O devir histórico (7)

Continuando.

Existe um perigoso sentimento que tem atravessado séculos da nossa história. Com maior acuidade e gravidade durante o Século XX até aos dias de hoje. De maior acuidade e gravidade, porque foi durante o Século XX, até aos dias de hoje, que se consolidaram as ideias e os conceitos de justiça, de cidadania e de dignidade da pessoa humana. Esse perigoso sentimento é o da impunidade. Mercê de razões conjuncturais díspares, a verdade é que desde o regicídio, passando pelos hediondos crimes de tortura e de sangue do Estado Novo, até às delapidações da riqueza nacional e do fomento do fatal endividamento que se sucederam em plena democracia, existiu um fio condutor: impunidade. Tal sentimento é dos mais desgastantes e corrosivos para a moral de um povo. Porquanto enraíza sentimentos contrários aos da ética e da responsabilidade. Ao ponto de se desvalorizar a seriedade e aplaudir-se a audácia. De se descredibilizar a inteligência e de se louvar a esperteza. Bom, não é ser-se sério e inteligente. Bom, é ser-se vencedor, não importa como. É ter sucesso. E, assim, a mentira entrou nas nossas vidas, nas nossas, casas, nos nossos projectos. A mentira para conquistar votos, para se chegar ao poder, para se conseguir o que se quer sem esforço ou mérito. E, assim, se afastou o mérito das nossas profissões, das nossas escolas e dos nossos desejos. O mérito não abre portas. A mentira, abre. Pelo menos o tempo suficiente para se alcançar outra porta. Porque este é o resultado natural de sucessivos episódios de se ver que quem roubou, mentiu ou matou ficou impune. Todos, eles, notórios casos de impunidade. Sim, notórios. Não é o roubo de esquina, a morte passional ou a pequena burla. É a impunidade dos crimes nas esferas das elites. Aquela que descredibiliza a Justiça, aos olhos do povo, porque firma duas Justiças: para pobres e para ricos. Algo que, só por si, é inadmissível. A que é, também, a pior impunidade de todas, porque inquina a hierarquia do exemplo, porque o exemplo que vem de cima, é o pior. E pior, ainda, quando contraditoriamente acompanhada de retórica evocativa de princípios éticos, de respeito, de direitos e de morais. Pior, porque o mau exemplo conspurca os valores apregoados. Pois que pior destino se pode dar a ideais e conceitos éticos, do que prostituí-los ao serviço dos seus antípodas?

Comments

  1. António M. C. Carvalho says:

    Continuo a comungar, mas ansioso pelo “Devir político”…

Trackbacks

  1. […] Concluindo. […]

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