Almoço Aventar, Epifania do Outro

E, levantando-as do chão, a Maria Celeste deu-nos folhinhas de choupo, recordando como a sua forma é a de um coração, cor, cordis, cordata.

Ao princípio, nunca se faz a menor suspeita de como a palma das nossas mãos e a amplitude dos nossos braços desabrocharão perante a epifania do outro que não conhecíamos, do outro já conhecido. Tudo parece incerto, ou tolhido de ansiedade ou sem quaisquer expectativas que contrastem com a banalidade habitual de se estar vivo e haver vagamente gente que passa ao largo, dia-a-dia. Há quem acalente antecipadamente a alegria do Encontro agendado. Há quem albergue uma migalha de medo, talvez insegurança por causa desta tenda de carne onde moramos, batida pelo sol dos anos, vergastada pelos aguaceiros da dor inescapável. Depois, sem peias, sem reservas, sem barreiras, milagre da comida, sortilégio da bebida, vontade-árvore de dar tudo sem esperar nada, o almoço transfigura-nos e o afecto faz-se torrente, esporo de pólen da Elaeis guineensis, inseminando de milagre e de anti-acaso o estarmos juntos. Tudo concentrado numas horas de nada. Gargalhada daqui, aceno dacolá, um sorriso, um brilho bruxuleante no olhar acalentado pelo brilho no olhar bruxuleante. Falo por mim e, ouso-o!, falo pelos demais amigos do Aventar, ontem, na adega do Casino da Urca, a um passo de Santa Clara-a-Velha: se éramos corpos, ficámos corpo. Mais corpo.

«Mais um copo, Fernando!» «Bela jeropiga caseira, Jorge!» «Não poderia deixar de me fazer acompanhar das minhas filhinhas e da mulher! O Ricardo, igual.» «Vamos no Cozido à Portuguesa.»

O tempo trai-nos. Por ser fugidio e não haver como descarregar todos os ficheiros de quanto somos no âmago, queremos dizer-nos tudo ou ouvir tudo de todos na fracção infinitesimal de um segundo.  Só crianças se entregam assim e se partilham assim, numa avidez desmedida, sorte a delas e a nossa, se lhes semelharmos. Pensámos nos aventadores que não estavam. Espreitávamos o que aventavam.

A Maria Celeste esteve connosco. E o que eu nela vi foi grandioso: viagem que fala de si, da Itália ao Amazonas, encanto que pulsa com a vida, com a arte, com o cosmos, com tudo o que Portugal tem de único e admirável. Conversar com a Maria Celeste, abraçá-la, beijar-lhe a fronte muitas vezes, comover-me com ela, rir e pasmar com as descobertas e reflexões dela, recordou-me o quando éramos todos meninos e passávamos certamente toda a tarde a brincar e a interrogar-nos. Às vezes o nosso buraco de adultos é inconfessável, no seu deserto de presenças, e mesmo intransponível, até que a insistência muito além de cordata de alguém nos estende a mão para ressurgirmos à luz. Foi assim comigo. Foi assim, sem dúvida, com a Maria. Mas eu sabia bem ao que ia. Ela, talvez não inteiramente. Esvaiu-se-nos a tarde, fomos felizes mesmo em rebelia contra um tempo impiedoso de tão apressado.

Tanto mais teria eu de pincelar acerca do José João, do seu humor e narrativas; do Fernando, simpatia que incarnou e se fez homem; da neo-aventadora Teresa, espirituosa como poucas; da astuta e bela Carla; da meiga e vivaz Céu; da maternal Noémia; da Lourdes maternal, mulher que eu amo; de todo um grupo sob o deslumbramento das nossas quatro meninas que brincavam por todo o perímetro. Nem faltou um forte abraço à gente boa que tão bem nos acolheu e alimentou. Enfim…

Não, não há palavras!

Comments

  1. bazert says:

    – Bom dia.
    – Ah… Ups… Bom dia.
    ( Tu concentra-te, Maria Teresa, há prái uns 20 anos que não andas por estas bandas e na volta conheces o gajo e não te lembras ou então as gentes aqui do norte são simpáticas e tu já não estás habituada a levar com um bom dia de quem se cruza assim contigo no passeio e o gajo até era bem apessoado, parecia o outro, óculos e tudo, mas lá estás tu a pensar em quem não não se faz chegado, mas que são parecidos lá isso são, macacos me mordam que sou nova aqui e não posso dizer outra coisa para não assustar esta gente, tu concentra-te, o Casino da Urca é já já ali e não sabes o que te espera se bem que não esperas nada qu’eles dizem que já lá estão todos e tu estás atrasada, inda pensam que foste ao cabeleireiro e essas coisas que as gajas fazem, ‘tadinhos, sabem lá a tua vida, atar e pôr ao fumeiro que não é na tóilete que perdes tempo nem que seja para um almoço d’aventadores que não conheces e que s’a lixe, já estás aqui estás agora que seja o que o vinho quiser)
    – Olá Rex. Gostei de te conhecer mesmo que te tenha conhecido quando ainda não sabia que tu era o primo dos Flintstones e obrigada por essa coisa do espirituosa mas, sem te querer assustar, eu estava era bem disposta por causa do sol.
    (caraças, falo que me farto).

    • palavrossavrvs says:

      Simplesmente hilariante, minha querida Teresa. Não sei se o napalm fiscal existe, mas uma escrita-napalm, sim. A tua. Adoro a tua loucura e suspeito os respectivos estragos, ehehehe. O vinho quis e entre risadas e bocas sonhadas, fomos muito bem no que nos nasceu na testa: um par de binóculos para o efeito surpresa que há nisto tudo.

  2. Ricardo Santos Pinto says:

    E eu, caralho?

  3. Porque raio é queu num fuie?

    • palavrossavrvs says:

      Pois é, José, isso terá de ser corrigido ulteriormente! O vício está entranhado.

  4. Carla Romualdo says:

    estou para saber quem foi a gaja “astuta e bela” que apareceu a dizer que era eu. Só podes estar a gozar, ó Joaquim

    • bazert says:

      ‘Tá nada, inda hoje, e eu sou gaja que não tem queda para gajas só porque sei o que sou e o que deve dar trabalho aturar outra gaja,,estive a pensar que dava o aventar e cinco tostões para ter assim um cabelo como o teu.
      (Credo, isto é tão gaija…)

      • Carla Romualdo says:

        gaja, eu que me vejo sempre despenteada, digo-te: isto ainda há-de ser o princípio de uma linda amizade

        • bazert says:

          And we always have Casino da Urca, gaija.
          (tu não sabes mas eu sei que um dia ainda te conto uma história e não, não é a do Casablanca mas a do belga que tinha, e tem, uma namorada que é puta de papel passado e eu roo-me por isso. Não por ela ser puta mas por ser feia mais feia que eu mas eu e ele always have Tunes. E agora queres saber a história mas eu disse, e está escrito, um dia…)

          • Carla Romualdo says:

            pois quero saber. Está escrito e um dia eu lembro-te, até lá não faz mal, sou uma gaja paciente e um bocado a puxar para o perdigueiro

    • palavrossavrvs says:

      Não, Carla. É verdade. Serve para ti o que me diz a minha mulher muitas vezes, quando tomo banho, [ehehe] depois do respectivo nomeadamente e bem farejado todos os dias: «Tu não é gato! Tu é gatíssimo!».

      Pois muito bem, Carla, tu não é gata! Tu é…

      O «astuta» também ’tá na cara! I rest my case.

  5. maria celeste d'oliveira ramos says:

    Hoje não vou responder – estou comovida demais com o que aqui está escrito – O aventar de sorriso doce de criança que me veio buscar a casa para eu ir sem espectativa mas também sem cuidado, ainda bem que fui assim e que fui despojada e sei que ganhei toda a riqueza que pude apreender e hoje mesmo velhotinha afinal estou mais rica e a vós devo a descoberta de mais um bocadinho de mim que andava sem poder exprimir-se porque as nossas conversas são com Deus ou apenas com quem mesmo não se sabendo que existem, nos aparecem nestes felizes e inesperados acasos e nos “ouve” – bem haja – vou comer mais um bocadinho do nosso almoço que “roubei” a todos e assim de outra forma prolongar o que foi não apenas uma refeição em comum, mas alimento que há muito não tinha (Paz em Timor depis de 17 anos o Lusitània Expresso levou um mês a chegar a Timor e impedido por D`jakarta – estão a dar docimentário que nunca foi mostrada embora as imagens do Lusitánia Expesso viesse em todos os jornais do mundo o que acabou r dar noticícia para o mundo inteiro – RTP1- 22:10H) forma cruel de ganhar a independência- out Clintou falou

  6. maria celeste d'oliveira ramos says:

    Aventares – se aventámos desta forma se calhar de forma mais inesperada do que planeada, um bocadinho depois do equinócio de outono, porque esperar tempo demais e aventarmos lá para o equinócio em que “por amor tudo recomeça” e ver de onde vem o “oiro” das folhas que todas se dão na sua função e perfume e ainda sobraram para atapetar o chão e, apenas com uma só, desta vez sim, inesperadamente, um aventar lhe viu talvez mais do eu eu que amo as árvores, e se inspirou e escreveu este belo texto e, antes que eu vá, como as folhas, caindo da árvore-mãe e me fine, pois nunca se sabe quando “alguém” me chame e tenha de ir mesmo que não queira porque já me sinto na linha da frente da grande despedida – Além de que gostava de vos re-encontrar sem nada repetir mas apenas deixar acontecer e renovar aquela alegria simples de quem não a perdeu ainda e eu guardei sempre porque faz parte de mim mesmo sem a melhor ocasião para que se liberte – adoro-vos aventares só pelo que me fizeram sentir e permitiram ser- mesmo sem terem feito “nada”

  7. E eu, a 300 km de lonjura…

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