Uma história de borralho

O tronco de oliveira verde ardia já desde ontem, numa chama contida mas constante. Ao contrário do pinho enresinado que se consome num fogo rápido e exuberante, a oliveira, mesmo que verde, leva o seu tempo para se transformar em cinzas.

“É a que cortei agora”, dizia-me o Ti Manel enquanto nos aquecíamos com um tinto novo, sentados no borralho. Deve ter sido a última das oliveiras que faziam a estrema no Vale Raposo, agora transformado em eucaliptal. “Eu não queria arrancar a vinha mas deram-me quase mil contos de subsídio. Era muito dinheiro”. Este arranque passou-se nos noventas, era primeiro-ministro o actual presidente da República. “Quando foi aprovado não consegui lá ir fazer o serviço mas a Maria juntou umas mulheres e cortaram as varas todas. Ficaram só cepas. Até chorei mas depois a máquina entrou por ali fora e rompeu tudo. Acabou.”

Com a força dos braços trocada pelo diesel que dantes não tinha, a terra continua a dar ao Ti Manel, aos setenta e quatro anos, uma alegria só compreendida por quem vê algo crescer com o seu trabalho. Fala-me com orgulho da colheita do arroz mas que foi mais escassa por causa da água que faltou. “Lá no descasque, ele ofereceu-me vinte e dois cêntimos por quilo mas a pagar só em Abril.” Tinha feito o negócio em Outubro. “O que é que hei-de fazer? Ele disse-me que ainda tem o arroz do ano passado para despachar.”

Lembrei-me das recentes notícias sobre a falta de cereais e a suspeita de que o industrial o estaria enganar ganhou contornos mais nítidos. Mas outro  gole daquele vinho caseiro empurrou o presságio para trás das costas. Fiz umas contas de cabeça, pensei nas despesas e compreendi que o preço estava curto. “Sem o subsídio não dava. O subsídio e os direitos. Os dois dão mil e tal euros por hectar. Dantes, o subsídio era pago ao quilo de cereal produzido, depois passou a bastar semear a terra para se receber pela área semeada. Mas nem era preciso fazer a colheita. Cheguei a ver campos de girassóis semeados sem que alguém os tivesse lá ido apanhar. E agora nem semear é preciso.” O Ti Manel acha que a lei foi feita para aqueles grandes latifundiários do Alentejo que assim têm uma renda sem precisarem sequer de lavrar a terra.

Perguntei-lhe sobre esses direitos, coisa que me era estranha. “Há uns anos os agricultores foram declarar as terras que tinham e ficaram com quotas de cultivo. Agora se alguém que não tenha direitos quiser cultivar os terrenos tem que os comprar à reserva nacional ou a quem tenha deixado de produzir. Mesmo que eu venda o terreno, a quota de produção é minha. E passa-se aos filhos.”  Na nossa agricultura agora há, portanto, direitos de cultivo. Chegámos ao ponto de ser preciso uma autorização – e por ela pagar – para se criar uma seara.

A fogueira morria e o tema não me aquecia a alma. Atirei umas cavacas de cerne para o lume e logo a labareda nos acariciou o rosto com o seu calor. Para queimar lenha ainda não são precisos direitos, diziam-nos os troncos que crepitavam numa conversa de estalidos. É irónico, pensei eu, mas há sabedoria nas coisas que acabam.

Comments

  1. Carla Romualdo says:

    Muito bom

  2. João Afonso Bento Soares says:

    O tronco a arder na lareira, fez-me lembrar estes dizeres de modestíssimo bardo (que andou pela Guiné nos idos de 68 – 70):

    O CANTO DO VELHO

    Num “mocho” sentado ao canto
    Da lareira a crepitar,
    Guarda consigo o encanto
    Da meninice lembrar.

    O canto, do avô era
    E depois fora do pai.
    Para mim eu o quisera,
    Mas o tempo já lá vai.

    Nesse canto lenha havia
    Para arder, feita em tições
    E seu calor garantia
    O conforto dos serões.

    O prosear dos mais velhos
    Ouvido com devoção,
    Entre estórias e conselhos,
    Era, da vida, a lição.

    Das panelas no borralho
    Vinha o cheirinho da ceia;
    Findo o dia de trabalho:
    Paz e barriguinha cheia.

    E olhos postos nas brasas,
    Na cor, na dança das chamas…
    As faúlhas ganham asas,
    Levam sonhos a quem amas.

    João Afonso B S
    (MGEn. Ref.)
    Meimoa*, 2 de Março de 2010

    * Freguesia da Beira Baixa, concelho de Penamacor, onde nasci há 72 anos…

  3. Carlos Pinheiro says:

    O artigo refelecte bem as origens desta desgraça moderna. e o poema relembra muitissimo bem as histórias do borralho dos serões de antigamente. Não sei de qual gostei mais. Parabens aos autores.

  4. Que dizer? A primeira coisa que quero comentar é que sei que os nossos problemas não começaram com o Sócrates e que o Cavaco também fez muita porcaria. Este teu texto, tem uma simplicidade que até uma criança de 5 anos o entende. Eu tenho um ódio de estimação pelo Sócrates, não os consigo meter no mesmo saco, apesar de ambos terem a mania das “grandezas”, o Sócrates foi mais longe. Um exemplo que foi falado durante tanto tempo: TGV. Interessava/a a Portugal? Não. Aos espanhóis já interessa. Para o tamanho do nosso país o inter-cidades é bastante rápido e comodo…mas o senhor lá achou que o TGV iria ser a 10 maravilha do mundo para portugal. Poderia estar para aqui a discutir ambos…mas vou mencionar apenas uma coisa: num país a afundar o Sócrates conseguiu ser mais arrogante que o Cavaco que tinha os fundos da CEE a entrar….enfim
    Beijinhos

Trackbacks

  1. […] a produção de arroz como exemplo. Antes da chegada dos subsídios da então CEE, o Ti Manel vendia o arroz a 80 escudos. Sem contar com a inflação, seriam 40 cêntimos de euro agora. […]

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