Cenas do Meu Olho-da-Rua

O meu Olho-da-Rua é horrível, um ano lectivo inteiro a ensinar e a reunir em salas de aula-nave-espaciais, Escola intervencionada pela Parque Chular, quinze horas lectivas, um ano inteiro a deslocar-me fundamentalmente por minhas pernas. De autocarro. De Metro. Porém, a nenhum Olho-da-Rua poderei consentir me destrua, por isso determinei-me a transformá-lo num prado aprazível, moldável por minha mão. Conscientemente, sei que o meu Olho-da-Rua está sempre lá, mesmo quando trabalho e me entrego. Ele impede-me à partida alguns movimentos despreocupados, mínimas e médias despesas associadas à vida normal de um quarentão ou, vá!, de um europeu do sul: não fumo, não bebo, pelo que não há qualquer sofrimento por não poder comprar itens desses. Em que pensar? Tanto. O que fazer? Tanto. Aonde ir? Nem mais. Rua! Escritas aqui umas coisas muito livres e muito comentadas mas quase sempre e só no sentido de abater este escriba, rua, pois. O meu Olho-da-Rua inspirou-me a ir para a rua concreta. A minha rua. As ruas onde eu nasci e cresci.

É só transpor a porta de casa dos meus pais, nosso lar comum, e seguir. Acompanho-me das minhas filhas. Levo-as comigo porque passear é bom, porque querem imenso essa aventura em aberto e tão pura, porque há passeios seguros que nos preservam, apesar das tangentes dos carros e camiões que passam, porque há milhentas coisas novas para ver e saborear, treinados olhos olhando o Céu, olhando o Chão, olhando o Mar. Ontem, efectivamente, após um almoço muito leve, fomos pela primeira vez e foi inteiramente desprogramado. Aconteceu. O sol abrira. Acariciava-nos uma brisa húmida. Árvores gigantes, arbustos, flores, sorriem-nos, surdindo dos jardins e muros da minha terra.

A volta redonda que demos foi de duas horas em passo de três e seis anos, as idades delas. No fim, novinha ao colo, regressamos transpirados, sem ter corrido, felizes e sorridentes, sem ter um prémio de jogo, como Catroga, ou uma equivalência académica, achaque de uma espantosa geração de políticos que prosperou. Fomos. Voltámos. Cansaço redentor. E foi tudo graças ao meu Olho-da-Rua. O meu Olho-da-Rua «não pode ser um estigma, mas uma oportunidade». Dei por mim a reparar num tesouro antiquíssimo, íntimo, meu, ao olhar para elas que mastigavam, crepitosas, umas batatas fritas, um luxo. Seguiam atrás de mim, na berma. A pequenita atrás, a mais velha mais adiante, olhar pousado num cão vadio que as saudou. Dei por mim a sentir o que de melhor já senti quando fui menino belicoso e solto pela freguesia: a mais funda e mais despojada, selvagem!, entrega ao momento, momento de absoluta liberdade em trânsito, sem hora ou itinerário. Isto é valioso, quando tudo é angústia, cuidado, preocupação.

Na cozinha, sentámo-nos a beber água fresca, muito cúmplices e companheiros. Ainda mais.

Comments

  1. António Fernando Nabais says:

    Lindo, J.

  2. Uma delícia, caro Joaquim!

  3. Amadeu says:

    Gostei imenso. Este post já me valeu o dia aqui no Aventar.
    Já pensou que, se calhar, para si, ser professor é como andar a vender cassetes, no sentido de ser uma profissão em vias de extinção ?

  4. Gostei muito

  5. Belo texto. Luminoso. Apesar de.

    • palavrossavrvs says:

      Caríssima, obrigado. De facto, isto é um combate. Beijo.

  6. Boa Joaquim

  7. Gosto mais do que da Azealia. Muito mais!

  8. patriotaeliberal says:

    Bonito.

    Vou colocar 1 like.

  9. maria celeste ramos says:

    Mas que lindo – há quem diga que o poeta é maior quando fala de tristeza – ou quando a sente

  10. Já lá vão 15 anos, é algum tempo para quem já passou a melhor fase da vida. Sou um pai que viu a filha partir para leccionar numa ilha dos Açores porque por cá só lhe restavam as vagas dos colegas que por motivos pessoais não podiam dar aulas. Foi um momento marcante nas duas vidas. Nos dois primeiros anos tinha que ir a Lisboa buscá-la quando vinha cá passar as férias. A Sata ainda não fazia voos para o Porto e o avião chegava à Portela por volta da meia-noite uma hora. Na primeira dessas viagens de Lisboa para o Porto recordo-me desta frase que lhe saiu com a maior espontaneidade: “ já tinha saudades do cheiro da autoestrada”. Até aí nunca me passou pela cabeça que as autoestradas continham algo de bom para recordar, e odores…só de co2.
    O tempo foi correndo, de contratada passou a efectiva e a vida foi melhorando…como quem sai de uma convalescença.
    Continua a vir cá fazer férias mas… na companhia da minha neta e marido. De 15 em 15 dias, ás sextas ou sábados, temos 2 horas ou mais de conversa para acertar o “conta corrente”.

    PALAVROSSAVRVS, não estou bem certo se o que estou aqui a escrever é adequado, não é um comentário…será, talvez, uma pequena homenagem á vida complicado dos professores.
    O seu conto/poema mexeu comigo.

    • palavrossavrvs says:

      Pois o seu comentário também mexeu comigo, caríssimo António. Obrigado pela partilha. Tudo de bom.

      • Provavelmente os professores não merecem um país que parece não precisar deles.

        • palavrossavrvs says:

          Eu gostava de ter visto coragem de estrangular com desemprego profissionais do ensino depois, só muito depois, de intervir nas PPP, depois de acabar com motoristas e carros de luxo ao serviço da Administração Pública, pois não somos mais que os suecos; só muito depois de tanta injustiça e vício que vêm detrás e se aloja nos Governos. Ou nunca.

          Despedir professores é sacana: no limite, não se admitiriam mais. E pronto.

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