Amor em Tempos de Catástrofe

Definitivamente, a amargosa pílula-panorama nacional não se pode dourar. É transversal reconhecermos que, algures no início de Setembro, o Governo Passos rompeu unilateralmente um compromisso tácito e explícito com o Povo Português: havíamos aceitado abnegadamente a nossa quota parte de sacrifícios imprescindíveis para a saída rápida deste buraco monumental-colossal composto por dívida pública, por um défice galopante, a cada passo agravado pelo estalar ora dos juros altíssimos da própria dívida ora pelo início de pagamentos de negócios, contratos, PPP bombas-relógio deixados alegremente para trás em grande número pelos anteriores Governos, bombas suficientes para surpreendentemente tingir de mais incompetência a manifesta incompetência que quase todos atribuem a este Governo de Crise ele próprio em Crise.

A partir daí, o que avulta é um grave divórcio Governo-Povo, a percepção geral do relvismo mega-lobista em todo o seu esplendor baço, intercontinental, tacticista, politiqueiro, e a consciência de que o Executivo se encontra inapelavelmente cindido. Na medida em que, contra todas as promessas, Passos foi surgindo como mais do mesmo, no seu labirinto por cumprir o Memorando, com movimentos perros, dados muito a medo no corte da Despesa Pública, e o peito inflado de sádica ousadia na captação selvática de receita fiscal, muito mais legitimamente toda a gente, cada um de nós, vai enchendo a serena Rua da Liberdade Exasperada.

É preciso muito amor e extrema paciência para se ser português. Reconheço que só pode ser Vénus quem nos tutele, segundo a feliz simbólica camoniana, mesmo que Marte aflore, logo refreado nos seus ímpetos mais drásticos. No limite, o Amor perpassa-nos ainda mais porque nos constitui fibra a fibra, desde o princípio, desde as intuições iniciais do primeiro Rei, e não importa se Vénus se transmutou na Mãe de Jesus, é igual. Em parte, ele-Amor também explica que toleremos quase tudo e nos unamos apenas quando o copo das malfeitorias políticas, sempre cheio, transborda: posso testemunhar a enorme empatia e fantástico calor humano que se gera e cresce entre nós, cidadãos à solta, nestes tempos de catástrofe nacional. As ruas e praças do Porto, sempre que se enchem, estão repletas de Amor. Reconheço-o comovido numa raiva enternecida por cada paralelepípedo no seu lugar e cada vidro intacto.

A minha esperança derradeira é essa: que em breve um enorme sorriso de triunfo se nos acenda no rosto por causa deste resto de dignidade. E ninguém me insulte porque tenho na figura de um Rei talvez o pólo higiénico que, se quisermos, poderá absorver e reconduzir o nosso afecto disperso, o nosso Amor comunitário, a nossa esperança colectiva de ressurgimento e novo brio de sermos o que somos, Portugueses. Mudar é, tantas vezes, mera necessidade fisiológica das nações e depois vê-se. Temos de pensar nisto, digo-o eu, que às vezes sou uma besta, que frequentemente as palavras passionais me traem a pureza e autenticidade do coração. Eu, um manifesto imbecil na tentativa de salvar os cacos deste Governo, não por ele-Governo, mas por todos nós, há muito sem pé para rupturas levianas e retóricas-fóssil.

Comments

  1. Amadeu says:

    Caro fóssil
    O seu escatológico sonho pastoril de um rei papel higiénico que nos limparia os cús após a necessidade fisiológica de mudança é, no mínimo, cómica.

    Incapaz de ir mais além da excelente retórica, arrecua na história, delira com tempos idílicos que não voltam mais. Incapaz de ousar sonhar novos caminhos, prefere revisitar os becos poeirentos que a história há muito se encarregou de deixar para trás.

    A real mitificação atinge o delírio quando delega nos genes do primogénito duma qualquer família a solução de todos os nossos problemas. Sonha húmido com e seu amor real. Sorri de afeto para o seu futuro monarca …

    Bom. Vamos lá a saber. O que é que o meu amigo tomou hoje de manhã ? Logo de manhã, pá !?!!

  2. palavrossavrvs says:

    Não estou a ver outra forma de evitar a fragmentação nacional, Amadeu. Em todo o caso, suponhamos que estou bêbado: por que não plebiscitar a minha bebedeira amorosa?! Se o Regime o autorizasse plebiscitos destes, saberíamos, não é?!

    O certo é que opiniões como a minha estão sujeitas a um crivo e a uma secundarização pouco pluralistas, o que nos devolve à evidência de vivermos um enorme “atrasadismo” democrático com pouca tolerância ao diverso.

  3. Amadeu says:

    Caro Joaquim
    Qual secundarização pouco pluralista, qual enorme atrasadismo democrático, qual pouca tolerância ao diverso ?
    Plebiscite a plebe a saber se quer suas altezas, referende sim senhor, mas para tal tem que haver uma petição.
    Uma breve consulta às petições online para esse efeito ( há outras ?), verifica-se:
    Petição Pela Volta da Monarquia – 39 subscritores
    Petição pela Instauração de Monarquia Constitucional – 223 subscritores.
    Até a Petição Francisco Assis de Clio (para se ver o deputado a andar no novo Clio) tem mais subscritores , 584.

    As ideias monárquicas não têm a adesão dos cidadãos. Ponto final.

    Como evitar a fragmentação social ? Não sei. Só sei que não vou pelo rei. Mas talvez se pudesse começar com eleições para a AR com um único círculo nacional em que pessoas ou associações não partidárias pudessem concorrer.

    • palavrossavrvs says:

      Caríssimo Amadeu, ser minoritário demasiadas vezes não corresponde à destituição nem da Razão nem do caminho mais saudável a seguir. Recentemente, as maiorias eleitas revelaram-se-nos um profundo erro, porque altamente atentatórias dos nossos interesses.

      Insisto, está por provar que o Reino da Dinamarca mereça o caixote do lixo da História ou que os cidadãos dinamarqueses sejam dignos de piedade e desprezo, o desprezo que o meu caro Amadeu vota à simples ideia de mudarmos Regime em Portugal. No século XXI, tudo é muito rápido, incluindo a percepção do que, circunstancialmente, nos convém alterar a Forma de Regime, dada a caducidade e imoralidade da nossa República, dos seus partidos e de instituições amputadas e caricaturais como, por exemplo, a Procuradoria sob Pinto Monteiro.

  4. Maria do Céu Mota says:

    Caro Joaquim, só para chatear: lembrei-me do romance de G.G. Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera! A história de um amor que não desiste e que deu um belo filme!

    • palavrossavrvs says:

      Não está mal lembrado, caríssima Céu. Na verdade, pode ser que o Amor a Portugal, um amor tenaz, focado, sem amarras e sem politiquice, leve a melhor sobre toda a espécie de banho raivoso e ideologizante, incapaz de federar corações e mentes num só propósito nacional pacífico e próspero. Serenamente, perceberemos qual o caminho reformador, o único capaz de limpar o bolor acumulado pelo consórcio desastroso Partidos-Oligarquia Económica. Mais uma vez, Cristo Vivo terá de brilhar, coração a coração, sobre o Grande Egoísmo e a Grande Malícia de que se reveste parte do laicismo conveniente na Oligocracia despreziva das pessoas: nada como não conceber quaisquer peias morais na hora de rapar o Estado a expensas nossas. Foram décadas nisto.

      Um beijo!

  5. Amadeu says:

    Joaquim,
    Ou é impressão minha ou hoje você está um bocado baralhado ?
    Não sou contra a mudança de regime. Sou contra a mudança de regime PARA … monarquia.
    Faz confusão entre laicismo e falta de moral. Utiliza o velhíssimo argumento que a moral provem de deus e sem deus os homens são pouco mais que animais selvagens, esquecendo-se que na última metade do século passado e neste novo milénio as maiores selvajarias foram feitas em nome de deus.
    Utiliza o amor à pátria como motor da mudança. Esqueçe que cada vez mais a nossa pátria é o mundo e nossa raça é a humanidade.
    Enfim, envereda pelo misticismo bolorento, que não lembra ao diabo, dum cristo morto vivo, iluminador da luta contra eixos do mal republicanos e nacionais. Andou a ler as obras completas de George Bush ?

    • palavrossavrvs says:

      Amadeu,
      acho que é impressão sua. O laicismo é bom. Nada mais saudável que a separação Estado / Igreja. Mau mesmo é o laicismo segundo os seus tradutores portugueses em biografia, em actos e comportamentos comprovadamente rapaces: Mário Soares, por exemplo, é um rei sem coroa laico, um mito de rapacidade, o que, traduzido em regimentalês, quer dizer desastre, decadência, persistência em apodrecer a vida com palavras dissociadas das práticas e das prioridades pessoais. Se há alguém abnegado é Madre Teresa, que está morta. Soares é republicano, socialista e laico com os bolsos cheios de favor e excepção e nunca acabados de encher de favor e excepção.

      Ainda bem que o Amadeu e eu convergimos na ideia de mudança de Regime, mas para que o nosso jogo seja leal e aberto, conto que não tome por obsoleta a minha ideia minoritária. Não tomarei por tonta a ideia que tiver e ainda não conheço do que deva ser esse Regime Novo.

      Um Abraço Afectuoso e Fraterno!

      • Maquiavel says:

        Soares diz que é republicano, socialista e laico; na realidade será só laico (e daí…).

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