Gourmets do espírito

Por estes dias, em qualquer restaurante de prato económico, já podemos ouvir o cliente da mesa do lado pedir para ver a garrafa de azeite ou vê-lo a enfiar o nariz no copo de vinho da casa. Pouco a pouco, os menus foram sofrendo um processo de “goumertização” e multiplicaram-se os chefs. Não falo dos restaurantes de luxo, onde a coisa começou, mas da extensão do fenómeno aos sítios mais improváveis. Desde que descobri um tasco no centro do Porto, numa destas ruas onde ainda se grelham as fêveras à porta, com um cartaz improvisado a anunciar “tasco gurmet”, já  dou por assente que a epidemia é irrefreável.

Os nossos hábitos requintados já não aceitam fígado de cebolada ou farrapo-velho. Mandamos vir saladas tépidas de pimentos marinados, estaladiços de alheira, espuma de coentros, ao bacalhau já só o toleramos confitado em azeite, e à sobremesa apetece-nos crocantes de arroz doce e  parfaits de baunilha e alfazema.

Ainda gostava de saber que diria nestes tempos, se os tivesse conhecido, a velhota mais amarga que encontrei, e que, sobre o dinheiro que alguns gastavam em restaurantes, resmungava:

– Bah! Daqui para baixo – apontava o pescoço – é tudo merda.

Nada tenho contra o gourmet, embora com frequência me pareça que se aproxima demasiado da velha história em que ninguém se atrevia a dizer que não via fato sumptuoso nenhum, mas apenas um rei nu. Mas o que me tenho perguntado é por que motivo o fenómeno não se estende à comida do espírito, para usar um chavão.

Uma sociedade tão exigente no que leva à boca não deveria ter a mesma exigência no que respeita aos livros que lê, à música que ouve, às imagens, às palavras, aos ideais de que se nutre, aos fazedores de opinião a quem escuta, e por aí fora? E não, não vou falar dos políticos a quem elege, para não estragar-vos a digestão.

Se os estômagos não aceitam qualquer coisa, e é necessária a intervenção da cenourinha baby e do parmentier de vitela para nos sentirmos mais civilizados, não deveriam a mente, o espírito, o coração, o que quer que seja que lhe queiram chamar, ser tratados com o mesmo esmero, com a mesma exigência, levando-nos a repudiar, com uma sacudidela, qualquer prato grosseiro que queiram impingir-lhes?

É que se somos o que comemos, não seremos muito mais o que sonhamos, e recordamos, e imaginamos, e aspiramos a erguer?

Comments

  1. maria celeste d'oliveira ramos says:

    Não sei se um estômago vazio tem tempo para sonhar – hoje li no jornal que “médicos alertam para a má alimentação que agrava anemias” e li também quw de entre 176 países P0rtugal está na linha da frente da corrupção ou seja em 33º lugar – angola também + Guiné-Bissau + Moçambique + Brasil Mas os países “mais limpos são a Dinamarca + Finlândia + Nova Zelândia + Suècia + Singapura + etc – Diz Paulo Morais que Portugal está pior do que o Botswana na corrupção – eu acrescento que desde 1986 Portugal transformou-se e está para mim, irreconhecível e nem precisei de sair da minha rua para ver mas vi melhor nos empregos por onde andei e passava até por um “muito respeitável” secretátio de Estado do Turismo, onde trabalhei e foi mais tarde o “responsável pelo curso onde leccionei” , senhor que além de escrever um livro que comprei e que era a compilação de muitos artigos de turismo (que guardo-o livro e os artigos que não são dele mas que deles se apropriou) – vi o país pobre a crescer e desenvolver-se e sair da miséria da guerra pois que nesse tempo nasci e vivi e fui aprendendo pouco mas o suficiente para perceber que desde 1986 tudo mudou drastiv«camente e como os mais responsáveis se corromperam e até dão as bocas, agora, – na TV -. as mais izecráveis – não é preciso ser muito inteligente nem de esquerda pois eu ~só tenho a política da honra e sou do tempo em que a “palavra de honra” era um aperto de mão que se cumpria e bastava – e cumpria – HONRA ?? hoje o que é issso ?? nas cidades ??

  2. Maquiavel says:

    Até vou passar a dizer à minha mäe que näo faça mais empadäo, só parmentier… nem alheira frita, só estaladiço.

    Excelente artigo!
    É o pedantismo tuga no seu melhor. Mas deixem que quando carteira vazar retornam aos pratos do dia a 4€.

    Se eu vir alguma coisa dessas nos menus dos sítios onde vou, perguntarei alto e bom som se o restaurante já näo faz comida a sério.

    Entretanto nos restos gourmets de Lisboa servem-se pezinhos de coentrada (dessossados) por uma fortuna, enquanto naquele restaurantezinho familiar no início da r. S. Joäo de Deus (Castelo Branco), os pezinhos de coentrada säo feitos com… PERNIL e custam… 1/3 do preço, ou menos.
    Ai como é que se chama o restaurante…

    • Carla Romualdo says:

      ora, Maquiavel, também com essa comparação… Até se pode comer noutros sítios tão bem quanto em Castelo Branco, mas melhor…

      • Maquiavel says:

        Só deixei a referência porque foi um sítio que me deixou satisfeito de corpo e alma.
        Chegámos eram 15:00, perguntei “Ainda tem aí uns restos do pratos do dia no fundo das panelas para o nosso almoço?” e o cozinheiro-dono responde com um sorriso “Ó amigo, aqui a cozinha nunca pára!”… e daí para a frente foi sempre na mesma onda.
        Claro que haveräo outros sítios, outros que o saibam que o exponham, que bem precisam! 😀

        Também me recordo uma paragem n’”O Retiro do Campino” em Coruche. Quem faz a comida tempera-a com amor, a boca e a mente sentem. E pode-se pedir uns gomos de limäo se faltarem, que alguém irá lá atrás à horta buscá-los à árvore. Coisas assim que me marcam bem mais que nomes finos. 🙂

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