Mudar (o Novo Estado de Passos Coelho)

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«Não se avance passo a passo. Defina-se um objectivo e avance-se para ele com decisão.» Pedro Passos Coelho em Mudar (Quetzal, 2010)

21 de Janeiro de 2010. Pedro Passos Coelho publicava o livro Mudar, editado pela Quetzal de Francisco José Viegas, seu director editorial. Boa casa, onde se edita alguma da melhor literatura portuguesa e estrangeira a que vamos tendo direito em Portugal – Vergílio Ferreira, José Rentes de Carvalho, Dinis Machado, mas também Thomas Bernhard, Saul Bellow, Susan Sontag, entre muitos outros autores importantes e onde pontuam também vários poetas. Livro bem feito, bem revisto, como costumam ser as edições da Quetzal. Apresentou-o Rui Ramos em Lisboa, Fernando Ruas em Viseu, Moita Flores em Santarém, Carlos Amaral Dias em Coimbra, e outros primeiros leitores noutros pontos do País por onde Pedro Passos Coelho (PPC) andou. Sucesso de vendas, várias reedições logo após a chegada da primeira fornada às lojas, todos queriam mudar.

O Novo Estado
Em Mudar, o autor formula de forma claríssima o seu programa de governação. Quem não leu ficou a perder. Lá dentro, para bom entendedor, PPC deixou delineado um plano de ascensão ao poder, no exacto momento em que o País ficasse deitado por terra, assim deixado pelo último ciclo governativo socialista – com José Sócrates a fugir para Paris, na senda do que haviam feito outros primeiros-ministros anteriormente, lançando-se em fuga rápida depois da queda. Em Mudar, os dados estavam lançados. Era só ler. Estava lá tudo, e à cabeça, naturalmente, o programa de reformas do Estado: o Novo Estado que PPC sonhou para Portugal. Nas primeiras páginas do livro, o autor anunciava desde logo estar preparado para o que desse e viesse, sem medo da mudança, mesmo sabendo que «em política pôr em causa situações e poderes estabelecidos não é fácil.»

Inspirado pelo plano reformador que se levou a cabo na Suécia (pelo Governo do então ministro do Emprego Sven Otto Littorin, um homem de «ar jovem, natural, alegre», do partido centro-direita liberal sueco), PPC não tinha dúvidas sobre o caminho certo – nem hesitar faria parte dessa caminhada: «Não se avance passo a passo. Defina-se um objectivo e avance-se para ele com decisão.» (uma máxima de um antigo Ministro das Finanças da Nova Zelândia, Sir Roger Owen Douglas, que PPC retomou para si próprio, como ficou escrito em Mudar). «Let the dog see the rabbit» (uma frase de Littorin num discurso, eloquentemente adequada a alguém chamado Coelho), escreveu ainda PPC no seu livro-programa para dizer que quando se tem «um objectivo colectivo a atingir ele deve estar bem visível a todos» – única forma de assumir esta guerra sendo capaz de lidar com «o efeito de choque» e «certos repúdios» gerados pelas reformas. «Se explicarmos e repetirmos com convicção e clareza os objectivos, é mais fácil para as pessoas cooperarem com o processo reformista.» Claro como água límpida.

O livro mistura uma narrativa autobiográfica (com destaque para a experiência africana de Passos Coelho em Angola – onde afirma ter começado a sua relação com a política –, a chegada ao Trás-os-Montes atrasado de 1974, o contacto com a organização comunista a que soube desde logo não pertencer, a ida ao congresso do PSD, com o pai, presidente da distrital, em 1978, o envolvimento franco com a JSD, a ascensão dentro dessa Jota, etc.), com considerações sobre o que é a personalidade em política (baseando-se, designadamente, na de Cavaco Silva), ou sobre em que consiste a função política (motor para a mudança, lá está), mas também análises várias sobre a evolução do País desde a democracia, sobre a crise global (e enganam-se redondamente, afirma, «aqueles que pensam que as lições a tirar da crise apontam claramente o falhanço do modelo de economia de mercado e de Estado regulador»), e, enfim, enunciando o “escritor” em campanha o que segundo ele urgia fazer: o que efectivamente está a levar a cabo, da prioritária redução do défice (embora no livro negando-se aos impostos entretanto barbaramente aplicados via IVA e IRS), à reavaliação das grandes obras públicas encetadas pelo PS, passando pela privatização da ANA, pela reforma da Justiça, pelos planos de co-financiamento da Educação com os cidadãos e, enfim, pela reponderação do Serviço Nacional de Saúde, na lógica de um Estado com renovadas funções: «(…) Se temos de gastar mais na saúde isso deve implicar gastar menos na educação; se gastarmos mais na educação, isso deve ter a contrapartida de gastarmos menos nos apoios sociais (…)»

Reformas para as pessoas do futuro
Nas eleições legislativas do ano seguinte, a Pedro Passos Coelho bastariam 22,62% dos eleitores votantes (num universo em que mais de quatro milhões se abstiveram – 43,88% dos eleitores recenseados) para, juntamente com os parcos 6,85% obtidos pelo pequenino CDS-PP, ganhar o direito a formar governo. Assim foi. Estava o caminho aberto para o seu programa, que o livro Mudar anunciara. Nele, Pedro Passos Coelho avisou: as medidas difíceis a que se propunha eram caminho duro, pejado de «grandes dificuldades, pressup[ondo] uma certa capacidade para mobilizar vontades e forjar novos consensos». E Passos Coelho «não procur[ou] o fácil nem o mais agradável para convencer», e sempre afirmando ser «nas pessoas que pens[ava]». Quem leu terá gostado: dizer que se pensa nas pessoas colhe sempre. E no entanto, foram justamente as pessoas, essa massa indistinta a que chamamos povo (a nossa comunidade, a que pertencemos unidos por uma História, por uma Língua, por uma Cultura, por um território, por um imaginário colectivo, por um Futuro em que estamos juntos, e tudo o que forma uma identidade nacional), aqueles a quem Pedro Passos Coelho dirigiu com inaudita crueza e crueldade as suas primeiras políticas – e também as segundas, e as terceiras, e ainda não acabou, pois vem aí (embora ninguém saiba muito bem como) a primeira verdadeira prova de fogo do seu programa: o OE para 2013 que, a ser executado, acabará com o que resta da razia: a dignidade das pessoas que ainda a têm.

As medidas cegas, concebidas para cortar a eito no matter what, têm gerado milhares de novos pobres, estão a acabar com a classe média, a enviar cada vez mais portugueses para a emigração, a levar dezenas de empresas à falência/dia, a fechar a porta das universidades aos muitos que não têm maneira de pagá-las, a mandar os mais frágeis para a indigência e os velhos para a morte, a reprimir com modos fascistas os que se manifestam, a instaurar o medo – o velho medo que julgávamos ultrapassado, coisa ficada lá para trás, nesse Passado horroroso dos nossos pais e avós. E tudo isso para quê? Para mudar, claro. Investido por uma missão histórica (foi o próprio que o disse há semanas), Pedro Passos Coelho soma e segue, indiferente ao sofrimento das pessoas, decerto pensando em pessoas que ainda não nasceram e que mais à frente, quando for mais velhote, quem sabe lhe agradecerão (e ficarão a dever) o país que teve (contra tudo e sobretudo contra todos) a coragem de mudar.

(actualizado em 5 e em 6 de Janeiro de 2013)

Comments

  1. maria celeste ramos says:

    Ah !!!!!!!! está então explicado não o ministro da Cultura mas o secretário de Estado como “rebuçado” ?? não sabia disto – aliás não sei grande coisa – Envelhecer também é ——- saber que nada se sabe

  2. maria celeste ramos says:

    Porque afinal “a vida é só um minito” ?? Pois é

  3. maria celeste ramos says:

    Minuto

  4. vai cortar mato qur tens um bom corpo

  5. Farenheit 451.

  6. “Estes amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do passo em que se encontra; deleitam-se com a ingenuidade da arte popular, com o imperfeito pensamento, as superstições e as lendas; vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a classe inferior e traduzem, na linguagem adamada, o que dela julgam perceber; é muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se da sua condição; estragaria todo o quadro, toda a equilibrada posição; em nome da estética e de tudo o resto convém que se mantenha.
    Há também os que adoram o povo e combatem por ele mas pouco mais o julgam do que um meio; a meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem sacrificar-se; bate-lhes no peito um coração de altos senhores; se vieram parar a este lado da batalha foi porque os acidentes os repeliram das trincheiras opostas ou aqui viram maneira mais segura de satisfazer o vão desejo de mandar; nestes não encontraremos a frase preciosa, a afectada sensibilidade, o retoque literário; preferem o estilo de barricada; mas, como nos outros, é o som do oco tambor retórico o último que se ouve.
    Só um grupo reduzido defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele nenhuma espécie de paixão; em primeiro lugar, porque logo reprimiriam dentro em si todo o movimento que percebessem nascido de impulsos sentimentais; em segundo lugar, porque tal atitude os impediria de ver as soluções claras e justas que acima de tudo procuram alcançar; e, finalmente, porque lhes é impossível permanecer em êxtase diante do que é culturalmente pobre, artisticamente grosseiro, eivado dos muitos defeitos que trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre o têm colocado os que mais o cantam, o admiram e o protegem.
    Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que solicitam a inteligência e a vontade; um problema de justiça económica, um problema de justiça política, um problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura, e de ascensão o mais rápida possível da massa enorme até hoje tão abandonada e desprezada; logo que eles se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor; temos por ideal construir e firmar o reino do bem; se houve benefício para o povo, só veio por acréscimo; não é essa, de modo algum, a nossa última tenção”.
    (Agostinho da Silva, in “Considerações”)

    • Sarah Adamopoulos says:

      Clarividente Agostinho: «Logo que [os problemas enumerados anteriormente] se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo que serviu para revelar um valor.» E portanto o que é preciso é gerar problemas em quantidade sobeja para manter a máquina a funcionar. Vista a miséria em que a generalidade está a cair ou cairá não tarda, desta feita o salvador quer-se grande.

  7. Sarah Adamopoulos says:

    Reblogged this on Aventar.

  8. nightwishpt says:

    “da prioritária redução do défice”

    Nem nisso acerta.

  9. Reblogged this on ergo res sunt and commented:

    Perplexidades, reflecções e algumas conclusões da Sarah Adamopoulos a propósito de Passos Coelhos. Indispensável ler!

  10. Afinal, os Fins justificam os Meios, sobretudo para um tipo sem Princípios nem Meios, a quem vaticino um Fim triste.

Trackbacks

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  2. […] o Estado se deveria retirar, sendo uma delas a comunicação social.” No mesmo ano, publicou “Mudar”, onde defendia o cofinanciamento da Educação com os cidadãos e a concessão da gestão a […]

  3. […] maldito sejas rapaz), Passos Coelho bem sabe que entrou na recta final, e que vai ter de se Mudar para outras paragens, forçosamente longe do povo e do País que está a destruir a mando do FMI, […]

  4. […] Mudar, publicado em 2010 pela […]

  5. […] Mudar (o Novo Estado de Passos Coelho). […]

  6. […] anunciado em 2010, no livro Mudar – em que também anunciou «a missão histórica» que agora entrega aos portugueses, […]

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