Portugal digital 2013

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Fui uma das primeiras pessoas em Portugal a usar a Internet, nos comecinhos da chegada da Rede mundial às casas dos portugueses. Fui também uma das primeiras jornalistas a escrever sobre o que isso representava em termos de mudança de sociedade – na web, na imprensa, e também na rádio: fui autora de um programa chamado Cibéria, nome com que acordei certa manhã, juntamente com a convicção de que tinha de fazê-lo nessa altura. Foi em 1997, estreou nas antenas da extinta e saudosa XFM, e depois transferiu-se para a TSF. A fazer esse programa de rádio, andei pelas escolas a falar com as crianças sobre a modernidade e o progresso, a tecnologia electrónica e o futuro da Era digital – o mundo que nesse exacto momento emergia, substituindo-se à já longa Era analógica, à mecânica dos átomos, e que transportava consigo utopias espantosas, como por exemplo o teletransporte – a minha preferida, espécie de excentricidade futurística, embora bastante menos importante do que a dimensão inclusiva, que assim a pensava eu no meu optimismo ainda um pouco juvenil. Esse mundo nascente seria inexoravelmente o dessas crianças que então andavam na escola, e ia ser uma coisa bestial (outra vez o meu entusiasmo pateta).

A fazer esse programa entrevistei, para um painel semanal de gente que ia ter comigo ao estúdio, dezenas de pessoas com coisas interessantíssimas para dizer sobre o que o digital ia fazer nas nossas vidas, agindo sobre todos os sectores da sociedade portuguesa. Recordo uma entrevista ao Professor Mariano Gago, então Ministro da Ciência e Tecnologia, numa noite em que um enorme acidente em cadeia tornou essa conversa em directo uma emissão absurda – interrompida por relatos noticiosos de gente estropiada no meio dos átomos da chapa, de gente a morrer no meio da matéria da estrada, e nós ali nos intervalos do horror a exaltar ridículos o futuro virtual e glorioso que esperava por nós mais adiante. Interessei-me pelo cibermundo, andei pelos talkers (onde fiz amigos que guardo ainda hoje), escrevi sobre a cibercultura, pensei muito sobre os significados da decisiva mudança de paradigma (essa palavra que agora serve para tudo), escrevi, escrevi, sonhei um futuro solar, em que a informação e o conhecimento chegariam a todos, transformando as sociedades subdesenvolvidas como a portuguesa. Íamos enfim ter acesso ao Mundo, civilizar-nos, deixar o já moribundo século XIX para trás. Ia ser bestial, só à chapada.

Depois chegou o Choque Tecnológico e os magalhães, e tudo começou a mudar, e a piorar. E nunca mais parou de ficar pior. Nestes primeiros dias de 2013, com o FMI à perna a tentar comer os dedos que há meses ainda tinham os anéis que já levaram (retomo as palavras do BE ou do PS, já nem sei, hoje no Parlamento), descubro o que já tinha entretanto vislumbrado: os sistemas informáticos a tornar a nossa vida um Inferno, muito para além da vigilância abjecta que fazem hoje da vida das pessoas (através do Facebook, designadamente, mas não só), da e-bio para os professores, ou do constante rastreio dos nossos movimentos na Web. Vou comprar hortaliças e tenho de me despachar porque o sistema de facturação (tornado obrigatório pelo Ministério das Finanças desde o começo deste mês) obriga a senhora das hortaliças a atender um cliente de cada vez. Ainda lhe digo para atender o senhor que está depois de mim, mas ela, que ainda há dias despachava quatro ou cinco clientes ao mesmo tempo, olha-me revoltada e diz enraivecida: Não posso, eles agora não me deixam trabalhar.

E sigo para a farmácia e uma vez mais acontece o que parece mentira: não há ibuprofeno na dosagem de que preciso, e também não há outros medicamentos banais, fármacos comuns de que toda a gente precisa todos os dias, e na farmácia de luto não sabem quando vai haver, porque perderam o controlo sobre os armazéns que os fornecem, decerto cheios de intermediários e de sistemas informáticos a tornar tudo muito mais difícil. E no final, levando ainda assim qualquer coisa, obrigam-me a dar o meu número de contribuinte, caso contrário não me vendem um shampô (produto a 23% de IVA, cuja factura de nada servirá para o meu IRS). Finalmente, descubro na estação de correios (raio de maneira de designar as lojas vermelhas a brilhar comércio dos CTT, bem sei, devo estar a ficar antiga) um estranho estabelecimento onde se vende tudo – livros, discos, porta-chaves, agendas, lotarias, puzzles, colares, gadgets da UNESCO, etc. Um dia destes vão vender hortaliças não? pergunto ao senhor dos correios. Faz que sim com a cabeça, resignado com o processo lento de privatização e de informatização que já mandou para o desemprego eterno colegas seus, enquanto recebe a minha queixa relativa a um problema de distribuição de correio. Os correios já não são os correios e telégrafos, já não servem para levar e trazer correspondência, são quase só lojas, e a distribuição corre mal, e até as contas dos fornecedores domésticos chegam tarde.

Volto para casa a sentir-me uma merda de um número, uma merda de uma contribuinte-consumidora, uma merda qualquer que não é uma pessoa, uma merda de uma combinação binária ligada à grande merda que nos saiu na rifa digital, e que contudo, e por mais complexa que seja (quero lá saber dessa complexidade de merda),  jamais replicará a multiplicidade (essa sim verdadeiramente espantosa de possibilidades infinitas e mistério) de que ainda é feita a Humanidade. E é justamente por isso, mais a ganância, que tanta coisa corre mal.

Comments

  1. Olá querida Escrava Sarah…
    Finalmente sinto que não estou sozinho por aqui!
    Bem-vinda ao Clube dos Escravos que sabem que o são!

    Adorei a parte “…através do Facebook…”, pois é de LIVRE E ESPONTÂNEA vontade que os ESCRAVOS se submetem ao controlo… Juntando os smartphones, gps/via verde, títulos de transportes públicos, cartões bancários, contadores “inteligentes” de energia, cartão de cidadão, et cetera… A nossa vidinha escrava pode ser seguida e até já pode ser prevista! Sim… Já há aplicações informáticas que prevêem com uma margem de erro de cerca de 100 mts qual o local/hora onde determinado escravo vai estar no dia seguinte!

    O fabuloso disto tudo é que poucos fazem o que eu faço, e não, não sou exemplo para ninguém:
    Não tenho facebook/twitter;
    Não tenho smartphone/ ipad / notepad etc (tenho telemóvel com o qual gastei em 2012 15€ (e anda sempre sem wi-fi ligado e não tem gps!);
    Só utilizo cartão bancário para sacar sem custos toda a esmola que recebo em troca da venda do meu trabalho escravo (físico/mental), e sempre nas mesmas caixas MB, e perto da residência e porque sou obrigado a ter conta bancária (viva a liberdade/democracia capitalista!);
    Não tenho contas na corporação google (encerrei tudo antes da entrada em vigor das novas regras de “privacidade” que a mesma implementou)… E outras coisas que prefiro não escrever!!! 😆

    Somos escravos, permitimos que nossos descendentes se tornem escravos e não fazemos nada para alterar o rumo da Humanidade! O motivo principal é que os que sabem que o são, são ainda muito poucos!

    Abraço 😉

  2. Carla Romualdo says:

    Eu ouvia o Cibéria! Excelente post, mais uma vez

  3. Bom, os sonhos de liberdade infinita poderão não se ter realizado, no entanto a Internet continua a produzir coisas extraordinárias. Penso mesmo que está a produzir mudanças fundamentais na forma como a sociedade funciona.

    Depois, a máquina que está a exercer o controlo asfixiante que referes é controlada pelos mesmos incompetentes que nos colocaram na presente situação. Se há coisa com que podes contar é a incompetência deles e com o facto de não compreenderem o que estão a fazer…

    O teu post fez-me lembrar do “Little Brother” do Cory Doctorow, se não conheces dá uma vista de olhos, é um dos produtos da Internet, está sob licença Creative Commons…

    • Sarah Adamopoulos says:

      Obrigada. Acabei de fazer o download do livro. Vou ler.

      • Cara Sarah,
        Lembro-me muito bem do seu explosivo entusiasmo na busca de novidades digitais.
        Parece hoje que tudo aconteceu numa era distantíssima,o que significa que a mudança foi funda,embora imperfeita e certamente não “solar”.
        Programas como o Cibéria ajudaram a vencer o preconceito e a espalhar informação sobre a Net, numa altura em que a Europa não tinha agenda digital e Portugal arrancava para o e-gov e demais novidades. Isso permitiu a muitos aceder ao que em 1994 era privilégio de umas poucas centenas de cientistas como o Pedro Veiga, Legatheaux Martins e outros que ajudaram a quebrar barreiras e democratizar o acesso ao ciberespaço. Lembrar isso ajuda a enfrentar melhor aquilo que detestamos na vida de hoje e impede que seja soterrado pela amnésia o que houve de bom no passado.
        E talvez um dia a nossa Academia das Ciências acerte o passo e publique reflexões sobre a liberdade na Net como esta: http://www.britac.ac.uk/policyperspectives/christie.cfm
        zmaglh

        • Sarah Adamopoulos says:

          Olá José Magalhães, bom vê-lo pelo Aventar e ainda pela net. Concordo que a preservação da memória dos feitos dos pioneiros internéticos portugueses e do espírito que fundou a grande Rede pode dar um contributo para alterar o ascendente pernicioso e até mesmo ao arrepio do desenvolvimento que pressupõem, das redes informáticas na nossa sociedade. Essa história merece ser contada e sê-lo-á certamente algum dia, talvez com uma maior distância (assim funciona a ciência historiográfica, creio).

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  2. […] nas farmácias portuguesas, diz-se hoje nos serviços informativos da RTP. Vivemos no mesmo País? No meu já faltam há muitos meses. […]

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