que observa a humanidade e cada ser criado. Trata-se um discurso que posso entender em sentido figurado -como se de uma imanência se tratasse, uma energia, uma radiação que tudo cobrisse – mas que encontro demasiadas vezes assumido de forma literal. A ideia de um Deus humanizado, à medida das necessidades humanas – assim como a imagem de um velhinho de barbas brancas no topo do universo – causa-me, essa sim, compaixão. Encontro, repito, esta imagem demasiadas vezes entendida de forma literal, até no discurso de pessoas muito cultas.

Repito a minha incompreensão pela hostilidade que sinto muitas vezes nas posições que crentes e não crentes manifestam face à fé (ou Fé).

Eu, não crente, reconheço infelizmente a minha falta de fé: não em Deus, porque nunca a tive de forma religiosa, mas na Humanidade, na Justiça Humana, na vivência do Paraíso na terra, na Louvação da Beleza e da Harmonia. Lamento por mim, que me tornei céptico em relação à natureza humana, mas respeito a esperança dos outros e a sua fé.

Comments

  1. maria celeste ramos says:

    Em questões de fé a conversa vale pouco – nem tudo é para explicar – senão nem é fé – é razão – e o coeur a des raisons que la raison ne connais pas (Pascal)

  2. Maria do Céu Mota says:

    Não devia haver hostilidade entre uns e outros. Antes respeito.
    Gostei

  3. Maria says:

    A Fé Sente-se, não se Explica…

  4. palavrossavrvs says:

    Belíssima reflexão. Na mosca.

  5. Uma análise, a meu ver, muito sensata! Gostei bastante!

  6. Ana Pinto says:

    Incongruente.O último parágrafo não tem sequência lógica.Não penso que acreditar na Humanidade,na Justiça,na Beleza,na Harmonia sejam conceitos relacionados com a fé.A Fé implica um conceito dogmático, não discutível, ou se aceita ou não.Os anteriores conceitos pertencem ao dominío da Ética e da Estética, por isso, só os homens e mulheres são responsáveis enquanto cidadãos pela sua construção num determinado tempo e espaço.Também não é certo que exista uma natureza humana, tal como os Iluministas defendiam.
    Os parágrafos anteriores mostram uma visão infantil da iconografia religiosa (barbas brancas, contablista atento), e penso que, está mais próximo de se tornar um crente que um descrente.As amarras não são tão invisíveis quanto pensa.

  7. Não vejo porque é que a fé tem forçosamente que implicar uma crença religiosa. O grande problema é que se atribuem às palavras (aos conceitos) significados que não têm. Quando alguém, por exemplo, se esforça em direcção à consecução de um objectivo e consegue alcançá-lo, está nitidamente a ter fé em si próprio! Parece-me a mim que a fé é muito mais um conceito racional, um atributo do indivíduo como a inteligência ou a força de vontade. Talvez quem não tenha fé em si próprio sinta necessidade de a ter em algo exterior a si, mas para mim, neste caso, essa fé não passa de um conceito imaginativo, oco e sobretudo cómodo ao transferir, ainda que inconscientemente, responsabilidade a um terceiro, já seja um deus, um santo ou coisa afim.

  8. Este é um tema que, como costuma dizer-se, dá pano para muitas mangas, uma por cada um que se dedique a pensar sobre ou discutir o assunto.
    Eu fui educado nos valores da religião católica e conforme fui crescendo e evoluindo na minha forma de pensar fui questionando muitos dos pilares da religião (seja ela qual for).
    Hoje continuo a achar-me uma pessoa com fé, a minha fé já que a fé é algo profundamente individual e não pode ser transmitida na sua plenitude já que, como referi, há sempre o factor pessoal da sua interpretação que permanece sempre intransmissível.
    Contudo apesar de manter a minha fé num Deus Criador e razão da existência do universo não posso equacionar rever-me numa qualquer igreja e muito menos na Igreja Católica.
    A fé é uma descoberta que se alcança ou não, baseada nas vivências e conhecimentos que cada uma adquire ao longo da sua vida. Essa descoberta leva-nos a questionar tudo e a derrubar os dogmas. Os dogmas são aliás no meu entender a primeira subversão da fé. As religiões desempenharam um papel crucial e agregador nas sociedades embrionárias e continuam ainda hoje a transcender as estruturas sociais das sociedades ditas modernas. O problema é que as religiões como qualquer organização estruturante da sociedade foram tomadas literalmente de assalto por uns iluminados que as utilizam para exercer o poder.
    As pessoas têm necessidade de ter um bastião último que lhes possa transmitir os valores e a que possam recorrer quando tudo demais falha. Sem esse bastião derradeiro a esperança morre e o resultado disso é o caos.
    Assim se explica o aumento do número de fiéis a acorrerem a Fátima este ano. Criticar ou condenar essas pessoas é não só arrogância como sobretudo ignorância. Cada um de nós vive no seu próprio universo embora se entrecruze com o de muitos outros. Ninguém detém a verdade derradeira, não reconhecer isso é, isso sim, sucumbir a um dogma perigoso. o da estupidez militante.

  9. Caro António Pinto Caldeira:

    Não o conheço penso que não conhecerei, a não ser que nos encontremos a caminho de Santiago, a pé. Eu, ateu, irei pela aventura, pelo caminho. Você irá pela sua enorme fé.

    O seu texto é um dilacerante exercicio intelectual de alguém que sabe-se lá porquê tem problemas em viver a sua fé. A igreja desencantou-o. Afastou-se do culto. Mas a fé, essa ficou.
    Isso leva-o a encontrar justificações para esse afastamento da Igreja. Não fosse o seu maldito sentido critico e tudo seria mais fácil. Depois vêm as confusões. Muitas. Quase tudo.

    A fé, na sua essência, nada tem de individual. A fé é a adesão a uma verdade. Única. Absoluta. Unificadora. Essa adesão é a mesma em todas as pessoas que professam essa fé. Claro que a sua vivência será diferente como diferentes são os individuos. A adesão, essa é igual em todos e acontece-nos por estarmos integrados numa comunidade especifica.

    Tem razão, a fé não é transmitida. É imposta. É colocada à força nas nossas cabeças quando o sentido critico é inexistente. E fixa-se lá como super cola. Pode depois a personalidade de cada um levar a escolher uns ou outros ritos que manifestem essa fé. Na essência ela não muda. Como tal a fé não é uma descoberta que se alcança ao longo da vida. Ela vive com o crente desde o inicio da sua vida. Na verdade ele nasce dentro da fé. Como tal não há derrube de dogmas. Os dogmas são os pilares da fé. “Creio em um só Deus, pai todo poderoso…” . Não se pode aceitar o Deus católico sem aceitar isto.

    As pessoas não têm necessidade da religião para receber valores. Os valores estão dentro delas. Foi aí que a religião os descobriu e os absorveu como seus.

    Quando tudo o demais falha a religião também falha porque nessa altura o que aconteceu foi a resignação. “Senhor ajuda-me a aceitar..”. Agora, antes de tudo o demais falhar a fé pode dar força para ultrapassar dificuldades? Sim, claro que pode. Como pode a família, por exemplo.

    Eu sei que o texto está pesado e algumas partes podem não estar muito claras. Mas o facto de estar aqui a apontar-lhe aquilo que na minha opinião são más leituras do fenómeno religioso (bom, vou ser menos pomposo – da nossa religião daqui de ao pé da porta), é só para realçar que elas evidenciam, aliás, todo o seu texto o faz, a luta de quem sente necessidade de assumir a sua fé, na sua igreja, mas tem dificuldade em aceitar os erros da mesma. Mas quanto a isso, meu amigo, as igrejas não refletem os deuses, mas sim os homens.

  10. patriotaeliberal says:

    Excelentes comentários resultantes do post.

  11. patriotaeliberal says:

    Ana Pinto,

    O “homem das barbas brancas” e o “contabilista atento” fazem-me lembrar, como terão feito lembrar ao autor do post, os fabulosos contos de Mário de Carvalho.

    “Ignotus Deus” e “In excelsum” ….e tantos outros

  12. Gostei da sua reflexão, embora não concordando com a mesma a 100%. Certo é que entre duas pessoas há sempre duas formas de ver e pensar a vida e, este comentário não visa expor a minha visão pessoal da mesma, serve sim para lhe recomendar a leitura do livro: Fé e Razão do papa João Paulo II. Mesmo não se assumindo como crente vai gostar.

  13. Caro Max,
    a fé é imposta! Ridícula afirmação, se a fé fosse imposta não o seria. Se com essa afirmação pretendia “criticar” o ensino da religião às crianças, não posso discordar mais consigo. Como pai (falo no colectivo) pretendo dar uma boa formação aos meus filhos, como tal vão á escola aprender a ler, escrever, álgebra, geometria, filosofia, e um sem fim de saberes que uma vida não é suficiente para concluir a aprendizagem. A religião a ética e a teologia deveriam quanto mim fazer parte da formação geral de todos (á semelhança dos países nórdicos por exemplo). Concluindo a “fé” é tão imposta como qualquer outro saber…

  14. MAGRIÇO says:

    Julgo, caro Gil, que a sua fé lhe tolda um pouco a lógica e na sua defesa usa argumentos pouco consistentes. Por absurdo, imagine alguém que, na sua formação para as coisas da vida, nada mais aprenda que os princípios e práticas religiosas: acha que estaria em pé de igualdade para, por exemplo, exercer qualquer actividade profissional com quem soubesse ler e escrever, quem dominasse bem as várias ciências, mas nunca tivesse tido qualquer formação no campo da religião? Nem na vida eclesiástica seria admitido! Admita, pois, que há saberes impostos que se justificam e há outros perfeitamente acessórios. As nossas escolhas nos caminhos da vida não devem interferir com a nossa capacidade de discernimento, ou arriscamos o ridículo.

  15. MAGRIÇO says:

    Certa vez uma aluna perguntava-me o que era a terracota. Antecipando a resposta, um aluno que ouviu a pergunta – por sinal alguém com muita dificuldade de aprendizagem – logo sentenciou: “ora, qual é a dificuldade? É uma terra muito velha!” É uma lei universal: os mais ignorantes e pouco inteligentes acham sempre que os outros é que são burros…

  16. Fantasticamente incisivo, caro Magriço! 🙂 No entanto, e dadas as circunstâncias, para alguns entendores não bastam as meias palavras…

  17. MAGRIÇO says:

    Tem razão cara Isabel! Mas sabe, sou de opinião que há pessoas com quem vale a pena trocar opiniões, mas outras nem por isso. E este espaço é óptimo para fazermos os nossos pequenos exercícios de psicologia…
    🙂

  18. Plenamente de acordo, Magriço! 🙂

  19. Caro Gil:

    Quando escrevi que a fé é imposta não me referia ao ensino da disciplina de Educação Moral e Religiosa Catolica. Até porque esta é facultativa. Referia-me ao facto de nascermos emersos num caldo cultural Católico ao qual dificilmente conseguiremos escapar.

    Quando nasci o modo de vida estava a mudar. A minha terra estava a deixar de ser uma zona agricola e estava a transformar-se devagar numa zona industrializada. A religiosidade era ainda muito forte. A igreja enchia várias vezes ao domingo, as confissões, o rezar do terço, todo o ritual religioso regia ainda a vida de muitas pessoas. Quase todos. Batismos, missas, catequeses, orações a todos os santos. Era este o mundo em que viviamos. Ninguém nos apontava uma pistola, mas há muitas formas de impôr. Claro que todos eramos católicos. Era o nosso mundo. Não havia outro.

    A sociedade está diferente agora e a pressão não é tão forte. Daí haver muitos mais resistentes. Ficaria no entanto bastante espantado se uma maioria de pessoas que cresceram num ambiente cultural católico se tornassem hindus.

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