Um homem das mulheres

Perdi durante anos o contacto com a ovelha negra da minha família, o mais ruinoso, boémio, mal comportado, sacana de tio que nos pode tocar em sorte, e apesar – ou por causa – disso, o favorito de qualquer sobrinha.

Voltei a falar com ele há pouco e encontrei um desses conquistadores arruinados pelo tempo e pela vida vagabunda mas que continua a sentir-se, e a ser, irresistível. Há muitos anos era um campeão da má vida, um gabarolas que ganhava todas as rixas de bares, até aquela em que lhe cortaram um tendão com um gargalo de garrafa, o que o deixou com um dedo mendinho perpetuamente espetado, sinal de elegância que pode condizer com a chávena de chá mas não com o copo de vinho tinto que ele costumava erguer. Se algum recém-chegado ao tasco tinha a infeliz ideia de fazer pouco do dedo espetado, acabava a noite nas urgências do Santo António. Acho que em alguns antros de má fama, o mendinho espetado ainda é recordado como uma lenda, como certas histórias de piratas.

Teve os seus anos de glória, e não foram poucos. O primeiro estremecimento, sentiu-o quando, parado à porta do café, a apreciar o cigarro, o sol e as mulheres de passagem pela rua, viu uma rapariga muito bonita – a mais velha das minhas primas – e atirou-lhe um “Olá, boneca” a que ela respondeu com um risonho “Olá, tio” que o deixou gelado. Os sobrinhos crescem sempre depressa de mais para estes tios.

Passaram muitos anos e ele aparece agora, com a saúde arruinada, o rosto envelhecido que se parece cada dia mais ao do pai com quem tanto se enfrentou, e ainda a coleccionar namoradas bonitas e a distribuir charme pelos cafés do bairro. Quando as irmãs, preocupadas com a ovelha negra, o visitam, apresenta-lhes uma fadista de olhos negros e coração ao pé da boca ou uma colombiana de pele morena que o trata por “cariño”. Nunca faltam mulheres bonitas à volta dele e até já quase houve uma rixa entre namoradas à porta da enfermaria do hospital. A coisa resolveu-se com diplomacia e um improvisado sistema de turnos, que permitiu que ambas o visitassem, alternadamente, para divertimento dos enfermeiros e inveja dos outros doentes.

É um teso, este meu tio, não pensem que é a fortuna o segredo das suas conquistas. Perdeu a voz com que cantava fado. Vive num tugúrio que lhe parece esplêndido. Bebe vinho tinto, mas nunca cerveja. Jura pela alma da mãe. Quando está nervoso, gagueja. Não perde tempo com futebol, porque o seu tempo é todo para o vinho e para o amor. Continua valente como um touro, mas agora tem a sensatez que só chega quando já não se pode confiar no corpo.

Se passarem pelo bairro dele, procurem pelas tascas um tipo simpático, conversador, de dedo mendinho em riste, e paguem-lhe um copo, não se arrependem.

Comments

  1. Pois says:

    Muito bom. Como sempre.

  2. Carla Romualdo says:

    Obrigada, Pois.

  3. Ze Maria says:

    Belissimo texto. Retrato fedelissimo de um genero que tão bem socialmente se reconhece.
    Palavras pintadas.
    Parabens

  4. lindo

  5. Emilio says:

    Raios partam, que bem escreve esta mulher!

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