No meio do Nada, Eu e o Meu Vírus da Felicidade

Já me deprimi. Já me envenenei de ressentimento. Pelas desventuras nacionais e minhas, já culpei Sócrates, Cavaco, a mim mesmo, o Diabo a Quatro, mas há actores e responsáveis de quem não gosto, os quais, pelo seu egoísmo, hipocrisia e dormência, tenho de verberar e verbero mesmo. Hoje, entendo a escrita quotidiana no PALAVROSSAVRVS REX e no Aventar como a minha luta por um novo Portugal. Progrido por tentativa e erro. Erro muito, mas não é possível que erre sempre.

Tenho 42 anos. Laboralmente, desde 1996, nunca tive paz. Nunca tive certezas. Nunca fui sendo senão precário e pontualmente desempregado. Correr todos os dias os meus dez quilómetros bordejando a minha praia, ajuda. Ler ajuda. Viver da família, para a família, ajuda. Estar de alma e coração com a Mulher e as Filhas, Irmãs, Cunhados, Sobrinhos, e os Pais Amados, ajuda, todos, aliás, cada vez mais amados, cada vez mais solidários e, se isso é possível, mais próximos. Estar em casa pressupõe não gastar dinheiro. Nada. Pressupõe privilegiar muitas vezes uma ou duas boas sopas e nada mais. Acho que correr como um cavalo ou um galgo ou uma avestruz a qualquer hora do dia ou da noite os meus cinco mais cinco quilómetros, decisão tomada há três meses e fielmente mantida, devolveu-me um vírus que inconscientemente havia recalcado desde os meus catorze anos, como se camadas e crostas de rotina e habitualidade se soltassem do meu couro: o vírus de um certo messianismo relacional, coisa benigna, fonte inesgotável de comunhão com a Humanidade e concretizada coração a coração. O que é esse meu messianismo relacional? Uma inclinação fortíssima para o outro, seja ele um velho conhecido, um vizinho, seja alguém acabado de conhecer: estabeleço empatias imediatas e fortíssimas com as pessoas de sempre e com as que vou conhecendo, embora nem todas tenham os olhos abertos e o coração pronto para compreender o que é este sorriso que ostento e quanto menos razões para sorrir, mais sorrio e mais acolho venha quem vier autêntico, fraterno, humilde. O meu olhar fixa-se neles. Os meus ouvidos bebem as suas palavras e partilhas de vida.

Eventualmente, a cumplicidade firma-se e transforma-se num abraço fraterno, sincero, forte, quotidiano, euforia do encontro com o outro por ser plenitude, por ser a verdade, por ser o centro realizador do ser humano. Corro a abraçar o ceguinho aqui da freguesia e a trocar umas palavras de bênção e bem-querer com ele. Estou assim. Lembro-me que, com catorze anos, qualquer coisa como isto irrompeu em mim de um modo absolutamente transformador e irreprimível. Simples e humilde, este messianismo nada tem de narcísico.

O meu olhar repousa efectivamente no outro por ele mesmo, ele-mistério, ele casa-tenda onde Deus também é centelha e cintila. O olhar é quase tudo, revela tudo, neste meu vírus messianismo relacional. Olhos nos olhos, explicar-te-ia isto de um modo perfeito, leitor, ao apertar-te a mão. Ao abraçar-te. Ao varar-te num relance coruscante. Se isto é doença, faz-me feliz. Se isto é doença, não quero ser curado.

Comments

  1. Margarida Alegria says:

    Que dizer perante estas palavras?
    Comovi-me, claro, mas isso não basta.
    São situações como esta que me deixam cada vez mais perplexa e… revoltada também.
    E é com um nó na garganta que me resta retribuir o abraço. Nem sei que mais dizer, eu habitualmente de muitas palavras,,,
    Muita força para ti e para os teus, “Joshua”!
    Beijinho

  2. Margarida Alegria says:

    Curioso como há largo tempo não passava por aqui e fui logo dar com este post… 🙂

  3. um grande, enorme, sorriso fez agora parelha com lágrimas que, atrevidas, não pediram para descer. que tristeza feliz; que felicidade triste. congratulo-te pela tua alma, cada vez mais precisa-se de almas assim, tão sensível.

  4. Nuno Valério says:

    Caríssimo escriba,

    O meu olhar repousou na placidez, na concórdia harmoniosa das suas palavras, e permita-me que elogie da forma mais contemplativa o uso nesses seus contextos do “messianismo relacional”. É por textos como este e será por concretizações consequentes que eu progrido e progredirei na leitura dos escritos da sua pena.

    Com os meus melhores cumprimentos

    • palavrossavrvs says:

      Meu caro Nuno, antes de mais, perdão por quanta estupidez, passada e eventual, também sou capaz. Sinceramente.
      Quanto a tê-lo por meu leitor, honra-me por demais.

      Um Abraço.

  5. Viriato says:

    Caro Joaquim,
    Leio os seus textos com regularidade. Às vezes repasso a leitura para compreender melhor o que quer dizer porque as suas palavras são profundas-vêm de dentro de si mesmo. Tem o meu Respeito.
    Todos nós deprimimos, tem raiva de tanta maldade lançada sobre os nossos dias.
    Sim, a família é a pedra angular para quem se entrega ao outro-próximo.
    Deus o ajude. Deus nos ajude.
    Um abraço de Paz deste Ser humano que o conhece pela sua escrita.

    Viriato

    • palavrossavrvs says:

      Obrigado pelo comentário, caríssimo Viriato, primeiro nome também do meu Pai. Sinto-me profundamente acalentado pelas suas palavras benevolentes. Um grande abraço.

  6. Amadeu says:

    Obrigado pelo lindo texto, Joaquim.
    Um abraço sincero.
    Como eu gostava de saber/poder ajudar-te …

    • palavrossavrvs says:

      Caríssimo Amadeu, um grande abraço.
      Vale por tudo.

  7. António Fernando Nabais says:

    Continua doente, por favor.

    • palavrossavrvs says:

      Nando, sabes que te leio com paixão e regularidade. És mais uma excelente razão para continuar doente.
      Tu és, tens sido!, simplesmente fantástico, mordaz, brilhante, certeiro, nas tuas-nossas causas comuns, nas tuas postas. Todas. E não o digo por seguidismo, menos ainda por lisonja, pois não é por não concordar contigo algumas vezes que te admirarei ou subscreverei menos. Enfim… És dos tais corações com muita luz e humanidade dentro: se eu fosse uma pilha a electrofraquejar, ficaria recarregado só por te estender a mão, quanto mais por sorrir correspondendo teu habitual sorriso largo, que é todo um Manifesto.

      Prometo-te que… piorarei. eheheh

      Grande Abraço!

  8. Maria do Céu Mota says:

    Obrigada por este momento de intimidade com os leitores do teu post. “Erro muito, mas não é possível que erre sempre”. Todos nós erramos muito, mas também acertamos! O teu post é certo, porque é sincero. Digo como o Amadeu : quem me dera poder ajudar-te.

    • palavrossavrvs says:

      Querida Céu, na medida em que estás, em que escreves, em que és como e o que és!, proporcionas-me imensas janelas de Belo, Benigno, São. Um post teu é, por vezes, a abóbada de mosteiro sob que descanso e me extasio dado o excesso de luz.

      Não sabes fazer outra coisa senão cristificar a tua escrita, o que me alimenta e certamente a quantos te lêem. Haverá maior ajuda que essa?

  9. Júlio says:

    Quando era pequeno (tenho 37) a minha humanidade também era muito maior. Hoje, perdido no dia a dia, na luta por um nível social ilusório e reles, olho para mim e não gosto do que vejo…o teu texto fez-me ter um relance do que todos deveríamos ser. Mas será que há alternativa?

    • palavrossavrvs says:

      Acho muito difícil, Júlio, enternecermo-nos verdadeiramente uns pelos outros sem sofrimento, sem um sofrimento-calo, um desalento-habitual e sobretudo sem o dom de ser criança sempre. Quem o faz, aberta e ostensivamente, quem se enche de boa-vontade, benevolência, disponibilidade para os outros, é, por isso mesmo, olhado por eles deveras com uma curiosidade que roça a visita a uma relíquia ou a uma peça de arte raríssima. Recentemente, senti isso, na sala de professores e na rua, mas sem mudar as disposições eufóricas e abertas com que me atirei ao convívio e ao encontro dos outros.

      Não chega querer mudar os olhos pesados com que nos olhamos e olhamos pesada e desiludidamente os outros. É preciso qualquer coisa mais, um despojamento, um abandono, qualquer coisa sobre o que, por mais que escreva, não consigo traduzir para lhe fazer justiça. Sei que é quase como morrer ou mergulhar sem tomar fôlego: atirámo-nos, deixamo-nos ir, esperamos o milagre de nos entendermos na mais plana e simples humanidade. E ele acontece.

      Sei somente isto: acontece-me encontrar no olhar das pessoas de quem me abeiro [dos amigos, dos conhecidos e dos desconhecidos, todos, enfim, aqueles que o dia a dia me traz] acontece-me encontrar neles tudo de que precisava para compreendê-los a partir do mais fundo de mim e, em retorno, ser compreendido ou sentir-me compreendido, numa fracção de segundo que seja. Esse encontro não tem objectivos. O único objectivo é acontecer o Encontro de corações, a partilha de vida.

      Todas as minhas lutas por normalidade e dignidade de vida redundaram em Zero. Não tenho lata nem paciência para mais que isto porque já não creio haver mais que isto, pelo menos para mim que não tenho cartão partidário nem nome brazonado. Sobreviver já me parece esplêndido e se mantiver a minha alegria irrealística, a minha felicidade sem fundamento animal-citadino, só com este fundamento messiânico-espiritual e convivial-messiânico, é prémio.

      Aceito o que me acontece. Óptimo se detecto todos os dias uma explosão de amizade, um aperto de mão, qualquer coisa de bom por alguém que eu possa fazer, contrariando a inércia do meu confortável escondimento.

      Desculpa, Júlio. Ardem-me os olhos. Espero ter-te ajudado. Tentei ajudar-me a perceber isto que vou redescobrindo em mim.

      Um Abraço.

  10. São palavaras sábias e agradáveis de ler. A maior capacidade do ser humano é a de superação. Gosto de o ver trilhar este percurso, mais empático e menos ressentido. Por muito que às vezes nos pareça, o mundo não termina já, há sempre lugar para a esperança. Retribuo com redobrado vigor o abraço que senti no seu post.

    • palavrossavrvs says:

      Meu Amigo Fernando, sei que haveríamos de rir muito em conversa e talvez se nos humedecessem as pupilas com qualquer coisa de inesperado, solto pela palavra afável, algo que só a vontade do bem, do melhor para o outro, o arqueológico [porque ausente do léxico de consumo diário, mas não menos fundamental] Próximo, pode abrir e conceber.

      Gratíssimo pelo seu comentário.
      Um Abraço!

  11. Carla Romualdo says:

    se é doença, os sintomas valem a pena. Espero que a situação melhore em breve mas o vírus se mantenha. Óptimo texto

    • palavrossavrvs says:

      Obrigado, Carla. Estou em modo «terra arável» e ao mesmo tempo «sou o meu arado». Tudo está em aberto. Óptimos textos são invariavelmente os teus, fonte de inspiração e uma porta sempre aberta para o Belo, minha-nossa janela, minha-nossa varanda.

  12. “A primeira coisa coisa que um escritor deve aprender, é a arte de transpor o que sente no que quer fazer sentir. Ao princípio, é por acaso que o consegue. Mas em seguida, é preciso que o talento venha substituir o acaso. Há também uma parte de sorte nas raízes do génio”.

    A reflexão é de Albert Camus. Trouxe-a aqui, por achar que o palavrossavrvs tem a arte, o talento e o génio para a palavra.

    Que esse vírus siga fecundando leccionadores instantes plenos de riqueza imaterial.

    • palavrossavrvs says:

      A minha querida leitora Alexandra deixa-se perdido, com o comentário que aqui faz repousar e que agradeço, tão amoroso.

      O que é certo é que tenho uma vontade de insistir no processo de escrita como um exército de formigas sulca em bloco o seu carreiro pela selva, após saque suculento, repleto de presas: gafanhotos, folhas, térmitas, escaravelhos, pequenos mamíferos, tarântulas, tudo o que mexe!, tudo devidamente desmembrado e levado às costas ao conforto instável do lar. A vontade desse exército é maior que a do touro que visa o capote. Assim me vejo, todos os dias, ao achar que escrevo, ao partir para a escrita.

      Esta imagem apenas para dizer que estou nessa empresa teimosa e interminável de verter na palavra quanto haja no meu coração que valha a pena, na minha sensibilidade e seja verdade, nos meus nervos e soe puro, límpido, nervos que hoje, confesso, sinto extremamente vibráteis a uma realidade pessoal e nacional ponderosa, repleta de incerteza.

      Se, no meu formigueiro, touro que visa teimoso a mancha sanguinolenta de um pano, eu pudesse ao menos realizar-me e com todo o ‘fingimento’ artístico que Pessoa sintetizou!

      Se a minha querida leitora Alexandra gosta de mim tal qual escrevo, já está a valer bem a pena.

      Um Beijinho!

  13. Júlio says:

    Fiquei sinceramente emocionado, o que para o meu craneo calcificado é muito, muito. Algo me diz que só há uma forma de, espero que daqui a bastantes anos, olhar para mim, olhar mesmo, e ficar satisfeito com o que verei: ir por um caminho como o teu, ficar doente! Contagia-me, contagia por aí. É preciso.
    Abraço.

    • palavrossavrvs says:

      Abraço, meu caro. Não posso/podemos perder esta frequência e chego a temer recair em qualquer coisa como passividade e a impassividade perante o supremo deslumbramento de encontrar uma Pessoa em cada Pessoa. Ando tão embebido e ainda mais embevecido neste amor!

  14. Júlio says:

    Ah, temos algo em comum: a corrida. A correr sou feliz!

    • palavrossavrvs says:

      Corro por norma em direcção ao Poente e de volta, num circuito ao contrário dos ponteiros do relógio, exactamente quando o sol se vai entranhando no Oceano ou já se pôs e se recorta, crepuscular, um horizonte róseo-verde-azulado, indizível. O Ocaso é, de dois, o segundo momento caprichoso e divino do dia, para mim: aquela luminosidade esmaecida e preciosa só pode ser Mensagem. Já me apaixonei pela Mensagem. Não ouso dizer o que sinto pelo Mensageiro.

      Hoje corri com uma Lua monumental emergindo do Nascente, no regresso.

      Os dois primeiros quilómetros e meio são-me passeio, os restantes, uma saborosa agonia, grande exercício de humildade, recontro com a minha mortalidade. Quanto mais corro, mais quero correr.

      Daí que, por impulso, corra também noutras horas do dia ou da noite, em duplo, em triplo, horas menos místicas ou com a sua mística diferente. E, sim, tal como tu, Júlio, ao correr reforço o meu vírus feliz, desnudo a felicidade de um corpo no seu suor, corpo que arfa, que arqueja, anseia pelo inefável, ainda mais pronto para o Encontro com os meus semelhantes.

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