Às minhas solteironas

Esta semana partiu-se de vez a velha saboneteira de porcelana, já muitas vezes remendada com supercola, que andei a empacotar e a desempacotar nas mudanças de casa dos últimos 15 anos. Era um traste inútil que eu não queria deitar fora, como não quero deitar fora todos os outros trastes inúteis que me fazem lembrar gente que já não está. A saboneteira foi um presente de emancipação de uma das minhas velhotas, a Luísa, talvez a minha preferida, e era um pretexto para manter perto de mim as minhas velhas solteironas.

Acredito que toda a gente deveria ter uma velhota amiga. Parece-me um imperativo civilizacional, esse de cultivar uma relação longa, afectuosa, com uma velhota viúva ou solteirona, dessas que nos escolhem como sobrinhas ou netas ideais. Nem todas as velhotas solteironas têm que parecer-se com a Miss Havisham que o Dickens engendrou, aquela mulher que, tendo sido abandonada pelo noivo no dia do casamento, ainda muito jovem, nunca mais despiu o vestido de noiva, e chegou à velhice sepultada em vida em sua casa, deambulando como um fantasma com o vestido de renda amarelada, um espectro do que fora. Não, as minhas solteironas não se afastaram do mundo, sentiam-no ainda como seu.

Na minha infância tive muitas solteironas mas já não me resta nenhuma, a não ser a Luísa, que deixou de ser a minha Luísa quando o miserável alzheimer se instalou. Não me resta nenhuma das minhas solteironas, mas continuo a lembrá-las, às minhas queridas velhas que cheiravam aos sabonetinhos de alfazema da gaveta das combinações, que faziam a cama de lavado à sexta-feira e ouviam a rádio renascença (“O anjo do Senhor anunciou a Maria…”) e tinham uma senhora de Fátima que mudava de cor quando ia chover. As minhas velhotas chamavam-me “Carrelinha” e quase nenhuma conheceu o meu rosto de adulta, a não ser a Luísa, já sabem, a minha favorita, que não queria senhoras de Fátima em casa nem para boletim meteorológico.

Ensinaram-me certas coisas antigas e outras houve que eu não quis aprender. Acreditavam que à meia-noite aconteciam coisas más nas encruzilhadas e usavam palavras como “bulir”. Eram gulosas, gostavam de leite-creme e de rabanadas. Bebiam coca-cola às escondidas, como uma infracção que só a mim podiam confessar. A Rosa sofria do coração e temia que qualquer ruído – um camião na rua, uma porta que o vento fizesse bater com estrondo – pudesse causar-lhe uma morte fulminante. Morreu a dormir numa noite sem ruído, uma noite de fim de verão, morna e quieta, como ela haveria de gostar.

A Conceição era alta, magra, mandona e mazinha, mas chorava às escondidas quando via as telenovelas e alimentava uma paixão antiga pelo senhor Nacib. A Isaura, de olhos azuis e nariz de Cleópatra, ia para as termas tratar o reumatismo como quem vai para a Riviera. Passava semanas a preparar a partida, mandava-nos postais das termas, alimentava paixões entre os septuagenários locais. Com as minhas solteironas assisti, muito pequena, ao casamento do Carlos e da Diana, elas comovidas com a fábula tornada real, eu de boca aberta com o tamanho da cauda do vestido. Não chegaram a saber como acabou essa história, e ainda bem.

O mundo já não as lembra e a Luísa já partiu sem ter partido, deixou o corpo para trás como uma bagagem extraviada, mas eu não gostaria que elas fossem esquecidas. Sem filhos nem sobrinhos que as recordem, fiquei eu, já sem o pretexto da saboneteira, e as memórias das minhas solteironas.

Comments

  1. Eu despi o vestido de noiva e ainda não tenho alzheimer. Também não oiço a rádio renascença nem tenho esses tiques todos. Estou disponível para todo o serviço de tia solteirona. Mas não te vou dar outra saboneteira.

  2. Se for com o coração, podes. Mas se me chamares “tia”, não.

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