Os mapas do meu pai

Quando eu era catraia, e com catraia quero dizer ter nove, dez anos, o meu pai levava-me a caminhar pela cidade. Arranjava um pretexto, um sítio qualquer a que tínhamos de ir, mas o verdadeiro propósito parecia ser o de que caminhássemos dezenas de quilómetros. Metíamo-nos por atalhos que ele dizia conhecer, porque o meu pai sempre acreditou que conhecia atalhos, mesmo nas cidades onde nunca tinha estado, e sempre se recusou a admitir que não fazia ideia de onde estava. Às vezes, os atalhos corriam bem, isto é, cortávamos caminho e descobríamos uma ruela nova, uma ligação insuspeita entre lugares. Outras vezes, corriam mal e acabávamos a andar muito mais do que o previsto. E outras vezes ainda, corriam muito pior e éramos perseguidos por uma matilha de cães. Na verdade, só aconteceu uma vez, e nesse dia, quando nos deparámos com uma matilha que se lançou na nossa direcção com dentes arreganhados e latidos raivosos, eu olhei para o meu pai com essa fé, tão ingénua quanto fervorosa, que as crianças sempre depositam na capacidade dos pais de resolverem todos os problemas. Num perfeito tempo de comédia, o meu pai devolveu-me o olhar, gritou:

– Corre!

E lançámo-nos a correr pela rua fora, com os cães atrás de nós, e eu não sabia se havia de ter medo (e tinha muito) ou de rir à gargalhada. Não me lembro de como nos safámos, mas nenhum dos cães nos apanhou.

Noutro dia, metemo-nos por uma dessas zonas rurais que a cidade ainda conservava, e que estava nesse momento em obras para a construção do que viria a ser um dos grandes hotéis do Porto. Era fim-de-semana, as obras estavam no início, não havia vedações, e o meu pai conhecia um atalho. Depois de andar aos saltos por entre paralelos e tijolos, e de contornar escavadoras e outras maquinarias que em nada se pareciam com as geringonças do parque infantil, acabámos a escalar um monte de terra que alguém tinha depositado justamente no meio do atalho. Fomos ter a uma sucessão de campos de lama e andámos perdidos mais de uma hora. Quando chegámos a casa da tia que íamos visitar, ela abriu a porta a uma sobrinha enlameada, com as unhas negras de terra, e esfomeada, e a um cunhado pouco disposto a dar explicações.

As caminhadas com o meu pai melhoravam a minha capacidade física, aprimoravam o meu conhecimento das ruas do Porto (por volta dos 12 anos já eu era capaz de fazer-vos uma visita guiada pelas ruelas mais ignoradas da cidade), e estimulavam a minha atenção e espírito de sobrevivência porque não era raro o meu pai esquecer-se de que me tinha ao lado. Detinha-se a ver qualquer coisa – os cabeçalhos de um jornal, alguma coisa na montra de uma loja – ou encontrava algum conhecido (e se há gente que conhece gente é o meu pai!) e esquecia-se de mim. Acabava por lembrar-se, claro, mas às vezes dois ou três quarteirões adiante. Também acontecia muitas vezes ser eu a detê-lo numa passadeira porque ele não tinha visto o sinal vermelho para os peões, ou a assinalar-lhe um buraco no passeio, uma trave mal colocada onde um transeunte distraído podia partir a cabeça, e outros perigos que ele não via.

Quando a caminhada acabava, o meu pai, com a sua particular concepção do que é uma refeição nutritiva, deixava-me pedir o que eu queria lanchar e que era sempre a mesma coisa: um cachorro com muita mostarda e uma coca-cola. Quando eu terminava, e dando cumprimento ao que ele achava ser a sua obrigação de pai atento, perguntava-me:

– Queres outro?

Eu nunca queria, mas ele perguntava sempre.

A minha mãe não sabia detalhes sobre os incidentes nas nossas caminhadas, mas suspeitava de que as condições seriam demasiado extremas para alguém da minha idade. Eu não contava detalhes porque, talvez nem seja preciso dizer, não queria que as nossas aventuras acabassem.

Depois vieram anos em que eu não queria passear com o meu pai e não passeei. E depois veio o tempo, que é ainda o de hoje, em que uma caminhada de 100 metros lhe parece interminável, e eu não tenho atalhos para oferecer-lhe.

Entretanto, percebi que a obsessão com os atalhos nada tinha a ver com o desejo de cortar caminho, porque o que ele mais gostava era de alongar esse caminho. Os atalhos correspondiam ao desejo de completar o seu mapa da cidade, um mapa pessoalíssimo como o são todos os verdadeiros mapas, porque o seu desejo era conhecer, como ninguém, a sua cidade. E como todos os homens da sua geração a quem nunca se facilitou que falassem sobre o que sentiam, que expressassem livremente os seus afectos, o meu pai sempre viu na deambulação, na construção desse mapa conjunto da nossa cidade, uma forma de falar de amor sem falar dessas coisas, de deixar-me um conjunto de memórias que haveriam de ser a base do mapa que eu mesma traçaria.

Nesta rua aconteceu isto, naquela encontrámos um velho amigo, aqui assistimos a uma situação muito caricata, naquele beco fugimos dos cães, ali discutimos sobre os meus estudos, quem era o rapaz com quem ele me apanhou no café, o que é que eu vou fazer da vida.

Agora que ele voltou a estar doente, levo-lhe livros do Germano Silva, sobre a cidade da infância dele, ou a que ele nem chegou a conhecer, e discutimos a exacta localização de um beco, a placa que ainda se vê em tal esquina, como se chamavam as escadinhas que davam para não sei onde. Temos motivos de discussão para várias horas e agarramo-nos a uma das poucas paixões que partilhamos.

Eu lanço:

– Como é que se chama aquela rua muito pequena que vai de Santo Ildefonso a Coelho Neto? É a das Oliveirinhas?

E ele responde logo com o “Nãaaaao”, muito prolongado que é tão seu.

– Nãaaaao, essa é a Travessa do Poço das Patas.

Eu sei que é, mas gosto de prolongar a discussão.

– Tens a certeza?

– Então não tenho?

E temos conversa, que é como quem diz passeio, para o resto da tarde. Não nos incomodam o ruído das máquinas, nem os enfermeiros que têm de interromper a conversa, nem distracção alguma.

Comments

  1. Não sou capaz.

  2. Elisabete Coelho says:

    Querida Carla, pronto, confesso: este texto emocionou-me. Obrigada.

  3. António Fernando Nabais says:

    Magnífico!

  4. ramila says:

    Belo.

  5. Lindo, eu sei bem o que isto é.

  6. Cara Carla, perante este texto, qualquer adjectivo que eu tentasse usar para elogiá-lo ficaria muito aquém da realidade!

    Parabéns!

  7. Muito bonito!

  8. Henrique Morgado says:

    Texto que sabe a vida autêntica. Parabéns!

  9. Orvalho says:

    Um abraço para o seu pai, de quem também gosta de caminhar por becos. Espero que esses tais cachorros fossem os de um minúsculo “snack” junto ao Teatro S. João, em tempos paredes-meias com uma casa de ginjinhas.

  10. Carla Romualdo says:

    Obrigada

  11. Obrigado por me inspirar 🙂
    (a minha filha tem 9 anos)

  12. Há momentos ímpares em que o silêncio, não o sendo, é o melhor adjectivo. Porque é de oiro!

  13. Há muita emoção nestas palavras; há muita alma nesta escritora. Há um tempo respirado e reflectido próprio do talento libertado ao sabor da escrita. Obrigado por este momento…

  14. Júlio says:

    Eu sou pai de uma filha de 7 anos e um filho de 4 anos. (nada na vida é mais maravilhoso do que isso).
    Também gosto de dar passeios com eles, vou ao mercado, passeio pelos parques (em Guimarães) a apanhar castanhas e a atirar paus aos ouriços, vou aos becos da cidade (um dia, depois de um passeio de 1/2 horita por uma zona desconhecida da cidade, fomos dar a uma praça com uma igreja, essa sim, bem conhecida dos meus filhos e vira-se o rapaz: eia, já chegamos a Guimarães), enfim, vou tentando estar com os meus filhos.
    Também eu gostaria de encontrar um atalho, desses não cortam caminho, mas o prolongam. Por vezes penso que os meus filhos não deviam fazer anos. 🙂

  15. Júlio says:

    Ah, o texto é lindo.

  16. Luís says:

    Numa altura em que se sublima a ideia nas pessoas que os idosos devem tratar de arranjar uma manta, (visto que o Estado não tem dinheiro para tudo), e que os filhos devem tratar de lhes dar boleia para um deserto onde não incomodem, este texto da Sarah parece-me que não leva em conta o estado de “emergência” do país!
    É um discurso “piegas” que ignora demagogicamente que os velhos estão a viver demais, consumindo recursos importantes ao SNS, recursos esses que deviam ser canalizados para sustentar os bancos de forma a que estes financiem a economia do país.

    Enfim … um texto lindíssimo!!!

  17. Bonito

  18. Eduardo Louro says:

    Belo texto de uma história muito bonita. Não sei se é possível esperar, mas é certamente possível desejar: as melhoras do seu pai. Rápidas!

  19. Este texto está enternecedor.
    Espero que o pai recupere a saúde rapidamente e possam voltar às caminhadas.
    Um grande beijinho.

  20. Tiro ao Alvo says:

    Quem sabe se eu não conheço o seu pai? Digo isto por que também gostava e gosto de me perder por ruas e vielas. Do Porto e de outras terras. De qualquer forma, as melhoras para o seu pai.
    Para si, um pedido: mantenha-se como está e é.
    Obrigado.

  21. Carla Romualdo says:

    Bem, tenho de confessar que fico surpreendida e enternecida com os vossos votos e as vossas confidências.
    Obrigada a todos.

  22. calisto elói says:

    bonito e enternecedor texto.bonito pai e bonita filha.

  23. Célia says:

    Fabuloso!

  24. Muito bom! Mesmo. Raios partam as cebolas.

  25. Adélia Pires says:

    Acabei a leitura com os olhos marejados por lágrimas teimosas e aquela sensação agridoce que me enche o peito quando me deparo com algo dolorosamente belo. Obrigada por este instante em que tomei um atalho que não conhecia…

  26. Floro Teixeira says:

    Parabéns, uma bonita história de amor fraternal, tão raro nos tempos que correm. As melhoras possíveis para o seu Pai.

  27. Amadeu says:

    Lindíssimo texto.
    Que saudades eu tenho dos mapas da vida do meu Pai.
    Repetidos dezenas de vezes, ouvia-os sempre como quem ouve o hit da minha adolencência ou a canção do meu primeiro amor.

  28. Luz Lopes says:

    Tenho muitas saudades do meu pai. Obrigada, gostei muito.

  29. Alex says:

    Esta apanhou-me desprevenido 🙂 Veio carregada de memórias. Passadas e futuras. Urge dar mais atenção aos meus filhos para que também eles possam ter mapas.

  30. Graciete vVrgínia Rietsch Monteiro Fernandes says:

    Tão lindo!!! Eu também costumava passear com o meu pai,mais através de zonas rurais e pinheirais que existiam na cidade do Porto, na zona de Paranhos. O texto é emocionante.

    Um abraço.

  31. Ana Bárbara Ribeiro says:

    Simplesmente maravilhoso. Adorei estar na vossa companhia, imaginei o que pude, mas o que foi, fez-me sorrir de alegria, até mesmo agora, em que as caminhadas já são de memórias. Obrigada. ABR

  32. Não é todos os dias que leio um texto tão enternecedor.
    Não é todos os dias que me emociono com a ler um texto.
    Hoje, emocionei-me e enterneci-me…
    Parabéns pelo texto, grato pela partilha e obrigado por me fazer voar no tempo 🙂

  33. Monica Madureira says:

    Carla!!!!Saltou a lagrima,que lindo!Obrigada!!!

  34. Filipe says:

    Olá Carla,
    Gostei muito!
    Como filho e como pai… fiquei inspirado…
    Obrigado, abraço.

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